Edição 334 | 21 Junho 2010

Brasil: país do futebol?

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Graziela Wolfart

Fátima Ferreira Antunes defende que a experiência de assistir a uma “primeira Copa do Mundo” é vista como um marco na vida de um torcedor, uma experiência inicial de pertencimento a algo maior, que ultrapassa a família e a escola 

“Hoje está consolidada, no imaginário popular, a ideia de que o Brasil é o país do futebol, de que os jogadores brasileiros são os melhores do mundo e de que os brasileiros têm um dom praticamente ‘natural’ para esse esporte. Esse imaginário, no entanto, é resultado de um longo processo de construção, que passou pelo nacionalismo do período Vargas, pelo otimismo do pós-guerra e pela derrota de 1950, pelos títulos mundiais de 1958, 62 (que coincidiram com a euforia dos anos JK), pela Copa de 70 no contexto do milagre econômico, pela crise dos anos 1980, seguida de perto pelos 24 anos (entre 1970 e 1994) sem conquistar um novo título. Imaginário que está em permanente construção e reconstrução”. A análise é da socióloga Fátima Ferreira Antunes. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, ela explica que “o que caracterizaria o brasileiro, pensando em termos de futebol, seria, sobretudo, gostar de futebol. Jogar como um brasileiro é praticar o ‘jogo bonito’ ou o ‘futebol arte’, é enfrentar as dificuldades do jogo e da vida com ‘ginga’, ‘jogo de cintura’, e certa dose de ‘molecagem’, combinação de irreverência e alegria”.

Fátima Ferreira Antunes é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo e socióloga do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura de São Paulo. É autora do livro Com brasileiro não há quem possa! Futebol e identidade nacional (São Paulo: UNESP, 2004).

Confira a entrevista. 

IHU On-Line - Em que sentido o futebol influencia na formação da identidade nacional?

Fátima Ferreira Antunes - No plano individual, o amor ao futebol costuma ser transmitido de pai para filho, de irmão para irmão, de tio para sobrinho. É quando se define a afinidade e a identidade por um determinado clube. O futebol desperta o sentimento de “nós contra os outros”. Essa identidade despertada leva ao reconhecimento do outro como um igual ou como um rival. Já a identificação com a seleção brasileira faz parte de outro momento. A experiência de assistir a uma “primeira Copa do Mundo” é vista como um marco na vida de um torcedor, uma experiência inicial de pertencimento a algo maior, que ultrapassa a família e a escola. É como se participássemos de um momento mágico: deixamos de ser botafoguenses, palmeirenses ou atleticanos para sermos, simplesmente, brasileiros.

IHU On-Line - Qual a contribuição das ideias de José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues para identificar o futebol como um dos elementos mais importantes na construção do imaginário popular?

Fátima Ferreira Antunes - Esses cronistas atentavam para a originalidade das manifestações populares em torno do futebol. Viam a paixão, a entrega, o sofrimento do torcedor e entendiam que tanto as derrotas quanto as vitórias tinham reflexos em outras esferas da vida. Os brasileiros eram o que eram dentro e fora de campo. O que estes cronistas fizeram foi difundir a ideia de que, ao ganhar autoconfiança por suas vitórias no futebol, o brasileiro também ficaria mais confiante em atuar em outras atividades. Observando-se a atuação dos jogadores em campo, tomando como exemplo a seleção brasileira, seria possível apontar os erros do brasileiro em geral e, a partir de sua conscientização, promover a superação desses erros.

IHU On-Line - A partir do futebol, o que significa ser brasileiro?

Fátima Ferreira Antunes - Há certas ideias que se tornaram senso comum. O que caracterizaria o brasileiro, pensando em termos de futebol, seria, sobretudo, gostar de futebol. Jogar como um brasileiro é praticar o “jogo bonito” ou o “futebol arte”, é enfrentar as dificuldades do jogo e da vida com “ginga”, “jogo de cintura”, e certa dose de “molecagem”, combinação de irreverência e alegria.

IHU On-Line - O que caracteriza o discurso de José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues acerca do futebol?

Fátima Ferreira Antunes - Tanto Nelson Rodrigues  quanto o irmão Mário Filho , nas crônicas que publicaram em jornais e revistas nos anos 50, tentavam identificar as razões do insucesso brasileiro. Suas análises convergiam, entre outras coisas, para o “complexo de vira-latas” de que sofria o brasileiro de modo geral e, por extensão, a seleção brasileira. O “complexo de vira-latas”, para Nelson, nada mais era do que o complexo de inferioridade que o brasileiro sentia em relação a outras nacionalidades. Mário usava o termo “complexo de ser brasileiro”, mas com o mesmo sentido. Esse sentimento estaria associado ao fato do brasileiro ser um povo miscigenado e de se ver como uma “raça” indefinida. O sentimento de inferioridade se manifestava em momentos cruciais e nos fazia vacilar, nos deixava apáticos, como no jogo contra o Uruguai na Copa de 50. Mas os cronistas insistiram em mostrar o lado positivo da miscigenação. Viam em Garrincha  o exemplo máximo da novidade da experiência racial brasileira: da fusão do negro com o índio nascera um sujeito feio, torto e, no entanto, genial, único, no qual anteviam o sucesso da seleção antes da Copa de 58. Nelson também associava o “complexo de vira-latas” a um sentimento típico de povos subdesenvolvidos. Os termos desenvolvimento e subdesenvolvimento ocupavam lugar de destaque nas teorias econômicas em debate nos anos 50 e 60, décadas marcadas pela Guerra Fria e pela divisão das nações entre capitalistas e socialistas após a Segunda Guerra Mundial. José Lins do Rego  insistia na identificação do futebol como um importante fenômeno cultural. Assistindo a uma partida de futebol e acompanhando as diferentes reações dos jogadores em campo, conforme sua nacionalidade, seria possível captar o “retrato psicológico de um povo”.

IHU On-Line - Como descrever o imaginário popular sobre o futebol hoje?

Fátima Ferreira Antunes - Hoje está consolidada, no imaginário popular, a ideia de que o Brasil é o país do futebol, de que os jogadores brasileiros são os melhores do mundo e de que os brasileiros têm um dom praticamente “natural” para esse esporte. Esse imaginário, no entanto, é resultado de um longo processo de construção, que passou pelo nacionalismo do período Vargas , pelo otimismo do pós-guerra e pela derrota de 1950, pelos títulos mundiais de 1958, 62 (que coincidiram com a euforia dos anos JK ), pela Copa de 70 no contexto do milagre econômico, pela crise dos anos 1980, seguida de perto pelos 24 anos (entre 1970 e 1994) sem conquistar um novo título. Imaginário que está em permanente construção e reconstrução.

IHU On-Line - Qual a principal contribuição dos textos desses escritores enquanto documentos históricos para o processo de construção da identidade nacional?

Fátima Ferreira Antunes - As crônicas de futebol de Nelson Rodrigues, Mario Filho e José Lins do Rego, tomadas como documentos históricos, são importantes por registrarem a constituição de ideias sobre o Brasil e os brasileiros, as preocupações e os sentimentos mais candentes entre os anos 50 e 60. O Brasil tentava encontrar o seu lugar no cenário internacional. As Copas do Mundo se apresentavam como momentos especiais para os cronistas refletirem sobre o caráter nacional, sobre a identidade nacional. Nesses momentos, o sentimento de pertencimento a uma comunidade despertava de modo bem diferente.

IHU On-Line - Qual a importância de revisitar o passado do futebol para verificar como ele ecoa no presente e traça elos entre o futebol atual e a brasilidade?

Fátima Ferreira Antunes - A leitura dessas antigas crônicas nos permite desvendar a origem de certos sentimentos ou de modos de pensar o brasileiro ainda em formação. Descobre-se a origem de sentimentos e ideias que já estão consolidadas e o contexto e/ou circunstâncias em que foram geradas.

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