Edição 331 | 31 Mai 2010

Uma trajetória marcada pela Palavra

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Patricia Fachin

Segundo Graciela Chamorro, a identidade guarani é fundamenta em eventos que aconteceram no passado remoto e foram protagonizados por seres poderosos como o sol e a lua

Dedicada a estudar a temática indígena desde 1983, Graciela Chamorro pesquisa a religião e a história dos povos guarani do século XVII e de seus contemporâneos. Na entrevista a seguir, concedida, por telefone, à IHU On-Line, ela explica que eles mantêm uma relação de respeito com todos os seres vivos, e tal prática é reforçada pela religião. Como não cultuam imagens, suas representações religiosas são imateriais e se manifestam nos cantos, nos mitos e nas rezas. Segundo a pesquisadora, duas vertentes explicam o mundo religioso guarani. “Uma, é mais popular, entendida pelo viés mágico. Essa vertente também está relacionada a temores, por isso, eles rezam antes de caçar para aplacar a ira dos donos daquela caça. Os guarani acreditam que a natureza tem alma, tem vida própria e uma relação com seus seres protetores. Para caçar, precisam pedir licença. Quando colhem uma planta, por exemplo, eles a celebram. É a celebração que permite o consumo da erva”. A outra manifestação de fé se dá de uma maneira mais filosófica. Eles “acreditam em um ser criador, que acaba confundido com a Palavra. Ele cria pela Palavra, mas ele também é a Palavra. (...) A partir desse ser criador, desdobra-se um pensamento que diz respeito a quem são os seres vivos: eles também são palavras e têm de desenvolver a sua palavridade, a sua missão, ou seja, os seres humanos têm de viver como um verbo, desdobrando-se em diversas frações, as quais irão concretizar o bom modo de ser que eles estão incumbidos a realizar”.

Graciela Chamorro cursou mestrado em História pela Unisinos. É doutora em Antropologia, pela Philipps-Universität, na Alemanha, com a tese Aporte Linguístico para uma história e etnografia do corpo nos povos guarani; em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST), em São Leopoldo, com a tese intitulada Papa tapia rete marangatu (que os nossos corpos tenham sempre algo bom para contar): a experiência religiosa guarani como ato de dizer-se. Fez pós-doutorado em Romanística, na Universidade de Münster, Alemanha. Atualmente é professora de História Indígena na Universidade Federal da Grande Dourados, MS. Dedica-se também à edição de um Dicionário Etnográfico Histórico dos povos índios reduzidos pelos jesuítas, em contraponto com a atual etnografia guarani (nhandeva), kaiowá e mbyá.

Ela estará na Unisinos, no dia 27-10-2010, participando do XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. Na ocasião, abordará o tema O feminino e o corpo no vocabulário de Montoya. A programação completa está disponível no sítio do IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como define a identidade guarani?

Graciela Chamorro – A identidade guarani é fundamentada em eventos que aconteceram no passado remoto e foram protagonizados por seres poderosos, heróis, como o sol e a lua, o irmão maior e o irmão menor. Eles se identificam como um grupo humano especial, que foi deixado pelos seres criadores na Terra para desenvolver a Palavra e, o que eles chamam de tekoporã, ou seja, seu bom modo de ser. Os guarani são missionários do bem-viver, mas missionários para si mesmos.

IHU On-Line - Como caracteriza a espiritualidade e a mística guarani? Em que consistem suas crenças?

Graciela Chamorro – Imaginamos que os povos indígenas adoram o morro, as árvores, um astro. Os guarani não cultuam imagens e, no mundo religioso deles, não existem representações materiais. A representação é imaterial e se manifesta nos cantos, nos mitos, nas rezas, nos relatos. Eles falam do ser criador, dos consortes, do homem e da mulher no início da criação, que são incumbidos de uma função especial. Então, essa relação do presente com o passado é bastante forte na cultura guarani.

Podemos dizer que duas vertentes explicam o mundo religioso guarani. Uma, mais popular, entendida pelo viés mágico. Nesse sentido, eles acreditam que o divino está presente na natureza, nas plantas, nas pedras e em todos os seres vivos. Essa vertente também está relacionada a temores, por isso, eles rezam antes de caçar para aplacar a ira dos donos daquela caça. Os guarani acreditam que a natureza tem alma, tem vida própria e uma relação com seus seres protetores. Para caçar, precisam pedir licença. Quando colhem uma planta, por exemplo, eles a celebram. É a celebração que permite o consumo da erva.

Eles também expressam a fé de uma maneira mais filosófica. Acreditam em um ser criador, que acaba confundido com a Palavra. Ele cria pela Palavra, mas ele também é a Palavra. Isso exige de nós uma reflexão mais elaborada para entender esse pensamento filosófico, que implica numa abstração maior do que a de simplesmente observar que eles têm rituais mágicos. A partir desse ser criador, desdobra-se um pensamento que diz respeito a quem são os seres vivos: eles também são palavras e têm de desenvolver a sua “palavridade”, a sua missão, ou seja, os seres humanos têm de viver como um verbo, desdobrando-se em diversas frações, as quais irão concretizar o bom modo de ser que eles estão incumbidos a realizar.

Alguns grupos guarani se expressam mais nessa linguagem filosófica, mas manifestam isso para poucas pessoas, ou seja, para aquelas em que confiam.

IHU On-Line – Qual é o valor dos antepassados na história de vida desse povo?

Graciela Chamorro – Os ancestrais heróis são seres exemplares e motivo de imitação. Os antepassados mais recentes, avós, tataravós – especialmente se foram rezadores populares – ficam na memória de toda a aldeia. A fala deles chega a ser confundida com a dos irmãos mitológicos, que estão no início da origem guarani. Hoje em dia, professores indígenas tentam incluir rezadores tradicionais no seu plano de aula. Os índios da nova geração, que estão na universidade e têm outras referências da sua formação, ainda valorizam os seus velhos, diferente de nós, que, muitas vezes, desprezamos rapidamente o que nossos pais ensinaram. Não quero dizer com isso que os indígenas não enfrentam crises. Esses velhos representam outra cosmologia, a qual é diferente da cosmologia ocidental, onde a preocupação espiritual e humana é substituída pela tecnologia. Todas as culturas enfretam esse dilema do velho conflitando com o novo, mas eles vivem isso com mais crueza porque as novas gerações estão mais expostas à liderança do novo.

IHU On-Line - Qual é o significado da morte para os guarani? Como eles vivenciam o luto?

Graciela Chamorro – A morte em si é encarada com naturalidade. Esse tema é objeto de uma fala serena, e quando a pessoa já atingiu uma idade mais avançada, a morte é objeto de desejo. Os guarani costumam dizer que quando uma pessoa morre, seu protetor vem buscá-la. Os donos da Palavra, que habitam em outros mundos – o que facilmente chamamos de céu -, buscam a Palavra alma e a levam para seu destino.

O morto, por outro lado, é bastante temido. Acreditam que existe uma alma elevada que continuará a vida num outro mundo, e outra alma que é bastante apegada à Terra e que permanece no mundo terreno, perturbando a vida dos vivos. Isso está relacionado com o luto, porque, na medida em que os parentes da pessoa falecida lamentam a sua morte, essa alma permanece na Terra e se encarna em um familiar. Quando ela encarna em outra pessoa, esta perde a sua identidade e passa a viver a vida do morto. Para que isso não aconteça, eles trabalham para que o luto seja curto. Antigamente, todos os pertences do morto eram queimados. Hoje, isso é raro de acontecer porque representa uma perda material para a comunidade.

IHU On-Line - O que podemos entender por teologia guarani?

Graciela Chamorro – Teologia, como filosofia e antropologia, são termos derivados do mundo greco-romano. Então, teologia significa o discurso sobre Deus, mas teologia guarani tem de significar outra coisa porque eles não fazem parte desta tradição. Um livro meu se chama Teologia Guaraní (Quito: Abyayala, 2004), porque a editora pediu que esse fosse o título.

A teologia indígena circula no mundo dos índios que foram catequizados e se converteram ao catolicismo. Eles estudaram teologia oficial e não-oficial. A partir disso, nos dizem que também têm uma reflexão, a qual não é contemplada nas tradições. Assim, trazem a tradição não-indígena para dentro da teologia. Nesse sentido, a teologia indígena surge para dar espaço a tradições indígenas de espiritualidade que não foram contempladas na teologia cristã. Para outros, a teologia indígena significa outra teologia, a qual foi apagada pela missão cristã.

A teologia não é uma proposta dos indígenas guarani, dos povos indígenas amazônicos. A teologia índia não se preocupa com a teologia não-indígena, mas elabora a si mesma e tenta ser reconhecida assim. Uso o termo teologia indígena ou teologia guarani quando quero dar o testemunho do que eu, como teóloga cristã, conheci intelectualmente do saber indígena, especialmente do saber guarani.

IHU On-Line – E qual é o significado do casamento para esse povo? Eles valorizam a união matrimonial?

Graciela Chamorro – Existe, entre eles, um discurso sobre o casamento, mas esse não é um ritual com tanto destaque como costuma ser na nossa cultura. Quando os jovens decidem se casar, eles conversam com a mãe, e ela fala com a outra família. Antes do casamento, o menino deve saber desenvolver alguma atividade como plantar, ou ter um trabalho. Hoje, alguns jovens casam mais tarde porque precisam se estruturar.

Durante a celebração, o casal deita em uma rede e recebe uma comida especial feita à base de milho, a qual comem juntos. Geralmente, os noivos passam a morar próximo da casa da família da noiva. Há outros rituais, que incluem a erva-mate e diversos elementos.

O primeiro casamento nem sempre é eterno. Para eles, as relações começam de forma mais informal. Conforme as pessoas vão se entendendo, o casamento se estabiliza. Do contrário, eles casam novamente. Há uma tolerância, flexibilidade, ou seja, outra matriz para o casamento.

IHU On-Line - Que vínculos os guarani mantém com a terra? Qual é a importância da natureza para o desenvolvimento da vida social deles?

Graciela Chamorro – Os guarani não têm um termo para a palavra natureza porque esse termo implica em uma divisão entre os seres. Nós dividimos os seres vivos em pensantes e não-pensantes. Nessa lógica, a natureza é aquela que podemos usar em serviço do ser pensante. Isso, de certa forma, rege a nossa sociedade e nos diz que somos seres superiores à natureza, que estamos dotados de inteligência e de alma para dominá-la. Na teologia, isso serviu como uma das narrativas da criação, que diz para o ser humano: “Dominai a terra”. Para os indígenas, essa relação não existe. Eles dizem que são parte da natureza e entendem que ela tem alma e Palavra. Cada ser existente hoje tem uma história. A história desses seres são os relatos que eles geraram, ou seja, são os seus mitos. Esses seres têm uma Palavra alma que é a sua fundação, e essa palavra alma tem de se desenvolver e se tornar madura. Viveiros de Castro  disse, numa palestra, que os indígenas dão um status social para os seres da natureza, ou seja, os humanizam. Por isso fazem rituais de justificativa para derrubar uma árvore que não poderá amadurecer. Isso tudo acontecia num mundo clássico dos indígenas. Hoje eles não conseguem manter essa tradição porque o ambiente que habitam não propicia tais rituais.

Quando pergunto aos guarani sobre o eucalipto, por exemplo, eles dizem que a árvore não tem história, que é uma planta nova, gerada pelo reflorestamento. Eles acham que o estilo de vida dos brancos não tem um sentido, uma razão de ser. A caça, por exemplo, tem uma explicação histórica, mas o frango comprado no supermercado não faz parte da lógica da caça. Para nós, isso também não tem um significado. A diferença é que somos absorvidos por um cotidiano que não nos dá tempo de pensar e valorizar as mudanças que a indústria alimentícia e as redes de supermercados nos impõem. O pensamento dos indígenas não diz respeito apenas a eles. Se tivermos paciência de observar, perceberemos que eles têm algo a nos ensinar.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição