Edição 331 | 31 Mai 2010

O papel das mulheres na indústria

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Greyce Vargas

Segundo a pesquisadora Nancy Cardoso Pereira, a história do movimento operário está diretamente relacionada com as lutas das mulheres trabalhadoras industriais, ainda que tenham sofrido com as contradições e violências das formatações do trabalho.

A frase “O proletariado não tem sexo!” dita por Che Guevara marca, ainda hoje, a história das mulheres que atuam na indústria, uma vez que reúne e distribui as “relações históricas de poder desigual que persistem no âmbito da classe trabalhadora”. Essa é a avaliação da pesquisadora Nancy Cardoso Pereira durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, por e-mail. Ela relata a trajetória e a luta das mulheres que formaram a classe operária brasileira e diz que “o comprometimento das respostas operárias ao impasse estrutural da questão da terra no Brasil tem tido, ao longo do tempo, consequências importantes que se expressam ainda hoje na falta de um consenso político que priorize a re-formatação da estrutura agrária e agrícola no Brasil, a partir de um projeto popular”.

Nancy Cardoso Pereira é teóloga e filósofa com mestrado e doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. É pós-doutora pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é professora na Universidade Severino Sombra, de Vassouras, Rio de Janeiro. Dentre suas obras destacamos: Remover pedras, plantar roseiras, fazer doces - por um ecossocialismo feminista (São Leopoldo, RS: CEBI, 2009) e Por uma hermenêutica das coisas úmidas e molhadas (São Leopoldo, RS: CEBI, Centro de Estudos Bíblicos, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como a senhora identifica o papel das mulheres no processo de industrialização no Brasil?

Nancy Cardoso Pereira – Tenho pesquisado sobre a questão agrário-camponesa na formação da classe operária no Brasil. A abolição dos escravos em 1888, entendida como processo/resultado de amplas mobilizações dos/as trabalhadores escravos aliados/as a outros setores reunidos pelos movimentos abolicionistas, tinha uma agenda mais ampla e abrangente para além da “abolição imediata e sem indenização” como pode ser conhecido na pesquisa da professora Cláudia Andrade dos Santos .

Entre as questões que estavam colocadas neste momento da história - que se precipitou na consolidação da República como resposta conservadora das elites - a questão da terra e dos/as trabalhadores da terra era central e ocupou boa parte dos debates e esforços dos segmentos mobilizados pelo abolicionismo. A questão da “reforma agrária” estava presente neste debate, assim como as mobilizações pelo fim da “divisão feudal da terra”. Neste mesmo período, foram se consolidando os primeiros cenários industriais no Brasil, e parte das primeiras associações de trabalhadores/as (associações mutualistas) aderiu ao movimento abolicionista em sua agenda. Entretanto, este processo de industrialização, mesmo que vinculado em suas formas de produção e reprodução aos produtos da terra e gestando um novo sujeito social – o/a operário/a –, continuou garantindo a permanência dos padrões de profunda desigualdade da sociedade brasileira.

Este trânsito das identidades de trabalhadores/as neste período (escravo-liberto, livre/escravos das oficinas, artesão/operário) é essencial para a compreensão da classe trabalhadora no Brasil. As possíveis formas de integração e/ou interdição do trabalhador/a negro/a no processo de industrialização se deram sem que as questões do estatuto da terra e das relações de trabalho na terra fossem resolvidas.

O comprometimento das respostas operárias ao impasse estrutural da questão da terra no Brasil tem tido, ao longo do tempo, consequências importantes que se expressam ainda hoje na falta de um consenso político que priorize a re-formatação da estrutura agrária e agrícola no Brasil, a partir de um projeto popular.
 
IHU On-Line - De que forma foi a participação das mulheres na formação da classe operária brasileira? Quais as diferenças na atuação da mulher na indústria têxtil e em outros setores da própria indústria?

Nancy Cardoso Pereira – Neste trânsito que marca as classes que vivem do trabalho no final do século XIX e início do século XX, o fluxo entre trabalho manual/artesanal/industrial vai ser importante de ser estudado. Tomo como ponto de análise as “textilidades”, isto é, os modos de produção têxteis que existiam neste período, porque aí vou encontrar as mulheres. Seja no trabalho manual no âmbito da casa, seja nas oficinas de tecido com trabalho escravo e/ou livre (também organizados em galpões ligados às casas) e até mesmo nas primeiras fábricas: as mulheres trabalhadoras migraram do tear no fundo da casa para o tear na fábrica em pouco tempo, de modo massivo e em situações de extrema exploração.

Desde o século XVIII, que o algodão brasileiro e outras fibras já faziam parte do pacote de exportações da Coroa Portuguesa, em especial para a Inglaterra, que tinha o monopólio dos produtos têxteis. O fortalecimento de um mercado consumidor interno criou as condições para a ampliação dos teares familiares que passaram a assumir um perfil de “pequena indústria” como se documenta em 1768, na região de Barbacena, Minas Gerais. Este processo vai articular o trabalho na agricultura com a produção de algodão, e o trabalho manual/artesanal liderado por mulheres, interferindo nos planos comerciais da Coroa, que chega a proibir com um decreto, em 5 de janeiro de 1785, pela Rainha D. Maria I, a produção de têxteis no país. Os teares foram proibidos e banidos; as oficinas foram fechadas e os/as trabalhadores/as poderiam ser punidos se mantivessem a atividade “subversiva”.

Uma guerra ao tear

Esta guerra aos teares era em especial contra as mulheres e seus processos de trabalho. O modo de vida camponês tem como característica a pluriatividade de base familiar, e as tarefas têxteis eram de vital importância e projetavam técnicas de trabalho e conhecimento das fibras que estavam culturalmente associadas às mulheres camponesas (livres/escravas). Mesmo que pareça uma incorreção falar de campesinato neste período, é importante ressaltar esta simultaneidade das identidades camponesas para que seus modos de vida não se invisibilizem. A guerra contra os teares e suas artesãs dura até 1808, com a chegada de Dom João VI  e a abertura dos portos. 

As relações comerciais com a Inglaterra continuavam a garantir os privilégios dos produtos ingleses que dificultavam o surgimento de uma indústria têxtil brasileira. Existiam as fibras de boa qualidade, existiam tecnologia e trabalho apropriado, mas a indústria têxtil se consolida no século XIX com este perfil de economia de periferia, dependência tecnológica e manutenção das condições de trabalho explorado. No começo do século XX, já existiam cerca de 50 indústrias têxteis no Brasil, que chegou a representar o setor mais importante da frágil economia nacional.

As mulheres eram, no século XIX e no começo do século XX, maioria na classe operária têxtil (chegando a 90%, segundo os dados do documento “Recenseamentos Gerais do Brasil no século XIX - 1872 e 1890”). Neste sentido, as mulheres estiveram como protagonistas no momento de formação da classe operária no Brasil e sofreram estas contradições e violências das formatações do trabalho e o trânsito do trabalho no modo de vida camponês/doméstico para o mundo da fábrica e suas explorações.
 
IHU On-Line - Como a senhora vê a relação entre a divisão sexual do trabalho na fábrica e a divisão de gênero na sociedade atual?
 
Nancy Cardoso Pereira –
As mulheres na fábrica sofriam duplamente por conta das péssimas condições de trabalho, os baixos salários e a pesada jornada que era imposta; sofriam também com as relações de poder dentro do próprio operariado. Mesmo sendo maioria na base do trabalho têxtil, as representações de associações e sindicatos era, desde o início, expressa pelas lideranças masculinas. Estudo as greves no período de 1908/1909, nas Tecelagens no Rio de Janeiro, a partir do Jornal Voz do Trabalhador da Confederação Operária Brasileira. Os textos insistem na necessidade de fazer com que as mulheres voltassem para casa (também as crianças!) e sugerem que as fragilidades do movimento se deviam ao caráter das “débeis” mulheres. Somente com a importação de tecnologia pesada, a indústria têxtil pôde prescindir do trabalho das mulheres, e, seu conhecimento, acumulado neste campo de produção. 

A música de Noel Rosa  “Três Apitos” revela bem a situação da operária que sofre com a impertinência do gerente, é controlada pelo guarda noturno, disciplinada pelo apito da fábrica e passa frio corajosamente. Ainda hoje as mulheres são maioria da população contratada com carteira assinada: na pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE, feita em 1999, em Santa Catarina, as mulheres eram 63% da mão-de-obra assumindo os postos dos setores específicos da tecelagem (costura, fiação, embalagem).

IHU On-Line – No início do século XX, as mulheres que trabalhavam na indústria têxtil participavam dos movimentos grevistas, sendo que as conquistas alcançadas beneficiavam mulheres e homens. Como essas conquistas impactaram na atuação das mulheres que trabalham hoje na indústria?

Nancy Cardoso Pereira – A história do movimento operário a nível mundial tem vínculos muito expressivos com as lutas das mulheres trabalhadoras têxteis. Mesmo numa visão mais ampla da história, percebe-se uma recorrência e permanência tanto no mito como nas narrativas de mulheres tecelãs. Este simbolismo do fio/rede/net/web como dinâmica que liga isto com aquilo é culturalmente atribuído às mulheres, podendo assumir contornos passivos ou ativos. Nos mitos e nas tradições, a tecelagem e a lavoura estão sempre juntas; como se a tecelagem fosse também um trabalho de lavoura, um ato de criação de onde saem, fixados na lã, os símbolos da fecundidade e a representação de campos cultivados.

Este lugar da mulher nos espaços de textilidades se identifica também nos marcos míticos da classe trabalhadora: a greve, em 1917, das trabalhadoras têxteis, em São Petersburgo, marcou o início do levante popular que desembocou na Revolução Russa. Este fato se confunde com a morte de mulheres trabalhadoras têxteis, em Nova York, em 1909, que motivou manifestações pelos direitos das mulheres trabalhadoras. O atual Dia Internacional da Mulher está baseado nestes acontecimentos e suas narrativas.

Parte dos movimentos feministas reivindica as tecelãs russas como o ponto a partir de onde se tece a luta das mulheres, garantindo a rebeldia e o protagonismo. A versão do incêndio em Nova York tece sua narrativa a partir do sofrimento e do martírio, podendo assumir um caráter mais essencialista e reformista. Anos mais tarde, em 1963, Che Guevara se dirige a uma assembleia de trabalhadores/as em Cuba: uma indústria têxtil chamada Ariguanabo. Che reconhece um problema no processo revolucionário: aquela indústria têxtil tem 4 mil trabalhadores/as, cuja maioria são mulheres. Foram eleitos 197 representantes desta fábrica para a assembleia partidária: só 5 mulheres! O Che reconheceu que a revolução ainda não havia cumprido seu papel e que “o passado continua pesando sobre nós”.

Foi nesta ocasião junto às trabalhadoras têxteis de Ariguanabo que o Che disse sua famosa frase: “O proletariado não tem sexo!” Este slogan reúne e distribui estas relações históricas de poder desigual que persistem no âmbito da classe trabalhadora.

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