Edição 331 | 31 Mai 2010

O protagonismo indígena guarani ao longo da história

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patricia Fachin e Graziela Wolfart

Na visão de Maria Cristina Bohn Martins, não há uma história dos guarani relativamente ao colonialismo e às reduções, mas muitas histórias

“Os embates contra os espanhóis e as derrotas que sofreram na luta contra estes portadores de armas mais eficientes, devem ter repercutido fortemente sobre esta sociedade de guerreiros que valorizava sobremaneira a valentia e o sucesso nos combates”, afirma Maria Cristina Bohn Martins a respeito dos índios guarani. Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line, por e-mail, a professora observa que “enquanto na época colonial as ações do Estado em relação aos índios visavam mediar o problema do uso do seu trabalho, passou-se depois a lidar com a questão das terras que, pelo que podemos observar, continua muito atual. Ela resulta hoje das profundas transformações que o Brasil viveu nas últimas décadas do ponto de vista da ocupação territorial, com um forte movimento de migração para áreas onde os índios vivem. Este processo, iniciado na época da ditadura militar envolveu contingentes muito vulneráveis, como garimpeiros, migrantes pobres, mas também grupos poderosos envolvidos no agronegócio. Na perspectiva destes interesses os índios são um ‘problema’”.

Professora do curso de Pós-Graduação em História da Unisinos, Maria Cristina Bohn Martins é vice-presidente da Associação nacional de História Núcleo Regional, Seção RÃS (ANPUHRS). Em agosto, ela participará do Seminário Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani, pré - evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A programação completa está disponível no sítio do IHU. Entre suas obras, citamos Sobre festas e celebrações: as reduções do Paraguai (séculos XVII e XVIII) (Passo Fundo: Editora da UPF; ANPUH - RS, 2006) e é uma das organizadoras de Histórias coloniais em áreas de fronteiras. Índios, jesuítas e colonos (São Leopoldo; Cuiabá: Oikos, Ed. da Unisinos, Ed. da UFMT, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como e quando ocorreram as primeiras ocupações dos povos guarani no sul do Brasil?

Maria Cristina Bohn Martins - De acordo com Jairo Rogge , investigador do Instituto Anchietano de Pesquisas e professor dos cursos de Pós-Graduação e Graduação em História da Unisinos, apesar de existirem referências a algumas datas mais recuadas (que são objeto de muita controvérsia), as datações mais aceitas para a presença guarani no sul do Brasil situam-se por volta do início da Era Cristã. Uma das datas mais antigas localiza-se no Paraná (2.010 +- 75 AP), na região de Foz do Iguaçu, pesquisada por Igor Chmyz  na década de 80. No Rio Grande do Sul, a datação mais antiga que possuímos está no vale do médio/alto Jacuí, na região de Agudo (1.800 +- 100 AP), e feita por Brochado na década de 60.

IHU On-Line - Como os guarani se relacionaram, ao longo de sua história, com os colonizadores, em especial os europeus e os jesuítas? Que marcas eles deixaram na história desse povo?

Maria Cristina Bohn Martins - Notícias sobre os guarani estão presentes desde as primeiras viagens de exploração e ações para a colonização europeia nestes territórios do sul do continente . Duas obras de autoria de Bartomeu Meliá, aliás, revelam a impressionante dimensão deste conjunto de fontes (e de interpretações) que se produziu sobre eles ao longo destes cinco séculos. Eu me refiro a O Guarani. Uma bibliografia etnológica, de 1987 e Guaraníes y Jesuitas en tiempo de Misiones, de 1995 . No primeiro destes livros, o autor afirma que nenhum outro grupo mereceu, tal como os guarani, tanta atenção, a qual se estabelece em uma linha de continuidade que vem do século XVI aos dias atuais. Por conta disto já se referiu a eles como “os guarani de papel” . Nos textos do período colonial eles aparecem ora como aliados, ora como inimigos dos europeus, assinalando sua presença como “fator” fundamental para especificar a sociedade que ia se constituindo. Foram inimigos temidos, mas também batedores de mata, fornecedores de alimentos e guerreiros para os colonizadores; foram também mão-de-obra disputadíssima por espanhóis e portugueses e, como tal, elemento essencial para as economias dos territórios coloniais dos dois impérios. Aqueles que ingressaram nas “reduções” também desempenharam papeis fundamentais neste âmbito, uma vez que os pueblos participaram ativamente do conjunto das relações econômicas coloniais, por exemplo, através da comercialização da erva-mate. Além disto, prestaram serviços para as autoridades espanholas, inclusive atuando nas milícias que combatiam os portugueses, bem como grupos indígenas “hostis” que ameaçavam as povoações dos colonizadores.

IHU On-Line - Que aspectos a senhora destaca na formação e dispersão dos guarani no sul do Brasil? 

Maria Cristina Bohn Martins - Sabemos que nos inícios da era cristã os guarani iniciaram um movimento de dispersão, cujo foco inicial é a Amazônia, e que os dirigiu para regiões ao sul do continente. Quando se defrontaram com os europeus, especialmente a partir dos inícios do século XVI, estavam vivendo um processo de expansão em que se contrapunham a outros povos que eles desalojaram ou incorporaram. Eram, como já se disse, “colonos dinâmicos”, buscando terras férteis e bons locais para assentar suas aldeias. Os embates contra os espanhóis e as derrotas que sofreram na luta contra estes portadores de armas mais eficientes, devem ter repercutido fortemente sobre esta sociedade de guerreiros que valorizava sobremaneira a valentia e o sucesso nos combates. A presença cada vez mais intensa de colonos estrangeiros em seus territórios colocou-os diante de algumas alternativas, que variaram do rechaço e oposição (foram muitas as rebeliões em que os guarani se opuseram aos espanhóis), aos acordos e negociações. O ingresso nas reduções, isto é, naquilo que os sacerdotes da Companhia de Jesus definiam como “vida em policia”, foi uma destas opções sobre as quais acredito que os chefes guarani, seus anciãos e guerreiros tenham discutido e avaliado, e que aceitaram sob algumas circunstâncias e recusaram em outras. Não há assim, uma história dos guarani relativamente ao colonialismo e as reduções, mas há muitas histórias. Poderíamos ainda, em uma visão bastante rasa, dizer que ao longo da época colonial distinguiram-se os guarani “monteses”, isto é, aqueles que não foram submetidos à redução ou ao trabalho servil para os espanhóis, e os demais. Estes últimos vão experimentar um processo que conduziu a  uma crescente  indistintibilidade entre os guarani das missões e o dos pueblos crioulos, bem como de ambos em relação à população mestiça pobre. Depois da expulsão dos jesuítas na segunda metade do século XVIII este processo acelerou-se  e houve uma crescente integração da população nativa na economia e na sociedade coloniais e depois naquela dos Estados independentes.
 
IHU On-Line - Como descreve as atuais sociedades guarani? Quais seus desafios e limites?

Maria Cristina Bohn Martins - Segundo Carlos Fausto , os guarani somam, hoje, cerca de 100 mil indivíduos divididos em quatro grupos: os Kaiová (ou Paï-Taviterã) com 17 mil indivíduos vivendo no Brasil e no Paraguai; os Mbyá que seriam 12 mil distribuídos pelo litoral brasileiro, pelo Paraguai e Argentina; os Chiripá (ou Ñandeva) cuja população de 8 mil pessoas vive no Brasil e no Paraguai, e os Chiriguano, que seriam 60 mil índios e vivem na Bolívia. A edição online do Jornal do Brasil de dezoito de março deste ano noticiou a denúncia feita por uma “Organização Não Governamental” com sede em Londres, relativa às condições dos guarani que vivem no sul do Brasil. Em um relatório enviado às Nações Unidas por ocasião do Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial (21 de março), a Survival International afirmava que eles estão entre os povos indígenas em pior situação das Américas. Como elementos que justificam sua denúncia, a ONG incluiu as altas taxas de suicídio, a desnutrição e o alcoolismo observáveis nas comunidades guarani, que seriam ainda vítimas de detenções arbitrárias e violências diversas cometidas por agentes contratados pelos fazendeiros interessados em suas terras. Embora eu não conheça o referido relatório, nem tenha acesso aos dados da pesquisa que os sustenta, creio que possamos dizer que ele toca em algumas questões fundamentais relativas não só aos guarani, mas de igual forma a outros povos indígenas no Brasil. Entre elas está, sem dúvida, aquela que envolve o direito à terra, assegurado pela Constituição no sentido de permitir a produção e reprodução de suas culturas. O avanço legal, contudo, não reflete exatamente a compreensão de segmentos da sociedade brasileira, não sendo raro encontrarmos posicionamentos que questionam a necessidade de grupos demograficamente pequenos controlarem grandes espaços de terra. Podemos inclusive afirmar que a parte do texto constitucional referente aos direitos indígenas é uma das mais visadas pelos que advogam a necessidade de revisá-lo. Existem muitos projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, em que se evidencia uma tendência de redução de proteção jurídica aos povos indígenas.

Os índios como um “problema”

Não creio que este seja um tema para ser tratado rapidamente e nem me sinto competente para avaliações mais amplas. Contudo observo que enquanto na época colonial as ações do Estado em relação aos índios visavam mediar o problema do uso do seu trabalho, passou-se depois a lidar com a questão das terras que, pelo que podemos observar, continua muito atual. Ela resulta hoje das profundas transformações que o Brasil viveu nas últimas décadas do ponto de vista da ocupação territorial, com um forte movimento de migração para áreas onde os índios vivem. Este processo, iniciado na época da ditadura militar envolveu contingentes muito vulneráveis, como garimpeiros, migrantes pobres, mas também grupos poderosos envolvidos no agronegócio. Na perspectiva destes interesses os índios são um “problema”. Assim é que percebo que o preconceito contra os indígenas que parecia haver recuado nos anos 80, (como se pode observar nos debates da Constituinte de 88), parece estar voltando na forma de uma “onda conservadora”. Este conservadorismo não deixa de estar ligado ao desconhecimento da realidade indígena que continua sendo apresentada à sociedade na forma de estereótipos. Entre os clichês mais presentes nestas leituras está o de que os índios são “primitivos” e vivem no passado.

IHU On-Line - Qual a importância de resgatar a história guarani nos dias de hoje?

Maria Cristina Bohn Martins - A sociedade dos países americanos tem uma dívida com os povos indígenas que ajudam a conformá-la. Não me refiro aqui aos abusos que impingiram a eles os impérios ibéricos e seus agentes, mas especificamente aos Estados modernos surgidos no século XIX. É claro que não estou negando o repertório de iniquidades que fez parte das práticas coloniais relativamente aos grupos indígenas, mas temo as posturas culpabilizadoras do passado remoto porque elas podem acabar justificando a falta de atitudes concretas no presente. Aliás, várias gerações de brasileiros foram educadas a partir da premissa de que os índios eram um tema do passado. Os dirigentes das Repúblicas americanas (no caso do Brasil, antes disto, os do Império), ainda que, em algumas circunstâncias tenham exaltado o elemento indígena enquanto conformador das nossas sociedades, até como fator de diferenciação das antigas metrópoles, na prática pouco fizeram para corrigir distorções históricas. Por sua vez, umbilicalmente ligada à sociedade cujas expectativas ela de alguma forma reflete, a historiografia também tem uma dívida para com os guarani e com os povos indígenas em geral. Nossa disciplina por muito tempo desconsiderou a presença dos povos indígenas. Na verdade, alocou-os em um momento “prévio”, em uma “pré-história” do Brasil e das Américas. As últimas décadas, porém, evidenciam uma notável mudança neste panorama e as pesquisas sobre a história indígena ganham substância e profundidade. Sobre isto quero ainda apontar o fato, até certo ponto surpreendente, de que o ensino escolar não acompanha o avanço da pesquisa acadêmica. Enquanto nas universidades e centros de pesquisa se avulta e se renova o estudo sobre os povos indígenas, os escolares continuam a ser apresentados aos indígenas a partir de certos pressupostos muito ultrapassados (e equivocados). Uma rápida consulta aos manuais escolares (os famosos “livros didáticos”) pode referendar esta afirmação: renovados na forma, eles continuam a veicular uma mensagem persistente: a de que os índios se localizam na “pré-história” do Brasil. Este é um pressuposto perigoso e pernicioso.
 
IHU On-Line - Que reflexões o evento Seminário Jogue Roayvu: História e Histórias dos Guarani. Pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade propõe sobre a trajetória dos guarani no Brasil?

Maria Cristina Bohn Martins - O grupo que assumiu o desafio de planejar este evento buscou garantir, através da cuidadosa escolha de nossos convidados, uma grande pluralidade de vozes e campos de observação da experiência que vamos examinar no Simpósio. Creio que posso afirmar sem riscos que eles contribuirão para trazer ao público todo um conjunto de novas concepções sobre os processos e resultados do encontro da sociedade guarani (e indígena em geral) com o mundo ocidental. Efetivamente, um significativo corpo de investigações produzidas no seio de Institutos de Pesquisa ou dos Cursos de Pós-Graduação do país tem revelado realidades surpreendentes relativas ao protagonismo indígena ao longo da nossa história. Isto é, tem-se buscado apontar que as sociedades indígenas também são agentes, e não meras vítimas de um destino traçado pelo colonizador. Ainda que as concepções de algumas décadas passadas, construídas em torno de uma “história dos vencidos”, tenha buscado fazer uma “defesa” dos povos indígenas diante das violências impostas a eles pelo colonialismo, elas acabaram não lhes fazendo justiça, uma vez que colocaram-nos como fadados ao aniquilamento. Contrariamente a isto, uma nova história indígena tem se ocupado em recuperar a dinâmica das negociações, das escolhas e ações tomadas por eles em variados campos e situações. Mesmo que as opções fossem duras e as alternativas que se lhes impunham não fossem fáceis, ou mesmo boas, esta nova postura intelectual reconhece a sua “agência”. A meu juízo isto lhes confere uma dignidade que fica obliterada por uma história que apenas os vitimiza e que não deixa de, paradoxalmente, referendar a ideia da “fragilidade de sua cultura”. No caso dos “30 Pueblos Guaranies” novas abordagens sobre a história e a antropologia das missões religiosas na América do Sul indígena permitiram recuperar a complexidade do fenômeno e relativizar o mito das reduções jesuíticas. Pessoalmente vejo como muito mais rica e interessante uma história que não se constrói centrada na perspectiva da “utopia”. A idéia de povos ordeiros, prósperos e pacíficos, construídos a partir da excelência da liderança jesuítica e da adaptabilidade dos índios a ela, embora sedutora, é também empobrecedora. Prefiro pensar estes “pueblos de indios” como uma experiência construída nas dificuldades do dia-a-dia, experiência esta repleta de conflitos, incompletudes e arestas, o que, aliás, garante o seu ingresso na história como tal, afastando-a do campo dos relatos de edificação ou detratação.

Leia mais...

>> Maria Cristina Bohn Martins já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

* As sociedades indígenas e a economia do dom: o caso dos guarani. Publicada na IHU On-Line número 324, de 11-04-2010.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição