Edição 335 | 28 Junho 2010

“Devoção negra”: os santos e a catequese da Igreja colonial voltada aos negros

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Moisés Sbardelotto

Para a Igreja Católica do período colonial, a preocupação de cristianizar os negros passou por uma re-elaboração de elementos cristãos para aproximá-los das culturas de matriz africana, segundo o historiador Anderson José Machado de Oliveira.

Dos primórdios da Igreja na Etiópia até a devoção dos “fiéis escravos” do período colonial do Brasil. Essa foi a viagem que Santo Elesbão e Santa Efigênia realizaram pelas mãos do frei carmelita José Pereira de Santana, ainda no século XVII. Nesse trajeto, os dois santos passaram também por um processo de aproximação forçada à Ordem do Carmo.

Para o historiador Anderson José Machado de Oliveira, essa “tradição inventada” fazia parte de um processo de cristianização dos negros do Império Português, como também de promoção da própria Ordem do Carmo. Autor de “Devoção Negra: Santos Pretos e Catequese no Brasil Colonial” (Ed. Quartet/FAPERJ, 2008), Oliveira analisa, nesta entrevista, concedida, por telefone, a aproximação ocorrida desde o Brasil colonial até hoje, entre alguns aspectos-chave do catolicismo e as religiões de matriz africana.

Segundo ele, “o catolicismo é a religião do colonizador, mas, ao mesmo tempo, é também a religião que vai ser relida por esses negros, que vão se apropriar do catolicismo também como uma possibilidade de reconstrução” de suas próprias identidades. Mas não do catolicismo idealizado pela hierarquia da Igreja, e sim de um “catolicismo possível, o que alguns chamam de 'catolicismo popular', que seria essa reinterpretação do catolicismo segundo as diversas matrizes culturais existentes no período colonial”.

Anderson José Machado de Oliveira é historiador formado pela Universidade Federal Fluminense. Possui mestrado e doutorado em História pela mesma instituição. Atualmente, é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de colaborador da Universidade Federal Fluminense. Além de “Devoção Negra”, é autor dos capítulos “Negra Devoção”, do livro “Raízes Africanas” (Ed. Sabin, 2009), e de “O Herói e a Coroa”, parte de “História e Imagem” (Ed. Gráfica Pontual, 1998).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em aspectos gerais, qual a importância dos negros para a Igreja Católica do período colonial? Eles faziam parte da sua preocupação missionária ou catequética?
Anderson José Machado de Oliveira – A partir do momento em que a mão-de-obra africana se torna fundamental para a própria gerência da economia colonial, essa importância aparece não só para o Estado, mas para a Igreja também, já que se vivia em um regime de união entre Igreja-Estado. E a Igreja, como uma instituição importante na estruturação do poder e da sociedade colonial, não poderia deixar de se preocupar com o crescimento da população de africanos no Brasil, principalmente, a partir do final do século XVII e ao longo do século XVIII, quando, na verdade, os africanos e seus descendentes vão se tornando, praticamente, o maior contingente populacional da América portuguesa. A partir disso, eu acredito que há, sim, uma preocupação da Igreja com a missionação sobre os negros, com algumas diferenças, no entanto, em relação à missionação com os índios. Essa preocupação se traduziu na busca por modelos de santidade que pudessem ser difundidos entre a população de africanos e seus descendentes de forma a não só inseri-los na cristandade, mas também a fazer essa inserção cristianizando, na medida do possível, essa população.

IHU On-Line – Em sua pesquisa, o senhor aborda a questão do culto dos santos no Brasil colonial. O que isso significou para um maior alcance da Igreja Católica entre os fiéis?
Anderson José Machado de Oliveira – A questão do culto dos santos já é tradicional dentro da Igreja. Desde a alta Idade Média, o culto dos santos acabou se transformando em uma ação importante da Igreja, inclusive para a conversão de populações não cristãs. Na época moderna, essa pastoral do culto aos santos é reforçada até na medida em que ele é questionado pelos protestantes. Em relação aos negros, a questão do culto aos santos era, de alguma forma, já difundido por ações portuguesas na costa da África, e essa pastoral acaba, no meu entender, tendo uma importância fundamental para aproximar esses fiéis de origem africana à própria Igreja, já que há, com relação ao culto dos santos, algumas características, segundo o historiador africanista John Thornton , que podem aproximar o catolicismo de alguns aspectos das próprias religiões de matriz africana, como a questão da possibilidade de comunicação entre o mundo material e o mundo não material, a existência de espíritos que fazem a comunicação entre esses dois mundos. Isso, a meu ver, contribui para que o culto aos santos tenha se colocado como algo importante na própria inserção dos negros na cristandade.

IHU On-Line – Quem foi o frei José Pereira de Santana? Como a sua história se relaciona com o projeto catequético da Igreja para os negros?
Anderson José Machado de Oliveira – José Pereira de Santana foi um frade carmelita, nascido no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVII. Ele é ordenado no Carmo do Rio de Janeiro, na ordem dos Carmelitas Calçados, e, posteriormente, vai para Portugal, onde ele completa seus estudos, com um doutorado em Coimbra, tendo, com isso, uma ascensão muito rápida, em termos da hierarquia da própria ordem carmelita, e na própria estrutura da Igreja. Ele acaba galgando posições importantes dentro da ordem do Carmo de Lisboa e se torna, a partir de 1735, qualificador do Santo Ofício, um cargo extremamente importante, já que os qualificadores funcionavam como uma espécie de “tribunal superior” dentro do Santo Ofício, que analisava, quando necessário, as questões mais complicadas nas decisões do Santo Ofício, além de serem os responsáveis pela chancela das publicações dentro do Império Português. Qualquer livro, qualquer impresso, para virar público, passava pela avaliação dos qualificadores do Santo Ofício, isso pelo menos até 1765, quando o Marquês de Pombal  cria a Real Mesa Censória, retirando essa atribuição do Santo Ofício.
Então, isso fez de José Pereira de Santana um agente do Carmo muito importante. Ele chega a se tornar preceptor e confessor das filhas de Dom José I , tendo uma proximidade com o Paço Real muito grande, e dentro da própria ordem do Carmo. E é ele que vai escrever o trabalho do qual eu parto para analisar essa questão do culto aos santos entre os negros, que é justamente a vida de São Elesbão e Santa Efigênia. É um trabalho escrito por ele em dois volumes, o primeiro sobre a vida de São Elesbão, e o segundo sobre a vida de Santa Efigênia, nos quais Frei José procura criar uma tradição de ligação entre as histórias desses dois santos com a Ordem do Carmo. Os dois são tidos por frei José Pereira de Santana como religiosos carmelitas, incluindo sua própria iconografia: eles são representados com vestes carmelitas. Com isso, a própria imagem do Carmo vai estar associada à imagem desses dois santos, que são colocados como exemplos para a população de africanos e seus descendentes na América portuguesa.

IHU On-Line – O senhor se detém sobre o culto de dois santos específicos, Santo Elesbão e Santa Efigênia. Quem foram esses santos? Realmente existiram?
Anderson José Machado de Oliveira – Há toda uma tradição hagiográfica dentro da Igreja Católica que coloca Santo Elesbão como um imperador da Etiópia, em torno do século VI d.C., e Santa Efigênia como filha do rei da Núbia, por volta da época apostólica do cristianismo. Essa tradição existente em torno da vida de Santa Efigênia diz que ela teria inclusive se convertido ao cristianismo pelo apóstolo Mateus, e que Santo Elesbão teria sido um dos defensores do cristianismo na Etiópia não só contra a expansão muçulmana na África, mas também com relação aos próprios judeus. Essas histórias aparecem, mais ou menos, nos textos hagiográficos ligados a uma tradição tanto do cristianismo romano quanto do cristianismo oriental, copta, de matriz ortodoxa. Na verdade, é muito difícil saber efetivamente se Santo Elesbão e Santa Efigênia foram santos “reais” do ponto de vista da sua existência. Com relação a Elesbão, é mais provável que haja algum fundo de realidade na existência dele, até porque existem relatos nos próprios monastérios da Igreja copta, na Etiópia, sobre a existência de um imperador com esse nome.
No entanto, as histórias desses dois santos são histórias reapropriadas pela tradição do Carmelo em Portugal, já que, na época em que esses santos teriam vivido, seria impossível que eles fossem carmelitas. Se Elesbão foi um santo que viveu em torno do século VI da era cristã, e Efigênia teria vivido na época apostólica, cronologicamente a Ordem do Carmo não existia nesse período, ela só é criada no século XIII, posterior a história desses santos. Na realidade, há uma tradição inventada, para usar o termo de [Eric] Hobsbawm , em torno dessas histórias, que são trabalhadas a partir do frei José Pereira de Santana, ligando esses dois expoentes da santidade africana à Ordem do Carmo. Então, aí fica bastante evidente, na minha interpretação, que há uma apropriação com vistas ao processo de cristianização dos negros no interior do Império Português, como também de promoção da própria Ordem do Carmo, já que esses dois santos vão ser associados diretamente à ordem.

IHU On-Line – Frei José chamou Santo Elesbão e Santa Efigênia de “Atlantes da Etiópia”, associando-os à imagem do sol e da lua. O que esse simbolismo significava para a cultura negra?
Anderson José Machado de Oliveira – Esse simbolismo é dotado de significados não só para as culturas africanas, mas para a cultura cristã também, a questão de Cristo ser associado ao sol, e da lua como símbolo de fertilidade. Isso vai aparecer em algumas culturas africanas, que também fazem esse tipo de associação dessa simbologia. Há diversas manifestações dentro da relação com o homem com a natureza. O que eu procurei mostrar no livro é que, para algumas culturas de matriz africana que estavam dentro das irmandades onde esse culto vai ser difundido, havia uma associação entre o sol com algumas divindades das culturas africanas e também com a lua, ligadas à mulher, à fertilidade etc. Então, há um fundo de simbolismos que são comuns entre a cultura cristã e algumas culturas de matriz africana.

IHU On-Line – Qual o papel da Ordem dos Carmelitas dentro da Igreja Católica do período colonial? Como esses religiosos se posicionavam diante do regime escravagista?
Anderson José Machado de Oliveira – A Ordem do Carmo tinha uma posição importante dentro da estrutura da Igreja colonial. Em comparação com os jesuítas, essa importância era menor, já que os jesuítas vão se caracterizar como a grande ordem religiosa durante o período colonial. Mas o Carmo era, como as demais ordens religiosas, elemento importante na própria estrutura da Igreja, em termos de aquisição de bens, de proximidade com o poder. O próprio Frei José tinha uma relação muito próxima com o poder real, inclusive por ter sido confessor e preceptor das filhas de Dom José. Então, eu diria que, de uma forma geral, as ordens religiosas, e o Carmo entre elas, foram importantes na própria difusão do cristianismo, do catolicismo, na América portuguesa. Até porque, pela determinação do Padroado Régio, as ordens tinham a obrigação de missionar, de expandir a fé cristã. Esse era o compromisso que elas desempenhavam dentro da estrutura da Igreja.
Com relação à escravidão, não só a Ordem do Carmo, mas as ordens religiosas e a Igreja Católica em geral tinham uma posição que não condenava a escravidão. A escravidão era vista como um elemento, de certa forma, natural, dentro da estrutura da época, até mesmo em função de que os africanos eram vistos como povos que carregavam a marca do pecado, e a escravidão era uma forma de purgar esse pecado, de prepará-los para uma vida melhor após a morte. Então, essas ordens trataram a escravidão como algo natural, a partir de uma perspectiva que não contradizia a própria utilização da mão-de-obra africana no Brasil, vista justamente por essa ótica. O próprio Antônio Vieira , no século XVII, tem um sermão em que ele fala justamente disso, da naturalidade da escravidão, de como a escravidão era algo natural, e que era preferível que os africanos estivessem no Brasil como escravos do que como pagãos em suas terras de origem, já que como escravos aqui eles estariam sendo inseridos dentro do cristianismo e estariam tendo justamente a oportunidade de purgar a marca do pecado em função da cristianização e da própria escravidão.

IHU On-Line – Em linhas gerais, como podemos compreender a relação entre os negros e o catolicismo no período colonial? Que resquícios podemos perceber dessa relação na fé católica brasileira de hoje?
Anderson José Machado de Oliveira – A relação dos africanos e de seus descendentes com o catolicismo acaba se dando, a meu ver, por uma perspectiva de releitura desse catolicismo no nível das práticas, efetuada durante o período colonial. Uma coisa que eu procuro mostrar no meu livro é que há um projeto de conversão dos negros. Esse projeto tem os seus níveis de efetividade, de concretização, já que alguns desses santos, difundidos pelas ordens, são efetivamente incorporados à crença dos negros, principalmente através das irmandades, nas quais eles serão cultuados. Há um processo aí em que eu vejo algum sucesso da Igreja na conversão dos negros. No entanto, outra coisa que eu procuro demonstrar é que, se esse projeto de conversão tem sucesso, esse sucesso é sempre limitado, do ponto de vista de que essas populações acabam re-elaborando essa crença católica a partir também das suas matrizes culturais de origem africana. No caso dos santos, por exemplo, eles acabam se tornando elementos de construção de identidades étnicas no período colonial, identidades essas que procuram recriar alguns aspectos dessa memória existente na África, que vão ser, de alguma forma, paralelas ao próprio culto católico.
Então, essa conversão dos negros passa sempre por um processo de releitura dos códigos cristãos e católicos e de adaptação às culturas africanas, seja através da utilização dos santos como símbolos de reconstrução de identidades étnicas de matrizes africanas, seja através da simbolização desses santos com aspectos da cultura africana. Uma questão que eu chamo atenção no livro é o papel de Santa Efigênia, por exemplo. Há uma aproximação muito maior, pelo que eu pude ver, com a figura de Efigênia do que com a de Elesbão. A popularidade de Efigênia é maior do que a popularidade de Elesbão entre negros. A meu ver, isso está muito associado não só à questão da imagem da santa mulher, que, no cristianismo, tem sempre uma proximidade com a imagem de Maria, mas também ao papel que as mulheres tinham nas culturas de origem africana, nas quais elas eram as transmissoras, eram cadeias de transmissão da cultura, eram elementos importantes na própria circulação de informações e na própria manutenção da tradição africana, que está muito ligada às mulheres. Existem pesquisas hoje do Brasil colonial que mostram muito bem isso, como as libertas acabavam assumindo um papel importante enquanto lideranças dentro das suas respectivas comunidades.
No candomblé hoje e nas outras religiões de matriz africana, o papel da mulher é o papel fundamental, como as próprias lideranças. É quase um matriarcado, o que, para mim, é uma herança clara dessa posição da mulher na estrutura das culturas africanas e de como isso vai ser recriado no Brasil, seja através do catolicismo, do culto aos santos e das próprias religiões africanas, que vão se re-estruturar a partir do período colonial e se intensificando depois em outras etapas da própria construção da nossa história.

IHU On-Line – Que análise o senhor faz sobre a relação entre as comunidades afro-brasileiras e a religião em geral hoje? E com relação ao catolicismo?
Anderson José Machado de Oliveira – A religião em geral tem um papel importante dentro da reconstrução das identidades de origem africana no Brasil. A religião é, a meu ver, por excelência, o elemento de re-elaboração cultural, até mesmo de resistência cultural, dentro da própria redefinição das culturas africanas na América portuguesa. Por outro lado, o catolicismo é a religião do colonizador, mas, ao mesmo tempo, é também a religião que vai ser relida por esses negros, que vão se apropriar do catolicismo também como uma possibilidade de reconstrução dessas identidades. Não do catolicismo idealizado pela hierarquia da Igreja, mas o catolicismo possível, o que alguns chamam de “catolicismo popular”, que seria essa reinterpretação do catolicismo segundo as diversas matrizes culturais existentes no período colonial, dentre elas as próprias culturas de origem africana.

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