Edição 333 | 14 Junho 2010

Direito à Renda Básica de cidadania: um marco na história brasileira

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Patricia Fachin

Na percepção de Carolina Raquel Duarte de Mello Justo, quanto maior o volume de direitos que acompanha o pacote de proteção social garantido pelo Estado, menores são as chances de distinção social

Segundo a socióloga Carolina Raquel Duarte de Mello Justo, o Brasil está vivendo um “momento crucial” o qual “será um marco na história da proteção social e da cidadania”. A pesquisadora se refere ao surgimento de um novo direito: “o direito à renda”. O país “é personagem central desta história porque, ao implantar um programa de transferência de renda de grande amplitude como o Bolsa Família, tem contribuído para a legitimação e perpetuação da ideia da constituição deste direito”, menciona.

Em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line, Carolina afirma que quando todos receberem o benefício da Renda Básica como um direito, “ele será, portanto, um instrumento de redução das desigualdades sociais”.

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo é graduada em Ciências Sociais, mestre em Ciências Políticas e doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Campinas – Unicamp. Atualmente, é professora de Ciência Política na Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, SP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como avalia as políticas de transferência de renda e cidadania no Brasil? Quais as consequências dessas políticas para o futuro?

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - Acredito que vivemos, no Brasil, um momento crucial, que no futuro será um marco na história da proteção social e da cidadania: o do surgimento de um novo direito, o direito à renda. E o Brasil é personagem central desta história porque, ao implantar um programa de transferência de renda de grande amplitude como o Bolsa Família, tem contribuído para a legitimação e perpetuação da ideia da constituição deste direito. No passado, muita gente considerava um absurdo o Estado dar dinheiro às pessoas ou o recebimento de dinheiro não advindo do esforço de trabalho. Já, hoje, o Bolsa Família conta com ampla aceitação social. Seguindo por este caminho, prevejo que, futuramente, não haverá mais nenhuma crítica quanto ao fato dos cidadãos obterem uma renda, não como salário, em contrapartida ao trabalho, mas através do Estado, como um direito de cidadania. As principais consequencias da instituição deste direito, a meu ver, são a eliminação da pobreza, a diminuição das desigualdades, principalmente a melhoria da distribuição de renda, a diminuição da exploração do trabalho, conforme diminua a necessidade imperiosa das pessoas terem de vender sua força de trabalho no mercado como única alternativa de obtenção de renda para sobrevivência numa sociedade mercantilizada e monetarizada (processo que Esping-Andersen chama de “desmercadorização” da força de trabalho).

IHU On-Line - Quais são os programas de transferência de renda mais pertinentes, hoje, no Brasil, e que efeitos eles causam na sociedade?

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - Quando falamos de resultados de programas de transferência de renda, tendemos a pensar naqueles mais imediatos: se diminuiu a fome, se aumentou, e em que medida, o poder de compra das pessoas, se as crianças puderam sair da mendicância e do trabalho nas ruas e voltar a estudar. Mas eu acredito que os principais impactos destes programas referem-se ao pacto social que estabelecemos uns com os outros, ao tipo de sociedade que queremos para o futuro. Acredito que, em certos bairros, onde muitas famílias recebem o Bolsa Família, as pessoas olham umas para as outras e se reconhecem como iguais, porque o benefício fornece um padrão de equivalência. Quando todos receberem o benefício como um direito, ele será, portanto, um instrumento de redução das desigualdades sociais, não apenas em termos concretos, materiais, pelo ganho de renda que é mais significativo para as classes mais baixas – mas que mesmo assim não é um impacto tão importante, já que se trata de uma renda básica, ou seja, de baixo montante/valor -, mas, sobretudo, em termos simbólicos, porque remete a um princípio de igualdade: não importam as origens, classes sociais, raça, sexo, opção sexual, religião, enfim, todos os cidadãos terão igualmente o direito a esta renda. Quanto maior o volume de direitos que componha o pacote de proteção social garantido pelo Estado em um país, menores são as chances de distinção social. É o que acontece nos países escandinavos, onde os sistemas de proteção social são tão robustos que resta pouco para que as classes média e alta possam comprar para ter, por exemplo, serviços e condições de saúde e educação diferenciados das classes mais baixas; no fim das contas, não vão ter nada de muito melhor que elas, porque o Estado já fornece muito e bem. Então, a Renda Básica seria um direito a se somar neste pacote de proteção social, refletindo num avanço equitativo. Além disso, acredito que a legitimação crescente da ideia da Renda Básica, propiciada pela aceitação dos programas de transferência de renda no Brasil, representa uma reafirmação do pacto solidário de pertencimento a uma sociedade, para o qual conviver com a pobreza, a fome e desigualdades extremas se torna cada vez mais inaceitável.

IHU On-Line - Em que circunstância o cidadão deve ter um rendimento mínimo garantido pelo Estado?

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - O Estado tem responsabilidades para com os cidadãos que vivem dentro dos seus limites territoriais. Dentre elas, a de garantir necessidades básicas de sobrevivência. Logo, as condições de fome, pobreza e miséria são as circunstâncias mais justificáveis para que o Estado garanta um rendimento mínimo. Mas, para mim, garantir uma renda mínima – ou melhor, básica – não deve depender de nenhuma condição, de nenhuma circunstância. Como a transferência de renda começou como política de combate à pobreza, tendemos a pensá-la a partir da justificativa da necessidade. O Bolsa Família é uma ‘ajuda para quem precisa’: é assim que a maioria o vê! Claro que o Estado deve intervir nas condições de necessidade para evitar desastres, catástrofes. Mas por que sempre pensar na transferência de renda como política emergencial a partir da justificativa da necessidade? Por que não pensar de forma alternativa? Vejo – e defendo – a transferência de renda como uma política de Estado para garantir um direito, o direito à renda. Então, o que justifica o direito à educação, à saúde, também pode justificar o direito à renda e o dever do Estado de garantir aos cidadãos uma renda básica: o fato de vivermos em sociedade, de fazermos parte desta sociedade e de compartilharmos a riqueza da nação, de buscarmos expandir padrões de civilização e de qualidade de vida para todos, de não aceitarmos mais conviver com situações de privação extrema, que limitem nossa plena participação na sociedade. São justificativas que se aplicam a todos os direitos sociais. A Renda Básica, sendo um direito, é para todos, então não deve depender de condição ou circunstância nenhuma para ser garantida pelo Estado de forma universal.

IHU On-Line - Quais as implicações da transferência de renda enquanto política para mulheres? Qual é o impacto desses programas na vida delas? A partir de suas pesquisas, o que tem vislumbrado?

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - O formato que tem predominado nos programas de transferência de renda no Brasil privilegia as mulheres como responsáveis pelo recebimento e gerenciamento do benefício, que é da família. Então, esta característica tem tido um importante impacto sobre as questões de gênero, porque “ser dona ou responsável pelo dinheiro da casa” representa um ganho de poder das mulheres em relação aos maridos, companheiros, filhos, enfim, dentro da família. Ouvi depoimentos muito interessantes de mulheres que se sentiam orgulhosas de poderem ajudar os maridos a pagar as contas da casa. Não se trata apenas de uma questão de ordem financeira, mas de uma nova partilha dos papéis que cada um cumpre na casa. Então algumas mulheres também passaram a requerer ou exigir dos maridos que tomassem conta das crianças quando saíam para estudar ou trabalhar. Muitas passaram a sair mais de casa, a deixar o âmbito doméstico para ocupar os espaços públicos. São efeitos sobre as relações de poder entre homens e mulheres que passam a mudar. No longo prazo, talvez estes impactos sejam mais significativos rumo à construção de uma sociedade mais democrática.

IHU On-Line - Quais são as diferenças e as vantagens da Renda Básica em relação às outras formas de garantia de renda mínima, como o Bolsa Família, por exemplo?

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - É importante fazer a distinção entre renda mínima e renda básica, ainda que não sejam concepções opostas. Os propositores da renda mínima tendem a vê-la como um benefício emergencial para as famílias e cidadãos em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade. É uma forma inclusive de conter a exacerbação do conflito social. Por isso, defendem que a renda mínima seja focalizada em populações mais pobres, distribuída por apenas um período curto de tempo e num valor realmente mínimo, a fim de não desestimular o trabalho. Por isso também defendem, muitas vezes, que seja cobrada uma contrapartida dos beneficiários, a fim de manter a lógica da troca, assim como o salário pelo trabalho. A renda mínima pode ser compreendida como uma medida “tapa-buraco” em relação aos efeitos perversos do capitalismo. Mesmo assim, é um “tapa-buraco” melhor que a distribuição de cestas básicas, política que supõe que as pessoas não têm autonomia para fazer escolhas e quase que precisam só de comida. Em minha opinião, é o tipo de política que não tem mais espaço nos dias de hoje, exceto em situações de calamidade, porque oferece condições de sobrevivência tão frágeis que são inaceitáveis para a humanidade. Já os propositores da Renda Básica não têm esta preocupação com o possível desestímulo ao trabalho. E nem a veem como uma política emergencial. Ao contrário, defendem que o benefício seja universal, isto é, distribuído a todos os cidadãos; incondicional, isto é, sem exigir qualquer condição ou contrapartida dos beneficiários; e que o benefício seja vitalício e num valor que seria o máximo possível, acordado pelo conjunto da sociedade, a fim de suprir, pelo menos, as necessidades básicas dos cidadãos. Vale lembrar que as necessidades básicas não se restringem às vitais, biológicas; cada sociedade é que define, gradativamente, num patamar superior, o que considera básico. Considerando estas distinções, eu não vejo o Bolsa Família estritamente como um programa de renda mínima, mas a meio-caminho entre ela e a Renda Básica. Isso porque, apesar do benefício ser condicionado, já abarca mais de 11 milhões de famílias. E embora o valor do benefício ainda seja muito restrito (no máximo R$ 140,00), entendo que é decorrência do caminho que o governo escolheu trilhar, que é o de abarcar o maior número de indivíduos possível, ou seja, o caminho da universalização. Além disso, o tempo de duração do benefício é bem mais longo que o da maioria dos programas que o precederam, que se restringiam a cerca de, no máximo, dois anos, enquanto que o do Bolsa-Família pode durar por mais de quinze anos para uma família que o obtenha a partir do nascimento do primeiro filho, e por mais tempo ainda se houver outros filhos. Então ele representa uma segurança com que as famílias podem contar para planejar a vida e o futuro. Este é um dado interessante: não foram poucas as pessoas que entrevistei que revelaram fazer uma poupança com pequena parte do dinheiro do benefício. Claro que, se o benefício já é pequeno, imagine essa poupança! Mas, novamente reafirmo: o impacto relevante aqui não é o material, mas o simbólico – ganho de segurança e de perspectiva para a vida. Então vejo o Bolsa Família como um caminho para a Renda Básica, ou para a institucionalização do direito à renda. Até porque é um programa que muito dificilmente será extinto. E, no Brasil, nós já temos uma lei que cria a Renda Básica, que não por coincidência foi sancionada um dia antes da que regulamenta o Bolsa Família.

IHU On-Line - Como é possível pensar a construção da cidadania através de programas de renda mínima? 

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - A Renda Básica é considerada um direito de cidadania. Neste sentido, ela já contribui para o alargamento da cidadania porque incorpora a ela um novo direito. Mas, além disso, considerando uma noção de cidadania mais ampla, que não se restringe aos aspectos formais, é possível visualizar outros impactos dos programas de transferência de renda sobre a cidadania: a percepção dos beneficiários como integrantes da sociedade (até pelo simples fato de usarem um cartão de banco), a busca pela concretização de direitos ou pela criação de novos direitos, o aumento da participação política e a politização de espaços domésticos. Foram efeitos que verifiquei entre beneficiários que entrevistei.

IHU On-Line - Qual é o significado da Renda Básica para a discussão sobre trabalho e cidadania nas sociedades atuais?

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - Ao longo do século XX, a carteira de trabalho se tornou o passaporte da cidadania. É através dela que os indivíduos estabelecem ligação com o Estado e passam a fazer jus aos direitos trabalhistas, além de serem considerados “pessoas de bem”, e não vagabundos. Então o trabalho tem este duplo significado para a cidadania. Acontece que quem não tem trabalho, especialmente com carteira assinada, como ocorre com cerca de 50% da força de trabalho no Brasil, tem então a sua cidadania restringida. Quem defende a renda mínima costuma dizer que as pessoas não podem “receber algo em troca de nada”, nem viver sem trabalhar, porque isso comprometeria seu status de cidadania, isto é, com isso não fariam jus aos direitos garantidos pelo Estado como contrapartida ao trabalho despendido por elas para a produção da riqueza da nação. Neste sentido, a Renda Básica comprometeria o usufruto e o sentimento de cidadania. Mas a verdade é que, para uma boa parcela da população, a cidadania já é inexistente ou capenga devido às condições de desemprego e subemprego. Vivenciamos um dilema, hoje, porque o trabalho, que é substrato da cidadania, já não cumpre plenamente este papel, mas não há ainda um substituto para ele. Então o debate sobre renda mínima e renda básica nos ajuda a pensar sobre este dilema. Será que é possível haver cidadania sem trabalho?

IHU On-Line - Em que medida o direito à renda mínima está relacionado ao direito ao trabalho? A renda de cidadania permitiria à força-de-trabalho recusar ocupações retribuídas por baixos salários, por exemplo?

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - O trabalho é um direito civil, que não tem como ser garantido pelo Estado como as políticas sociais. Em tempos de crise, recessão, desemprego, ao mesmo tempo em que surgem demandas por políticas de combate à pobreza, também surgem por políticas de emprego e renda. Muitos defensores da renda mínima a associavam, neste contexto, com uma tentativa de se garantir trabalho às pessoas, já que só com o benefício não conseguiriam viver sem trabalhar. Hoje, proponentes da Renda Básica argumentam que ela pode e deve ser associada a uma redução da jornada de trabalho, de tal forma a redistribuir não só a renda, mas também os postos de trabalho, e com isso garantir, além do direito à renda, também o direito ao trabalho. E conforme as pessoas tenham uma outra fonte de renda, que não apenas a oriunda do trabalho, não precisariam aceitar, pela urgência, empregos com baixíssimas remunerações. No conjunto, esta tendência levaria a uma elevação dos salários mais baixos, que costumam ficar ainda menores quando a concorrência entre trabalhadores aumenta. Enfim, a Renda Básica forneceria um referencial padrão.

IHU On-Line - A senhora desenvolve um estudo comparativo sobre os impactos sociais e políticos dos Programas de Renda Mínima implementados por administrações petistas e não-petistas no estado de São Paulo. O que tem evidenciado nesta pesquisa?

Carolina Raquel Duarte de Mello Justo - A pesquisa que realizei demonstrou que há diferenças entre governos administrados por partidos políticos distintos. Em outras palavras, os programas de transferência de renda de uns e outros não eram iguais, embora em princípio ou aparentemente fossem. Nos casos que estudei, foi perceptível que os programas de Campinas e Santo André, de administração petista, possuíam características que os aproximavam mais da concepção de Renda Básica. Já os programas de Jundiaí e Santos, que eram administrados pelo PSDB e PP/PMDB, respectivamente, aproximavam-se mais da concepção de renda mínima. Mas o fator político-partidário não foi o único a influenciar esta configuração distinta dos programas nas cidades estudadas. Fatores político-institucionais também foram importantes na explicação.

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