Edição 329 | 17 Mai 2010

Platão e os Guarani: uma leitura da obra de José Peramás

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Livro do padre jesuíta espanhol faz várias referências a Platão e compara aspectos da obra do filósofo com a República dos Guarani. Real sociedade guarani seria uma combinação de Platão e cristianismo, destaca a historiadora Beatriz Domingues.

Que outra situação colonial teria propiciado a concretização de um Estado e sociedade cristãos, como aquela existente entre os guarani? O questionamento foi formulado pelo padre jesuíta José Peramás, autor de A República de Platão e os guarani. A obra estará em debate nesta quinta-feira, 20 de maio, no IHU ideias, que é pré-evento do XII Simpósio Internacional IHU: A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. A conferencista é a historiadora Beatriz Domingues, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais. De acordo com ela, “Peramás nos parece preocupado em demonstrar, com sua narrativa, que a experiência missionária dos jesuítas na América do Sul foi baseada no modelo de Cristo, e iniciada por seus apóstolos no Novo Mundo desde o século XVI”. Há várias referências a Platão ao longo do texto, e o “método” de Peramás é compendiar o que o filósofo escreveu “sobre diferentes assuntos, descrever o referido aspecto entre os guarani, citar ocasionalmente comentários de Platão e outros relatos sobre os guarani, e ‘deixar que o leitor decida’ se existiram mais afinidades ou discrepâncias entre os escritos de Platão e a vida concreta dos índios guarani”. Platão surge na obra de Peramás como um cristão avant la lettre: o amor pela verdade e pelo bem tem que superar o amor por si mesmo. Assim, de modo geral, completa Beatriz, “a real sociedade guarani apresentaria uma combinação de Platão e cristianismo”. As declarações foram dadas na entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line.

Beatriz é graduada em História na UFJF, mestre em Política Internacional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a tese A Modernidade Ibérica e a Revolução Científica do século XVII. Cursou pós-doutorado na University of Maryland System, nos Estados Unidos. Escreveu Tradição na Modernidade e Modernidade na Tradição: a Modernidade Ibérica e a Revolução Copernicana (Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 1996); A reinvenção da roda: a política nuclear no Brasil entre 1964 e 1978 (Juiz de Fora/ Rio de Janeiro: EDUJF/ COPPE, 1997) e Tão Longe, tão perto: a Ibero-América e a Europa Ilustrada (Rio de Janeiro: Editora Museu da República, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como a obra do Padre José Peramás ajuda a contar a natureza das missões jesuíticas na América?

Beatriz Domingues - A ideia de comparar os livros da República e das Leis de Platão com o tipo de administração que teve lugar nas missões ou reduções dos guarani no tempo dos jesuítas nasceu possivelmente da nostalgia de tempos passados e longínquos, vividos intensamente como venturosos, mas agora perdidos. São memórias de uma experiência de vida, descrita com minúcias e exaltada com entusiasmo.

O título original, dado pelo próprio autor – Diário do desterro – indica claramente seu pertencimento à literatura produzida por seus colegas de batina, quando forçados a se afastarem de suas missões e/ou de suas “pátrias” no Novo Mundo. Também a biografia do jesuíta em questão autoriza tal associação. José Manuel Peramás nasceu próximo a Barcelona, em 1723. Foi admitido entre os jesuítas em 1747, e então zarpou para o Novo Mundo. Viveu durante 24 anos no Paraguai, de onde foi expulso em 1767 juntamente com muitos outros inacianos expulsos da Espanha e de diversas regiões hispano-americanas e enviado para Faenza, Itália, onde veio a falecer em 1793. Tratava-se de um humanista, influenciado por poetas latinos – Horácio , Virgílio  ou Ovídio  – e pela prosa de Cícero , e que percebeu a novidade e grandiosidade do que considerou “a terra eleita”. Sua obra expressa a condição de muitos jesuítas hispano-americanos exilados na Itália, que já não mais se consideravam propriamente espanhóis, mas americanos.

Eles representavam, segundo Miguel Batllori , uma fase regionalista pré-nacional em termos de suas formulações patrióticas sobre o continente americano. Ao mesmo tempo, servindo-se do latim enquanto língua geralmente entendida nos círculos cultos da Europa, Peramás se inclui entre o grupo de espanhóis que não têm pruridos em defender a colonização espanhola na América contra os ataques derrogatórios de filósofos europeus como Raynal  e De Pauw . Que outra situação colonial, ele se interroga, teria propiciado a concretização de um Estado e sociedade cristãos, como aquela existente entre os guarani?

Peramás opõe às opiniões desses pensadores “ilustrados de gabinete” – consideradas por ele falsas ou mal intencionadas –, o seu próprio testemunho ocular, vivido ou lido em documentos de primeira mão (uma prática historiográfica corrente entre os jesuítas exilados, mas ainda pouco difundida nos círculos intelectuais setecentistas). Em seu texto, há muitas memórias do trato afetuoso e delicado de pessoas com as quais conviveu em vários momentos difíceis, acrescidos de referências a documentos jesuíticos e a obras de filósofos do passado e de seu tempo, as quais podiam ser lidas em uma cidade como Faenza, em fins do século XVIII. A lista e variedade de citações e referências são provas consistentes de que Peramás teve acesso a uma boa e seleta biblioteca, utilizada com critério e sagacidade. É também um bom historiador, erudito e preciso na citação das fontes.

IHU On-Line - Por que o Padre José Peramás intitulou sua obra como A República de Platão e os guarani?

Beatriz Domingues - Embora o contraponto explicitamente anunciado na obra do jesuíta seja Platão  e a república por ele idealizada, uma observação mais incisiva e detalhada sobre o texto não parece reforçar que Platão seja, de fato, o seu principal interlocutor, ou mesmo o mais importante ponto de partida. Peramás nos parece preocupado em demonstrar, com sua narrativa, que a experiência missionária dos jesuítas na América do Sul foi baseada no modelo de Cristo, e iniciada por seus apóstolos no Novo Mundo desde o século XVI: daí ter rendido frutos desconhecidos em outras partes do globo. Esta parece ser também a opinião do jesuíta e historiador Bartolomeu Melià , ao afirmar que, se Peramás chegou a Platão, não foi a partir de Platão, mas de um método e de uma prática de missões: a missão por “redução”, delineada desde 1503, nas Leis das Índias, tentada, abandonada, corrigida e ajustada em diversas experiências em toda a América.

Certamente muitas referências a Platão estão presentes no texto. O “método” do jesuíta consiste em compendiar o que Platão escreveu sobre diferentes assuntos, descrever o referido aspecto entre os guarani, citar ocasionalmente comentários de Platão e outros relatos sobre os guarani, e “deixar que o leitor decida” se existiram mais afinidades ou discrepâncias entre os escritos de Platão e a vida concreta dos índios guarani. Apresenta os capítulos segundo os temas – em Platão e entre os guarani –, enfatizando os aspectos da vida indígena que comprovam que, longe de serem selvagens, eles ultrapassavam em civilidade os preceitos de Platão e/ou a realidade existente na Europa. Desta forma, o autor apresenta à Europa setecentista uma sociedade tropical mais civilizada que a europeia devido as suas semelhanças com o cristianismo primitivo, um aspecto também presente nas utopias do século XVI. Tais semelhanças tornam-se mais interessantes na medida em que, como já dito, o jesuíta não toma como parâmetro utopias como aquelas escritas por Morus , Bacon  e Campanella ; o que ele oferece é a “descrição de uma realidade construída a partir do ensaio-erro”, na qual conviveu por 24 anos. Comparações com as projeções platônicas parecem ter a função “pedagógica” de mostrar ao leitor europeu do século XVIII – mais ou menos familiarizado com a polêmica em torno das missões guarani – que elas superam o projetado na utopia platônica e, naturalmente, a realidade corrompida das sociedades europeias do próprio século das luzes.

Cristão avant la lettre

Um exemplo interessante da estratégia de Peramás recorrer a Platão para discutir questões polêmicas de seu próprio tempo é quando se refere à Inquisição. Segundo ele, uma prova de civilidade guarani é a inexistência, entre eles, de vícios e crimes que necessitem um tribunal da Inquisição. Diferentemente do que proclamam os “filósofos liberais” (ilustrados), Platão propunha um tribunal da inquisição “mais duro e severo que o nosso”. Porque Platão “sabia muito bem que nada perturba tanto a República como quando se sacodem os fundamentos da religião”. Daí ter proibido que se cantassem, em público, canções que não tivessem sido antes aprovadas pelos magistrados. Platão aparece no texto de Peramás como um cristão avant la lettre: o amor pela verdade e pelo bem tem que superar o amor por si mesmo. Apesar dessas considerações sobre a utilidade de uma inquisição, somos informados pelo jesuíta que os guarani não estão submetidos ao tribunal, mas apenas “aos seus curas, a outros religiosos e aos cidadãos espanhóis”. E nem seria necessário, já que inexistem entre eles vícios e crimes que necessitassem a repressão do referido tribunal, como também era o caso da Ilha de Utopia, de Morus.

Já os filósofos ilustrados, que ele classifica como “filósofos desenfreados”, fazem um panegírico da lei natural. Em sua defesa, alguns chegam a “admitir o Hades; outros, que o homem vive somente da matéria e que se compara com as bestas; outros, enfim, são ateus”.  Mas não há, segundo Peramás, sociedades que vivam mais de acordo com a lei natural do que aquelas regidas pelo cristianismo. Em contraste com os “filósofos liberais” que querem explicar o progresso das sociedades sem a religião, o autor reafirma o papel fundamental que o evangelho exerceu e exerce na civilização (um aspecto tão valorizado pelo pensamento ilustrado). Isso seria verdade tanto para os germanos como para os guarani.

IHU On-Line - Quais eram as particularidades nas missões jesuí¬ticas com os guarani que as aproximavam do modelo da República de Platão?

Beatriz Domingues - Ainda segundo Bartolomeu Melià, se Peramás sente-se próximo das ideias de Platão, mostra-se distante e até horrorizado pelas novidades da Ilustração e pelas ideias e ideais da Revolução Francesa. O mundo europeu da época parece, ao autor, estar demasiadamente “civilizado”, demasiadamente materialista e individualista para ser humano e, consequentemente, cristão. A caracterização da obra como utopia, no entender de Melià, advém do fato de não serem mais possíveis, na Europa, os modos de vida mais antigos, ao mesmo tempo mais solidários e mais fraternos. Já na segunda metade do século XVI, era mister reconhecer que sequer o cristianismo era capaz de manter a pureza de costumes e a vida de caridade consideradas essenciais em sociedades igualitárias e fraternas, moderadas em seus desejos, solidária, sem apelo monetário, porém com significativo progresso, como foi a república dos guarani.

Um ponto comum entre os escritos de Platão, Morus e o de Peramás era a questão da comunidade de bens. Peramás não aceitava tal proposta na forma como se apresentava nos livros de Platão – ainda que o considerasse um cristão avant la lettre –, ou na utopia do católico Morus. Segundo ele, mesmo se na nascente Igreja cristã houve uma perfeita comunidade e igualdade entre o grupo de fiéis, isto ocorreu “por singular obra do Espírito Santo, que quis dar lustre à doutrina de Cristo com tão exímio exemplo, para atrair para si uns e outros”.  Já entre os guarani, havia bens comuns, mas não todos os bens. O trabalho da população em seus respectivos campos comuns, conforme o antigo costume romano, teria certamente sido aprovado pelo “ilustre varão Tomás Morus, que queria que fossem agricultores todos os que se juntaram naquela sua república ou UTOPIA”. Thomas Morus segue Platão, mas se distingue dele em coisas essenciais: o estado ideal lhe serve para criticar a situação real da Inglaterra de seu tempo, e, em seu modelo de sociedade, não há classes sociais, e a comunidade de bens se estende a todos.

As referências de Peramás a Platão baseiam-se em edições existentes em sua época. O inaciano exilado de seu querido Paraguai propõe-se a mostrar que, na América do Sul, entre os guarani, existiu algo parecido com o concebido por Platão (e Morus), porém melhor. A real sociedade guarani apresentaria uma combinação de Platão e cristianismo. Mas ele faz questão de explicitar que admira algumas ideias platônicas, mas não todas: “não aquelas que vão de encontro à doutrina cristã”. Considera a felicidade dos povos proporcional ao cumprimento dos mandamentos de Cristo; quanto mais assíduos aos cultos divinos e mais firmes na fé são os povos, mais perfeitas e felizes são as sociedades. Nisso está de acordo com Campanella. Este é seu principal argumento para refutar os “ataques temerários e irreverentes dos atuais filósofos” (ilustrados). Platão entra aqui como um exemplo de pensador que, mesmo antes de Cristo, combinava religião e boa sociedade, possibilidade negada a partir do século XVI por Maquiavel  e seus seguidores e, no século XVIII, por muitos filósofos ilustrados.

IHU On-Line - Nesse sentido, em que medida há conexão entre as concepções de Peramás e de Clovis Lugon sobre uma república comunista dos guarani?

Beatriz Domingues - A conexão é certamente possível. O jesuíta e historiador suíço Clovis Lugon  se inclui no grupo dos admiradores de Peramás e inimigos do Marquês de Pombal , ou mais exatamente entre os defensores do modo de vida guarani enquanto um exemplo a ser seguido por outras sociedades. Já desde a publicação de seu A república “comunista” cristã dos guarani: 1610/1768 (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968), em 1949, era conhecido como o “vigário vermelho”, em grande parte devido às suas ideias igualitárias, que difundia entre a juventude. Mas seu livro é também um estudo da sociedade guarani que atenta para várias características das missões admiradas já durante os séculos XVII e XVIII (por Peramás, por exemplo), além da comunidade de bens.

Ele assinala, por exemplo, o assombro dos soldados portugueses e espanhóis diante da magnitude das igrejas missioneiras, quando das batalhas finais da questão dos limites. Segundo ele: “Tudo lhes falava e os impressionava: os grandes confessionários de cedro, também rematados por estátuas, as pias batismais, a majestade deslumbrante e a profusão de vida e riqueza dos altares. A nobreza, a grandeza, a pureza e a doçura cercavam-nos, envolviam-nos inteiramente. Esses antigos cristãos da velha Espanha católica sentiram-se dominados. Alguns tiveram medo e recuaram, como se fossem bárbaros sacrílegos que, ao violarem um lugar sagrado, descobrissem um mundo superior. Os melhores sentiram-se humilhados e envergonhados, de armas na mão”.

Outro exemplo seria a existência de uma língua geral. As missões guarani, segundo ele, constituíam uma grande nação formada por tribos diferentes, porém unificadas por uma língua geral. Ocupando um território cuja extensão suplantava a da Europa Continental, que se estendia dos pampas sulinos aos limites da Amazônia, causou espanto aos conquistadores o fato de tantos povoados socialmente isolados manterem essa língua unificadora. Peramás já afirmava que língua guarani não perde em sofisticação e artifício nem para o grego, nem para o latim. Até porque as línguas seriam mais um dom de Deus que uma invenção dos povos. E Deus escolheu os guarani. Também ficaram impressionados com a perfeição da língua guarani, atribuindo-a a um dom de Deus, Domingo Bandeira, Cláudio Duret, Lorenzo Hervás y Panduro  S.J., dentre outros.

IHU On-Line - Em que aspectos as missões jesuíticas concretizam a grande utopia humana de igualdade e da fraternidade?

Beatriz Domingues - O propósito enunciado por Peramás foi destacar a peculiaridade dos guarani em relação à república platônica – tomada por ele como parâmetro – e às utopias renascentistas, as quais ele faz poucas referências. Mas são referências importantes, no sentido de comprovar a tênue separação entre ficção e realidade, independentemente da intenção declarada dos autores. Diferentemente de Morus e Campanella, que alegavam estar descrevendo uma sociedade imaginária, para, através dela, criticar a sociedade em que viviam, Peramás anuncia que seu relato é o de uma sociedade concreta, na qual ele próprio viveu por um longo período.

Podemos sempre especular que quem anuncia estar escrevendo apenas ficção esteja sempre falando também de realidade, assim como o seu inverso, ou seja, que os que proclamam descrever exclusivamente o real, frequentemente lhe adicionam sua dose de ficção. Não é aqui o espaço para aprofundarmos nesta discussão, mas ela certamente perpassa minhas considerações sobre os escritos do autor em questão.

Concordo com a sugestão de Melià de que o texto seria mais propriamente definido como uma “utopia concretizada”, o que lhe dá uma feição bastante conservadora: é entusiasta, embora ingênua, idealista, mas polêmica. Entra em atrito com o racionalismo da Ilustração francesa, mas não se atreve a propor o que havia de revolucionário em uma sociedade como a guarani das reduções; uma sociedade colonial em muitos de seus aspectos, localizada na periferia do sistema mercantil, mas que, ao mesmo tempo, concretizou os ideais cristãos não encontrados na Europa ou em nenhuma outra parte do mundo.

Analogias

Embora o autor do prefácio à tradução da obra de Peramás para o português atente para o fato de não existirem provas textuais para aproximações entre as orientações dos jesuítas e alguns modelos utópicos renascentistas (Thomas Morus, Campanella), é importante notar o fato de Peramás ter-se referido nominalmente a Morus (por exemplo, no capítulo onde discute sobre a comunidade de bens). Nele fica explícito que o jesuíta cita Morus como exemplo de utopia ficcional, para então contrapor o seu relato verídico de sua experiência em uma sociedade que superou quaisquer ficções ou projeções. Isso porque, segundo ele, suas fontes são documentais: além de suas próprias memórias, incluem narrativas e histórias “de pessoas balizadas” que já haviam tratado das missões com admiração e interesse.

Não só pela mencionada referência de Peramás a Morus, arrisco dizer que podemos, no século XXI, estabelecer analogias entre suas descrições da sociedade guarani e as utopias renascentistas cristãs, ainda que, no século XVIII, o gênero utopia não estivesse muito em voga. Isso talvez explique o fato de o próprio Peramás não considerar seu trabalho como tal. Não impede, contudo, que o contraponto ficção/realidade – que perpassou os textos renascentistas, os ilustrados e continua vivo até hoje – se tenha feito presente também na obra de Peramás. A coexistência entre ficção e realidade vem à tona na própria proposta do jesuíta setecentista de provar a total compatibilidade entre religião e a melhor sociedade possível, na linha proposta por Campanella no início do século XVII: a verdadeira sociedade justa, igualitária e próspera tornou-se possível, precisamente, sob princípios cristãos. Com ou sem intenção, o autor dá continuidade também ao principal argumento de autores antimaquiavelistas – dentre os quais se destacavam os jesuítas, refutando o autor do “Príncipe”, embora jamais citado, desde o século XVI – que não aceitavam a máxima maquiavélica segundo a qual um bom príncipe tem que fingir ser um bom cristão, mas não sê-lo de fato. A sociedade construída pelos jesuítas entre os guarani na América do Sul, garante-nos Peramás, é “civilizada” e supera em muito qualquer outra idealizada pelos europeus, exatamente por ser exemplo único de sociedade regida por princípios cristãos, segundo a concepção humanista cristã de civilização: a frequência religiosa ao templo fecha a porta para vícios como a corrupção dos costumes.

Isso foi, segundo ele, reconhecido por muitos que conheceram in loco, ou através de “fontes confiáveis”, o empreendimento missionário jesuítico no Paraguai. Nem o autor nem outras testemunhas, nas quais ele se ampara, jamais tinham visto um povo tão piedoso como o guarani. O próprio papa Benedito XIV  teria reconhecido a igreja guarani como modelo. Também Felipe V ficou conhecendo, pelo testemunho dos bispos, a grandeza e esplendor dos templos guarani, “impossíveis de superar em religiosidade, brilho e devoção”, e congratulou-se com os superiores do Paraguai e seus companheiros guarani.

IHU On-Line - Qual foi a novidade do tipo de sociedade vivenciada nessas missões em relação às outras formas políticas existentes àquela época?

Beatriz Domingues - Foi significativa. Dialogando com as utopias de Platão e dos renascentistas Morus e Campanella, Peramás mostrava aos seus coevos, em especial aos então inimigos europeus da Companhia de Jesus – cujas teorias sobre o Novo Mundo tinham por pressuposto e conclusão a inferioridade da América em relação à Europa – que existia, de fato, no continente americano, uma república indígena regida por princípios cristãos e igualitários. Diferentemente dos citados autores renascentistas, o jesuíta enfatiza a veracidade do seu relato sobre a experiência civilizadora dos inacianos entre os guarani, possibilitada pela longa vivência entre eles. Esta experiência in loco foi o argumento central utilizado por ele para demonstrar o equívoco das teses dos denominados “filósofos de gabinete” europeus contemporâneos a ele, como Cornelius de Pauw e Raynal. É interessante constatar, contudo, o aparente paradoxo de ser Peramás um crítico e, ao mesmo tempo, adepto de alguns pressupostos do pensamento ilustrado: sua crítica à Ilustração europeia coexiste com a adesão a alguns de seus princípios mais caros, como a oposição civilização/barbárie, bem como a preponderância do real sobre o ficcional acima mencionado.

Mas é importante salientar, uma vez mais concordando com Melià, que as muitas referências citadas por Peramás não são feitas somente para fins de erudição ou elegância: são premissas sérias e honestas para construir o diálogo dos guarani com o mundo moderno e com o da Ilustração. Os guarani, como poucos outros povos da América, penetraram na reflexão filosófica, política e religiosa moderna, dando lugar às mais curiosas interpretações e comentários. Isto é importante na medida em que possibilita estabelecer um diálogo de seu texto com a bibliografia pró e antijesuítica e/ou pró e antiamérica, que caracterizou a segunda metade do Século das Luzes, e que continuou a existir, sob outros formatos, nos séculos subsequentes.

IHU On-Line - Em que aspectos a experiência das missões continua a inspirar o povo latino-americano para uma outra política, mais justa?

Beatriz Domingues - A defesa da sociedade guarani no século XVIII por Peramás se alinha, por exemplo, com a de José Cardiel . Mas tratava-se de um tempo em que as missões jesuíticas eram tema recorrente não apenas entre jesuítas. O empreendimento missionário foi certamente criticado por filósofos europeus como Voltaire , no Cândido. Por outro lado, é curioso que o “ateu” Voltaire  tenha localizado o Eldorado – para ele sinônimo de uma sociedade civilizada e não somente rica em ouro – em algum lugar remoto da América do Sul. Mas se pode detectar também, mesmo em escritos de inimigos da Companhia de Jesus, referências positivas às missões, que foram excluídas da selvageria reinante no Novo Mundo por autores como Montesquieu  e Raynal.

Posteriormente, por ocasião da Revolução Francesa e durante o século XIX, foram frequentes as associações das missões com ideais libertários e/ou socialistas. Dois entusiastas dignos de menção foram Paul Lafargue , genro de Karl Marx, e Kautski , precursor do socialismo.

No início do século XX, penso que a combinação de marxismo com catolicismo por José Carlos Mariátegui  poderia se inserir na mesma linha. O pioneiro marxista peruano argumentou, nos Sete ensaios sobre economia peruana (São Paulo: Alfa-Ômega, 2004) que, na história da América Latina, não se aplicava a máxima marxista que interpreta a religião como ópio do povo. Segundo ele, desde Bartolomé de las Casas , no século XVI, representantes da Igreja na América Latina se posicionaram em favor dos oprimidos. E isto ainda era possível. Mariátegui foi uma das referências para a Teologia da Libertação.

Esta linha de autores tende a pensar a história das missões jesuíticas no Paraguai enquanto uma história pragmática, resultado da atividade do dia-a-dia, no ensaio-erro, na qual confluem decisões práticas com ideias teóricas. A explicação para o seu sucesso estaria na combinação de princípios evangélicos com regras do senso comum, conhecida como aculturação. Mas a conclusão do jesuíta Melià é que muitas das soluções podem ser provavelmente atribuídas mais aos guarani que aos jesuítas: sem os guarani, as missões seriam outra coisa.

Em 2009, o livro Pedido de perdão ao triunfo da humanidade – A importância dos 160 anos das Missões Jesuítico-Guarani (Porto Alegre: Martins Livreiro, 2009), escrito por José Roberto de Oliveira  em comemoração aos 400 anos das Missões, mostra a importância que as missões jesuíticas Guarani tiveram na concepção de um mundo fraternal-igualitário-possível e especialmente na formação da ideia de que a utopia do cristianismo se realizou durante 160 anos da experiência missioneira na América do Sul (1609-1768,). O importante alerta dado por ele, pensando na realidade atual do Mercosul e do turismo missioneiro, é que o guarani não desapareceu, apesar do extermínio de grande parte deles: sua genética e cultura continuam vivas em países como Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição