Edição 334 | 21 Junho 2010

O Budismo e “as outras”: em busca de uma teologia das religiões

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Moisés Sbardelotto

Para o cientista das religiões Frank Usarski, deve-se evitar a “ideia ingênua” de que todas as religiões compartilham uma essência comum. Por isso, é preciso reconhecer as diferenças e os pontos inconciliáveis entre elas

Em razão do seu recente estudo sobre o Budismo, Frank Usarski foi o primeiro intelectual a receber o título de livre-docente em Ciência da Religião no Brasil. Nascido na Alemanha, chegou ao Brasil, em 1998, e, desde então, faz parte do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Como resultado de sua pesquisa, foi publicado o livro O Budismo e as outras. Encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais (Aparecida: Ideias & Letras, 2009).

Conforme as palavras do presidente da banca que lhe conferiu o título, Prof. Dr. João Décio Passos, publicadas no prefácio do livro, Usarki “revela um olhar e um método originais que elucidam um objeto inédito – o exercício efetivo do inter-religioso –, lança possibilidades metodológicas – as bases para uma teologia das religiões – e vislumbra horizontes de ação inter-religiosa – práticas ecumênicas e éticas”.

Nesta entrevista, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, Usarki afirma que o Budismo, em termos de diálogo inter-religioso, “demonstra uma tendência de evitar brigas sobre formulações dogmáticas 'secundárias'. Ao mesmo tempo, olha geralmente com simpatia para qualquer método – de origem budista ou não – que supostamente contribuiu para a evolução espiritual na direção do nirvana”. Porém, afirma, “nenhuma religião nasce e se desenvolve em um vácuo, e poucos dos seus representantes são santos, mas sim sujeitos a tentações 'mundanas'. Há momentos na história que demonstram que o Budismo também é vulnerável nesse sentido”. E aqui Usarski analisa, também, os desafios do pluralismo religioso, refletindo ainda sobre o conceito de ética mundial, defendido por Hans Küng.

Frank Usarski é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. É pós-doutor em Ciências da Religião pela Universidade de Hannover, na Alemanha. É fundador e coordenador da Revista de Estudos da Religião – Rever – e também é líder do grupo de pesquisa Centro de Estudos de Religiões Alternativas de Origem Oriental no Brasil – Ceral. De suas obras, além de O Budismo e as outras, citamos Constituintes da Ciência da Religião. Cinco ensaios em prol de uma disciplina autônoma (Paulinas, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais foram os “encontros” e os “desencontros” mais marcantes entre o Budismo e as outras religiões mundiais? O que significaram para a construção do Budismo?

Frank Usarski – Geralmente, um desafio representado pelo “outro” torna consciente as especificidades do “próprio”, tanto no sentido do diferencial de doutrinas e práticas já elaboradas quanto no sentido de “lacunas” no próprio repertório e a necessidade de refletir sobre esses elementos negligenciados, pelo menos em função de uma apologia mais eficaz em oposição ao outro. Seja como for, o intercâmbio – pacífico ou conflituoso – frequentemente estimula, dessa maneira, a “produção” de “bens religiosos”, contribuindo para a dinâmica pela qual a história das religiões se caracteriza. 

Por exemplo, grande parte das modificações do Budismo Mahāyāṇa – ramo dominante no Extremo Oriente –, em comparação como o Budismo Teravāda – corrente forte nos países do Sul e Sudeste da Ásia –, são reflexões da necessidade do Budismo de se posicionar diante das religiões autóctones na China, sobretudo diante do Taoísmo. Algo semelhante pode se dizer sobre o Budismo Tibetano cujo panteão e diversas técnicas espirituais são concessões ao Bön, religião antiga da região.

IHU On-Line – O senhor examina a relação do Budismo com as outras religiões mundiais a partir de três categorias: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo. Como o Budismo encarna essas três categorias?

Frank Usarski – As três categorias acima mencionadas são frequentemente citadas na literatura especializada sobre o diálogo inter-religioso. No caso do Budismo, elas são heuristicamente úteis, mas não podem ser aplicadas de maneira dura. Há duas razões principais para um olhar mais diferenciado. Primeiro, encontram-se, nas escrituras do Budismo, atitudes que não se pode associar a nenhuma das três categorias mencionadas. 

Isso vale, por exemplo, para a atitude chamada “avyakata”. O termo técnico significa “perguntas não respondidas” e encontra-se em sutras em que Buda não se posiciona diante de uma disputa doutrinária. Nesses casos, Buda mostrou uma abertura que atribui ao ouvinte do sermão a liberdade de tomar suas conclusões próprias. O silêncio de Buda diante da dissonância cognitiva dos seus discípulos não cabe em nenhuma das três categorias “clássicas” do diálogo inter-religioso.

Se os textos budistas expressam claramente uma postura exclusivista, pluralista ou inclusivista, tem-se que perguntar se a atitude se refere a uma doutrina ou uma prática espiritual. Diferentemente do Cristianismo, por exemplo, o Budismo não insiste na verdade das suas mensagens, mas destaca a utilidade das suas práticas em que consta um caminho espiritual. Nesse sentido, o Budismo – embora não abra mão do conceito do nirvana como objetivo soteriológico máximo – demonstra uma tendência de evitar brigas sobre formulações dogmáticas “secundárias”. Ao mesmo tempo, olha geralmente com simpatia para qualquer método – de origem budista ou não – que supostamente contribuiu para a evolução espiritual na direção do nirvana. Esse exemplo indica que, em determinados momentos, as três posturas não são alternativas, mas desempenham um papel quase simultâneo. 
 
IHU On-Line – Em uma perspectiva histórica, não haveria um “budismo”, mas sim um grande mosaico de budismo, caracterizado por duas grandes tradições: o Theravāda e o Mahāyāna. Quais são as diferenças entre elas?

Frank Usarski – Há muitas diferenças no que diz respeito à doutrina, às práticas, à ética e a questões organizatórias das duas correntes. Devido às restrições formais nessa entrevista, é possível citar apenas alguns exemplos. Quanto à dimensão das doutrinas, vale a pena lembrar que há subcorrentes mahāyānistas, como a “Terra Pura”, cujos ensinamentos implicam a ideia de um passo soteriológico intermediário no sentido de um possível alcance de uma esfera transcendental que ainda não representa o nirvana, mas fornece condições para uma evolução acelerada na direção da salvação completa. 

Outra diferença fundamental consta na teoria do carma. Os theravādins insistem na insuperabilidade da lei do carma e na responsabilidade exclusiva de cada indivíduo para com seu próprio destino espiritual. O Mahāyāna rompe com o “automatismo frio” do carma na versão dos theravādins e ensina a possibilidade de que figuras salvíficas – bodhisattvas e Budas como o Amitabha (= Amida) – interfiram positivamente nas vidas dos seres menos evoluídos. 

No que diz respeito a questões organizacionais, pode-se citar as redefinições mahāyānistas da relação entre monges e leigos em favor dos leigos – um resultado da ênfase do confucionismo na família e na piedade filial – e consequentemente da aversão contra uma vida monástica que o Budismo teve que respeitar para se enraizar no Extremo Oriente.

IHU On-Line – Segundo o senhor, existiriam “estratégias budistas tendentes à abertura substancial”, ou seja, uma tendência a deixar certos problemas em aberto sem assumir posições dogmáticas e fechadas sobre determinados problemas. Isso foi positivo para a relação do Budismo com as demais religiões?

Frank Usarski – Já mencionei a atitude chamada avyakata. Há diversos trechos no cânone páli (textos mais antigos da tradição budista), entre eles o Kalama Sūtra e o Tevijja-Sūtra, em que Buda quer superar a fé cega dos seus ouvintes incentivando-os a contemplar autonomicamente as hipóteses apresentadas em disputas inter-religiosas e a chegar a uma opinião própria. 

Essa postura é compatível com a autoimagem do Budismo moderno de não representar uma “religião” propriamente dita, interessada em atividades proselitistas, mas uma “filosofia de vida” que garante a liberdade daqueles que se associam a ela. Trata-se de uma atitude que combina com o espírito de uma época em que as “grandes narrativas” perderam sua relevância, e as autoridades religiosas não podem mais contar com sua autolegitimidade baseada em um status formal. Nesse sentido, o Budismo tem vantagens sobre outras religiões, cujas tradições exigem uma fidelidade explícita para com suas escrituras sagradas.
 
IHU On-Line – Como o não-teísmo do Budismo influencia sua relação com religiões fortemente monoteístas como o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo?

Frank Usarski – O termo “não-teísta” refere-se à divergência entre o Budismo e religiões que partem da ideia de um Deus eterno que existe fora do cosmo criado por ele e, portanto, não é sujeito da impermanência que determina a vida relativa. É importante ressaltar isso, uma vez que, no decorrer da sua história, o Budismo incluiu diversas divindades locais no seu panteão, porém “desvalorizou” as figuras celestiais incorporadas do Hinduísmo e do Xamanismo tibetano, localizando esses seres supra-humanos dentro da roda de vida (samsara).

É obvio que essa cosmovisão dificulta o diálogo com religiões monoteístas, tanto no sentido cosmológico quanto no sentido soteriológico. Em vez de um ato livre de um criador, o Budismo conta com a chamada “gênese condicionada”, ou seja, com um mecanismo impessoal responsável pelos acontecimentos nas esferas relativas da nossa existência. Em vez de princípios cristãos, como o de uma natureza humana contaminada pelo pecado original que impede a autossalvação do indivíduo e de um Juízo Final, o Budismo conta com a lei do carma, a autorresponsabilidade de cada indivíduo e da sua capacidade de alcançar o nirvana por esforços próprios.

Não se pode esquecer as tentativas de mediação entre o Budismo e as religiões monoteístas por parte de filósofos associados à chamada Escola de Kyoto, particularmente nas obras de Masao Abe, mas essas construções intelectualmente sofisticadas parecem bastante forçadas e confirmam indiretamente o oposto daquilo que é intencionado pelos pensadores afins, ou seja: intensificam a impressão de que, no nível em questão, há incompatibilidades inconciliáveis entre termos ontológicos e soteriológicos entre o Budismo e as religiões monoteístas.   

IHU On-Line – Em um dos capítulos do livro, o senhor fala de “divergências substanciais” entre o Budismo e as demais religiões mundiais. Em linhas gerais, quais seriam elas?

Frank Usarski – Há alguns temas recorrentes no diálogo entre o Budismo e o Hinduísmo, Judaísmo, Cristianismo e o Islã. O tema mais frequente é o do teísmo nas tradições não-budistas que o Budismo vê como um ponto crítico. Outros assuntos são mais específicos e têm sido abordados em diálogos com uma das quatro religiões acima mencionadas. Quanto ao Cristianismo, por exemplo, o Budismo tem dificuldades de atribuir a Jesus Cristo um status divino que ultrapassa sua apreciação “apenas” como um mestre espiritual. 

Além disso, uma retrospectiva revela que determinados tópicos ganharam uma relevância maior em certos momentos históricos. Para citar novamente o Cristianismo, budistas europeus do início do século XX criticavam fortemente a presença de missionários cristãos em países como China ou Birmânia e o impacto “destrutivo” das respectivas atuações sobre a cultura budista local.

IHU On-Line – O senhor afirma que há “um preconceito fortemente enraizado no senso comum [de] que ‘bem lá no fundo’, no âmago, todas as religiões partem dos mesmos princípios, têm objetivos semelhantes e se unem no desejo de harmonia e de paz no mundo”. Nesse sentido, é possível uma ética mundial, como  defende Hans Küng?

Frank Usarski – Como cientista da religião interessado na comparação das religiões, tenho problemas com a ideia ingênua de que todas as religiões querem a mesma coisa e compartilham uma essência comum. Ao mesmo tempo, concordo com a busca de Hans Küng  para uma ética mundial. Mas esta só pode der construída a partir do reconhecimento das particularidades, da integridade e da dignidade de cada um dos interlocutores envolvidos. Caso contrário, acontecerá o mesmo que ocorreu com os chamados “direitos humanos universais”. A respectiva declaração foi lançada em 1948, portanto, em um momento no qual países ocidentais representavam a maioria dos membros da ONU. Depois da descolonização e da entrada de países recém emancipados, foram articuladas dúvidas sobre a “universalidade” dos valores oficialmente sancionados. 

O resultado foi que, em 1981, a Organização para a Unidade Africana lançou a chamada “Carta de Banjul dos Direitos Humanos”, que representa uma reformulação dos direitos “ocidentais” de 1948. O mesmo vale para Declaração de Cairo de Direitos Humanos pela XIX Conferência Islâmica dos Ministros Exteriores em Cairo (1990). Isso significa que há partes do mundo insatisfeitas com a versão oficial dos Direitos Humanos, uma vez que os últimos não refletem as experiências historicamente acumuladas por povos localizados em partes “não-ocidentais” do mundo. 

É obvio que uma ética mundial deve transcender essas frentes. Mas isso só pode acontecer quando as vozes de todos os interlocutores têm o mesmo peso. O primeiro passo nessa direção é o reconhecimento do fato de que há muitas plausibilidades em jogo e de que muitas das diferenças têm suas raízes em doutrinas religiosas distintas e em alguns pontos inconciliáveis.

IHU On-Line – Pode-se dizer que o Budismo é uma religião tolerante em relação com as demais? Quais seriam os limites e possibilidades de diálogo entre o Budismo e as demais religiões mundiais?

Frank Usarski – O Budismo desfruta uma imagem muito positiva. Muitos o veem como a mais pacífica dentre as grandes religiões. Em minha opinião, a doutrina budista tem esse potencial. Porém, nenhuma religião nasce e se desenvolve em um vácuo, e poucos dos seus representantes são santos, mas sim sujeitos a tentações “mundanas”. Há momentos na história que demonstram que o Budismo também é vulnerável nesse sentido. 

Isso vale, por exemplo, para a instrumentalização de instituições budistas locais por parte do governo japonês em função da perseguição violenta de cristãos no país a partir de 1631. Mas, ao longo da história, e comparado com as duas outras religiões universais, isto é, o Islã e o Cristianismo, o Budismo pode ser considerado uma religião norteada, sobretudo, pela ideia de convivência pacífica.

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