Edição 334 | 21 Junho 2010

A lucidez de José Saramago

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Rafael B. Vieira

Leia o artigo de Rafael B. Vieira, mestrando em Direito na Puc-Rio e graduado em Direito pela UFRJ sobre o escritor português José Saramago, falecido na última semana.

Certa vez, Lukács  apontava o romance como gênero artístico dominante na sociedade burguesa (partindo de Hegel ), enquanto representante da máxima expressão artística de uma determinada época. Mostrando as contradições da sociedade sem tentar em si soluções conciliatórias, o romance penetraria nas relações da época e as revelaria em seu caráter histórico, sendo nesse sentido realista. Seria uma estrutura narrativa que concentra e encarna as tendências que se manifestam na realidade, impelindo-a ao extremo para tentar reproduzi-la, diferenciando-se assim de uma mera reprodução.
Saramago tinha convicção da conexão de seus romances com a dinâmica da sociedade que o mesmo fazia parte, e muitas de suas obras nos deixam reflexões com as quais teremos que lidar na construção de uma sociedade mais justa. A obra “Ensaio sobre a lucidez” (São Paulo: Companhia das Letras, 2004) pode fazer parte deste contexto. Saramago retrata a imagem de uma cidade colocada sob o mecanismo formal do estado de exceção após sua população ter votado maciçamente em branco. O maior “crime” dessa população foi o fato de que oitenta e três por cento de seus eleitores votaram em branco, mas uma contestação daí emerge: O voto em branco não era permitido nessa comunidade hipotética de Saramago? Sim, e era assim que respondiam a maioria dos seus personagens quando indagados se haviam votado em branco. Respondiam que estavam no direito de não responder a essa pergunta e que o voto em branco era garantido pela lei. Mas oitenta e três por cento era uma proporção demasiado alta para os representantes políticos do romance. Alegando quebra do contrato social com a realidade democrático-institucional-estatal, puseram a cidade num estado de exceção jamais revogado.

Saramago em seu romance cria uma realidade, e por isso um não-real, mas enquanto ser histórico comunica-se com o real retirando dele traços e indícios para expô-los manifestando em seu romance algumas características reais das sociedades modernas. Essa obra de Saramago reflete as preocupações de um grande escritor com a realidade de seu tempo, onde assistimos, para falar com Giorgio Agamben, a uma irrupção sem precedentes do estado de exceção, tornando este mecanismo, criado para supostamente para situações excepcionais, uma técnica de governo.

Esta obra de Saramago é dado concreto para pensar não somente o mundo contemporâneo e a irrupção sem precedentes de inúmeras guerras, oficiais e não oficiais, que dizimam milhares de vidas humanas todos os dias. É dado concreto para pensar a vida humana tornada objeto, onde milhares de crianças e adultos nos deixam por não terem condições de subsistir, em tempos que o mundo desloca olhares seletivos para a África. É dado concreto também para pensar no Rio de Janeiro onde se implementa a sangue e fogo uma política de militarização da vida social, que torna milhares de seres humanos alvos de um poder sem precedentes em tempos ditos democráticos, onde sua própria pobreza é criminalizada.

Faz sentido referir-se à Saramago não somente como alguém que nos deixa, mas lembrar dos desafios que suas reflexões estabelecem para a história social humana, tornando sua obra instrumento vivo de possibilidades de emancipação da vida, preocupação recorrente de Saramago como escritor e como pessoa.

“Nascemos, e nesse momento é como se tivessemos firmado um pacto para toda a vida, mas o dia pode chegar que nos perguntemos. Quem assinou isto por mim?”

José Saramago (1922-2010)

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