Edição 340 | 23 Agosto 2010

''O Universo estava condenado a existir''

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Márcia Junges

É impossível não existir alguma coisa, teoriza o físico Mario Novello. Saberes compartimentados são prática de dominação política, boa para a técnica, mas não para o saber

“Parodiando Sartre, segundo o qual o homem estava condenado a ser livre, este cenário parece indicar que o Universo estava condenado a existir. Isto é, é impossível não existir alguma coisa”. Essa afirmação poderia levar a uma “longa conversa” entre os saberes. A reflexão é do físico brasileiro Mario Novello, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Em seu ponto de vista, compartimentar os saberes se configura numa “prática de dominação política”. E continua: “Em verdade, retalhar o mundo, especializar saberes, pode ser uma boa atitude para a técnica, mas não para o saber”. Ainda sobre as origens do Universo, Novello acentua que, enquanto no primeiro modelo do Big Bang “a origem se cerca de um mistério insondável, o modelo de universo eterno dinâmico faz avançar a ciência em sua continua e incessante formação de novas indagações sobre o universo. Não é isso que devemos entender como a verdadeira prática cientifica?” Segundo Novello, a principal função da ciência é oferecer explicações racionais para todos os processos da natureza, algo como um “caminhar para sempre”. Mas adverte: “Imaginar que o conhecimento científico vai ser completamente realizado e que esta estrada tem um fim, nada mais é do que a esperança de abarcar o absoluto, um desejo típico dos momentos mágicos, irracionais, da espécie humana”.

Novello é professor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, onde é coordenador do Laboratório de Cosmologia e Física Experimental de Altas Energias. É graduado em Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Física pelo CBPF e doutor na mesma área pela Université de Genève (Suíça), com a tese Algebre de l'espace-temps, pós-doutor pela University of Oxford (Inglaterra) e doutor honoris causa pela Universidade de Lyon (França). Conquistou prêmios internacionais, destacando-se a Menção Honrosa por Teses em Cosmologia e Teoria da Gravitação, concedida pela Gravity Research Foundation (USA). É autor de mais de 150 artigos e de inúmeros livros, dos quais destacamos: Cosmos e Contexto (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989), O Círculo do Tempo: Um olhar científico sobre viagens não-convencionais no tempo (Rio de Janeiro: Campus, 1997), Os jogos da natureza (Rio de Janeiro: Campus, 2004), Máquina do tempo – Um Olhar Científico (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005) e Do Big Bang ao universo eterno (Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010). Foi o responsável pela condução da oficina A relatividade, a física das partículas e as origens do Universo, ministrada em 17-05-2006 no Simpósio Internacional Terra Habitável: um desafio para a humanidade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que o senhor afirma que o Big Bang não foi o começo de tudo?

Mario Novello - Para responder a essa questão precisamos antes especificar melhor a pergunta, ou seja, o que entendemos pelo termo Big Bang. Há pelo menos duas formas distintas mas complementares, a saber:
1) Big Bang é o termo genérico de um cenário do universo que os cosmólogos criaram e que identifica uma estrutura dinâmica, associada à observação de que o volume total do espaço tri-dimensional varia com o tempo. Este termo se referia, em particular, à existência de uma fase extremamente condensada (e quente) que ocorreu no nosso passado;
2) Big Bang é o termo onomatopaico associado a uma explosão que teria dado origem ao nosso universo há alguns poucos bilhões de anos.
Enquanto o primeiro significado é correto, isto é, a quase totalidade dos cosmólogos acredita nesse cenário, a segunda interpretação nada mais é do que uma extrapolação indevida, sem apoio observacional, e que restringe a função do cosmólogo, proibindo-o formalmente de procurar uma explicação racional para aquele “começo explosivo”. Ademais, como a tradição da física nos ensina, não faz parte da compreensão da ciência a associação de valor infinito (consequentemente, impossível de ser o resultado de uma experiência real) a quantidades físicas que poderiam em princípio serem observáveis. O valor infinito, quando ele aparece como resultado formal de uma equação em uma circunstância idealizada, traduz uma impossibilidade que está associada a uma extrapolação indevida. O valor infinito está dizendo que a teoria que produz este valor não pode ser mais aplicável naquela particular situação. A descrição do fenômeno em questão deveria ser modificada. No caso da teoria da gravitação, que está na base do cenário Big Bang, a própria equação da relatividade geral deveria ser alterada. O autor desta teoria, o físico alemão Albert Einstein , é do mesmo parecer, pois segundo suas próprias palavras, citado em meu livro Do Big Bang ao universo eterno (Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2010), diz em seu livro de 1948 intitulado The meaning of relativity: “Em relação à questão da singularidade inicial dos modelos cosmológicos eu gostaria de dizer o seguinte: a teoria atual da relatividade se baseia em uma divisão da realidade física em um campo métrico (a gravitação) por um lado, e o campo eletromagnético e a matéria, por outro. Em realidade, o espaço será provavelmente de um caráter uniforme e a teoria atual somente será válida como um caso limite. Para grandes valores do campo e da densidade de matéria, as equações do campo e até mesmo as próprias variáveis que intervêm nestas equações não possuem significado real. Não é possível, assim, admitir a validade destas equações para densidades de campo e de matéria muito elevados. Consequentemente, não é possível concluir destas equações (da relatividade geral) ao serem aplicadas ao universo que o início da expansão do universo seja identificado com uma singularidade no sentido matemático. Tudo que devemos reconhecer é que as equações (da teoria citada) não são aplicáveis nestas regiões”.

IHU On-Line - Se o Big Bang não foi o marco zero para o início do universo, é possível concluir que este é eterno? Por quê?

Mario Novello - Em principio, há duas possibilidades para o passado do Universo: ou ele começou em uma singularidade (como o Big Bang citado na questão anterior) ou ele não possui um começo a um tempo finito em nosso passado. Estas são as duas opções que a Cosmologia produziu.

IHU On-Line - Considerando essa hipótese do universo como causa incausada, qual é a importância da transdisciplinaridade, como o diálogo da filosofia e da física, por exemplo?

Mario Novello - Não creio que eu concorde com este modo de colocar essa questão. A relação entre a Cosmologia e a Filosofia ou entre outros saberes faz parte de nossa riqueza cultural. Compartimentar saberes diferentes, impedindo a ação de um sobre o outro equivale a uma prática de dominação política (de um saber sobre o outro) que não produziu na história resultados que nos orgulham. Em verdade, retalhar o mundo, especializar saberes, pode ser uma boa atitude para a técnica, mas não para o saber. No dizer de Ortega y Gasset , lá pelos anos 1930, a redução do saber científico a um conhecimento especializado, técnico, reducionista, não integrado, produziu o afastamento cada vez maior do diálogo com a natureza levando, por exemplo, ao desequilíbrio ecológico e produzindo consequências nefastas para a sociedade.

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