Edição 334 | 21 Junho 2010

“Jogadores excepcionais tendem a fazer jogadas brasileiras”

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Graziela Wolfart, Márcia Junges e Patricia Fachin

Para Ronaldo Helal, o Brasil ainda é o país do futebol, mas outras coisas no país também estão dando certo.

Com a globalização, o professor Ronaldo Helal considera que a relação do brasileiro com a seleção brasileira mudou. “Essa relação ainda é forte, mas é menor do que há 30 anos. Se você perguntar para os torcedores se eles torcem mais para seus times locais ou para a seleção brasileira, a pesquisa irá tender para os times locais. Essa mudança se deve à globalização, ao fato de muitos jogadores brasileiros jogarem na Europa”, explica. Na entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line, Helal acrescenta que “hoje também existe o fenômeno da desterritorialização do ídolo. Jogadores muito jovens saem do Brasil muito cedo (...) e ficam pouco tempo nos seus clubes. Então, forma-se uma seleção com pouca identificação. Antigamente, era possível identificar a que time cada jogador estava vinculado. Hoje, isso não existe mais”. Para Ronaldo Helal, é muito perigosa a equação miséria = grande futebol. “Se você me convencer que o grande futebol nasce da miséria, eu iria preferir que o Brasil não tivesse grande futebol e nem miseráveis. Há uma falácia nessa questão que as pessoas não percebem, nem o jornalista, porque, se você estender esse argumento, acaba defendendo a pobreza”.  
 
Ronaldo Helal é professor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ e autor de Passes e Impasses: Futebol e Cultura de Massa no Brasil (Petrópolis: Vozes, 1997) e A Invenção do País do Futebol: Mídia, Raça e Idolatria (Rio de Janeiro: Mauad, 2001).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o nexo que une mídia, raça e idolatria na perspectiva do futebol?

Ronaldo Helal – Houve um momento, na história do Brasil, em que não havia uma identidade nacional definida. Começou-se a tentar buscar uma identidade nacional, primeiro, em 1922, com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, e, depois, a partir da década de 1930, com o nacionalismo de Getúlio Vargas, o Estado Novo, o projeto integracionista deste governo, e com novas formas de conceituar o país a partir da obra de Gilberto Freyre , Casa Grande e Senzala, e de Sérgio Buarque de Holanda , Raízes do Brasil. Até a década de 1930, tínhamos uma maneira de conceituar o país pelas lentes de um pensador como Oliveira Viana , ou Nina Rodrigues , que era uma maneira que via a mistura racial do Brasil como algo negativo, que poderia explicar o “atraso” do país. A partir da década de 1930, principalmente com a obra de Freyre, a mistura passa a ser um valor positivo. Onde entra a mídia e o futebol? Nesse momento, o jornalista Mário Filho, que pode ser considerado o fundador do jornalismo esportivo no Brasil, começa a perceber que o futebol seria um veículo interessante para se construir uma ideia de nação brasileira. Ele era amigo de Gilberto Freyre, o que facilitou muito seu trabalho. Então, nas suas crônicas esportivas, Mário Filho começa a louvar a abertura racial, com um estilo que mostrava o brasileiro como fruto dessa mistura. Em 1938, durante a copa do mundo, Gilberto Freyre, que também era jornalista e escrevia uma coluna no Diário de Pernambuco, escreveu um artigo chamado “Football mulato”, em que ele lança as bases para a simbologia do futebol brasileiro. E Mário Filho, nessa esteira, escreve, em 1947, O Negro no Futebol Brasileiro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964), com o prefácio de Gilberto Freyre. Esse é um livro que trata da saga do negro no futebol brasileiro, mostrando o negro como fundador desse estilo que seria único do Brasil. Essa foi uma construção simbólica que teve muita eficácia. Os brasileiros até muito recentemente, e alguns até hoje, acreditam que somos os únicos a praticar um determinado estilo de futebol, e que esse estilo teria sido o resultado da mistura de raças.

IHU On-Line - Quais as relações que podemos perceber entre o futebol e uma projeção do torcedor em seus ídolos? O craque é o brasileiro que deu certo?

Ronaldo Helal – O craque é um indivíduo extremamente talentoso e é impossível explicar o seu talento. Para chegar ao estrelato, os jogadores renunciam várias coisas. Há um glamour na garotada que quer ser jogador de futebol, e eles acham que jogadores são milionários, têm várias mulheres e carros importados do ano. Esses são pouquíssimos. Muitas famílias pobres colocam em seus filhos essa ideia de que basta ser jogador de futebol para tirar a família da miséria. O craque acaba sendo o modelo, a idolatria. Há uma tensão que é básica da cultura de massa. É essa tensão entre a massificação crescente, que a pós-modernidade enfatiza, e o desejo das pessoas de ser singular. Então, só existem os famosos porque existem os anônimos. O ídolo é uma pessoa singular por natureza porque ele tem um dom extraordinário. O fã, para não ser mais um no meio da multidão, quer ser o fã número 1. Ele tem essa necessidade de se singularizar dos demais. Se o craque é um exemplo do Brasil que deu certo, não sei. Penso que o país também tem dado certo em outros aspectos. Se observarmos a maneira como o brasileiro vivenciou a derrota da Copa do Mundo de 50, no Maracanã, e a maneira como ele comemorou a Copa de 70, no México, e se compararmos com as vitórias do Brasil em 94, nos EUA, e em 2002, na Coreia e Japão, e a derrota da final para a França, em 98, temos uma diferença. Nas décadas de 50 e 70, essas derrotas transcenderam o universo esportivo e foram vividas como derrota e vitória de um projeto de nação brasileira. Quando, em 1994 e 2002, o Brasil venceu, e, em 1998, o Brasil perdeu, as vitórias e derrotas foram celebradas no campo esportivo. Isso porque, naquele momento, se vivia uma época de consolidação dos estados/nações no mundo todo. A globalização fala em fragmentação de identidades, desterritorialização do ídolo. Desde 1994, o cenário brasileiro está mudando e, há 16 anos, temos estabilidade econômica. O país está assumindo cada vez mais uma posição de liderança na América Latina. A construção do Brasil - país do futebol foi exitosa e com eficácia simbólica muito grande para jornalistas como Mário Filho, Nelson Rodrigues e outros. O Brasil ainda é o país do futebol, mas outras coisas no país também estão dando certo. 

IHU On-Line - Como podemos compreender que um número expressivo de atletas seja originário de camadas populares? A partir disso, é possível pensarmos no futebol como uma experiência de igualdade e justiça social?

Ronaldo Helal – Ele é visto como uma via de acesso para os mais desfavorecidos. O Kaká é de classe média, mas, em geral, jovens de classe média, mesmo com talento, não querem passar por provações para seguir a carreira de jogador de futebol. No Brasil, a maioria dos jogadores vem de camadas mais pobres, mas é uma falácia pensar que o bom futebol só surge dali. Temos muito mais pobres do que ricos. Então, dos jovens pobres que foram jogadores de futebol, outros milhares que também foram jogadores continuam pobres, desempregados, ou com empregos subalternos. A mídia enfatiza muito a origem do ídolo, e mostra seu berço pobre. Isso não é mentira, mas ninguém questiona que outros meninos ficaram ali. E, mais, quando um jogador brasileiro faz um gol bonito, o Galvão Bueno fala: “Esse é um gol tipicamente brasileiro, que saiu das favelas do Brasil e das misérias brasileiras”. É muito perigosa essa equação miséria = grande futebol. Se você me convencer que o grande futebol nasce da miséria, eu iria preferir que o Brasil não tivesse grande futebol e nem miseráveis. Há uma falácia nessa questão que as pessoas não percebem, nem o jornalista, porque, se você estender esse argumento, acaba defendendo a pobreza.  

IHU On-Line - O que define o futebol brasileiro hoje em relação aos demais países do mundo?

Ronaldo Helal – Grandes jogadores de futebol, de qualquer país do mundo, têm um estilo parecido. Jogadores excepcionais tendem a fazer jogadas brasileiras. Isso é próprio do esporte. O Brasil produz jogadores mais excepcionais porque tem mais jogadores federados. Digo que o país é capaz de montar três seleções brasileiras em condições de vencer a copa do mundo. Mas se fosse uma “Copa do Mundo Tabajara”, o Brasil também teria condições de ganhar o título tabajara. Se observarmos o Zidane , o Zico  e os melhores jogadores da Copa de 54, veremos que eles fazem coisas semelhantes. Houve, no caso brasileiro, um período, de 50 a 70, em que produzimos seleções fantásticas e jogadores maravilhosos: Pelé , Garrincha, Paulo César. Nesse momento, ratificou-se a confusão que Mário Filho fazia de que o futebol brasileiro era único, um futebol estético, uma dança dionisíaca, como dizia Gilberto Freyre. Isso é eficaz. Eu trabalho com a eficácia simbólica. Essa crença existe. Empiricamente, não é possível comprar isso. As pessoas mais velhas, que viram a seleção na Copa de 54, irão dizer que ela tinha um estilo brasileiro. É interessante de ver que esse mito é tão pregnante, que os próprios argentinos, que têm uma posição simbólica parecida com a nossa, dizem que o futebol argentino é fundado no futebol arte em contraposição ao futebol inglês, que seria o futebol de força. Só que os argentinos têm uma visão de que os brasileiros são os profissionais do jogo bonito. Isso ocorreu por conta da Copa de 70. Aquela seleção era emblemática para o mundo inteiro como o modelo de como jogar futebol. Era uma seleção talentosa, mas poucas pessoas lembram que era uma seleção muito bem treinada e que ficou dois meses em Guadalajara para poder se adaptar à altitude. Então, a seleção não tinha apenas talento. Para o talento poder fluir, naquele momento, foi necessária uma infraestrutura que contava com psicólogos, nutricionistas e outros profissionais. De lá para cá, ficou complicado falar em estilo. Se o Messi  fosse brasileiro, diriam que ele teria um estilo brasileiro. Quando a seleção brasileira está presente é que surge essa discussão do estilo. Mas esse é um debate mais da região sudeste. Sinto que no sul a questão da raça e da garra são mais valorizadas do que as questões de estética. Nos campeonatos locais ou brasileiros, ninguém está interessado nessa discussão. Num dado momento em que o Santos aparece com jogadores fantásticos como o Robinho e Neymar, fala-se em estilo. Se, de todos os times brasileiros, apenas o Santos faz futebol arte, pergunto: ele é a regra ou a exceção? O mesmo técnico que está no Santos hoje, esteve no Vasco. Por que ele não fez o Vasco jogar da mesma maneira? Porque não tinha o material humano que tem o Santos. Os jogadores são tão geniais, que o técnico pode dar a tática, mas eles vão continuar fazendo jogadas geniais.

IHU On-Line – Antes o futebol não tinha a dimensão global. O que muda no futebol a partir dessa perspectiva globalizada do esporte?

Ronaldo Helal – Penso que mudou a relação do brasileiro com a seleção brasileira. Essa relação ainda é forte, mas é menor do que há 30 anos. Se você perguntar para os torcedores se eles torcem mais para seus times locais ou para a seleção brasileira, a pesquisa irá tender para os times locais. Essa mudança se deve à globalização, ao fato de muitos jogadores brasileiros jogarem na Europa. Nesse sentido, jovens acompanham o campeonato espanhol e italiano e, por meio da Internet, os torcedores conhecem o perfil e a história de todos os jogadores. Hoje também existe o fenômeno da desterritorialização do ídolo. Jogadores muito jovens saem do Brasil muito cedo. O exemplo do Messi é o mais absurdo: ele saiu da Argentina com 13 anos para jogar na Espanha. Os argentinos já estão questionando se ele é argentino ou espanhol, e ele respondeu que é argentino. Como ele não joga bem na seleção argentina, os torcedores dizem que ele não é argentino. Existe um fenômeno de que os jogadores ficam pouco tempo nos seus clubes. Então, forma-se uma seleção com pouca identificação. Antigamente, era possível identificar a que time cada jogador estava vinculado. Hoje, isso não existe mais.

IHU On-Line - Por que o senhor afirma que a crise do futebol brasileiro é um problema sociológico? Essa crise permanece até hoje ou mudou seu contexto?

Ronaldo Helal – Estudei essa questão da crise quando estava defendendo minha tese de doutorado, na Universidade de Nova Iorque. Depois de 1974, a mídia passou a usar a expressão crise do futebol brasileiro, e ela era dramatizada na mídia como alguns fatores inter-relacionados, como a queda de público dos estádios, pobre situação financeira dos clubes, campeonatos desorganizados e muitos jogadores indo para o exterior. Então, a crise era um processo que deveria terminar na profissionalização dos dirigentes, o que quase aconteceu, quando foi fundado, em 1987, o Clube dos Treze. O futebol, a partir desse momento, mudou. Os campeonatos brasileiros foram melhor organizados, mas, ainda assim, basta o Brasil não ir bem em uma Copa do Mundo para que a imprensa volte a falar em crise. A crise não existe de maneira palpável; ela é muito mais uma dramatização da mídia e aparece em alguns contextos. 

IHU On-Line - Quais são as peculiaridades na narrativa argentina sobre o futebol brasileiro? Ela se aproxima da forma como o Brasil se manifesta em relação aos seus hermanos?

Ronaldo Helal – Pesquisei os jornais argentinos da Copa de 70 até 2002 e, depois, os de 2006. Minha surpresa foi perceber que a nossa provocação foi muito maior do que a deles conosco. Eles torciam pelo Brasil abertamente sempre que a Argentina estava fora da Copa. Eles têm uma admiração profunda pelo nosso futebol. É claro que, com a globalização e o uso da Internet, os argentinos foram se dando conta de que os brasileiros torcem muito contra eles. Lembro de uma reportagem publicada em 1998, feita pela correspondente do Clarin no Brasil, em que ela se mostra surpresa ao perceber que os colegas brasileiros torciam contra a Argentina e a favor da Holanda. Ela não sabia se tal reação estava relacionada com o medo dos brasileiros jogarem contra a Argentina, ou, se, de fato, nós torcíamos para um time europeu. Há vinte anos, o nosso adversário era o Uruguai, mas como o país perdeu força em Copas do Mundo, nós inventamos o argentino como o “nosso outro”. Estudei o debate entre Pelé e Maradona. Até 1998, esse debate não aparecia na mídia. Pelé era o rei, e Maradona, seu herdeiro. Pelé era colunista do Clarin, e, em 1990, o jornal destacou: “Vamos ver a hora de ter, mais uma vez, Pelé como nosso colunista, aquele que foi o melhor do mundo na apaixonante carreira de jogador de futebol”. Apenas em 2002, surge a comparação entre ambos e, neste momento, Maradona teria ganhado. Isso, em minha opinião, foi um elemento compensatório: como o Brasil teve uma galeria de jogadores que foram considerados melhores do mundo, Maradona entra como compensatório.

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