Edição 326 | 26 Abril 2010

Freud e o inconsciente: a noção de uma outra cena

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Graziela Wolfart e Márica Junges

Charles Lang explica que o inconsciente freudiano pode ser entendido como o campo de forças que determinam as experiências humanas, um campo de forças que costuma situar-se fora do campo da consciência

Convidado pela IHU On-Line a refletir sobre o conceito de inconsciente em Freud, o psicanalista Charles Lang afirma que o dispositivo psicanalítico de análise do inconsciente “não é um mecanismo biopolítico no sentido da dominação, do cálculo e do controle, mas no sentido da escuta daquilo que causa o sujeito e que é a sua verdade, e da criação e produção de formas e espaços que tornem o sujeito, na era da ciência, viável”. Na entrevista que nos concedeu, por e-mail, ele declara que “não se pode afirmar diretamente que o inconsciente é um mecanismo biopolítico, mas pode-se pensar que a escuta do inconsciente tornou-se possível a partir de uma determinada configuração familiar, a chamada família nuclear burguesa, e que Freud tenha feito coincidir o seu complexo de Édipo com este modelo familiar”. Para Charles Lang, “os nossos sintomas – um tique nervoso, um hobby, uma mania, um vício etc. – falam muito mais de nossa infância e de quem de fato somos do que o livro em que queremos explicar o nosso pensamento sobre determinado assunto”.

O tema Freud e o Inconsciente será debatido no próximo dia 4 de maio, pelo Prof. Dr. Mario Fleig, da Unisinos, no Ciclo de Estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. A atividade acontece das 19h30min às 22h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. Mais informações podem ser obtidas aqui.

Charles Elias Lang é professor e pesquisador no curso de Psicologia da Universidade Federal
de Alagoas - UFAL. É doutor em Psicologia pela PUC-SP e psicanalista membro da Associação Psicanalítica De Porto Alegre - APPOA.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a definição freudiana de inconsciente? Por que há conteúdos que são aptos de se tornarem conscientes? Não seria isso um determinismo psíquico? Em que essa definição difere do subconsciente, proposta por Jung?

Charles Lang - Para Freud, o inconsciente é um lugar desconhecido para a consciência, uma outra cena. Para dar conta do inconsciente, ele elaborou duas teorias dos lugares psíquicos, duas tópicas. Na primeira, trata-se de uma instância psíquica ou um sistema, constituído por conteúdos recalcados, conteúdos que escapam às outras instâncias – o pré-consciente e o consciente. Na segunda tópica, o inconsciente não é mais entendido como uma instância, mas passa a qualificar o Isso e, em grande parte, o Eu e o Super-Eu. Grosso modo, o inconsciente freudiano pode ser entendido como o campo de forças que determinam as experiências humanas, um campo de forças que costuma situar-se fora do campo da consciência; forças presentes e atuantes antes mesmo do surgimento da consciência e cujos efeitos permanecem em nós como restos, como resíduos. A própria definição de inconsciente implica algo que não pode ser conscientizado, algo que pela sua própria natureza, estrutura e funcionamento somente consegue adentrar no registro da consciência de modo oblíquo, alterado, condensado, deslocado, deformado. Ou seja, aquilo do inconsciente que chega à consciência somente o faz através das formações do inconsciente: os nossos sonhos, os nossos lapsos de fala, de memória, os nossos atos que falham e os nossos sintomas. Ajuda muito, para compreender o inconsciente, pensá-lo mais como forma, mais própria a ser repetida, do que como conteúdo, mais próprio a ser rememorado, lembrado. A este conteúdo, passível de ser conscientizado, Freud reservou o termo pré-consciente.

A sexualidade infantil

O inconsciente freudiano dificilmente pode ser compreendido sem ter-se em conta a sexualidade infantil e o complexo de Édipo. A grande resistência em relação à Psicanálise sempre foi a admissão de que a sexualidade está presente no ser humano desde o início da vida, e que a sexualidade das crianças, ainda que não exercida, existe e necessariamente irá conviver com o campo da sexualidade da mamãe e do papai, e especialmente com o campo intenso da sexualidade entre o homem e a mulher que se apresentam como papai e mamãe. De certo modo este é o destino necessário, o desfiladeiro que deverá ser transposto por todo bebê: responder ao chamado da sexualidade e da linguagem. A resposta a este chamado é que constitui o inconsciente.

As primeiras reações enfáticas e consequentes ao relevo dado por Freud à sexualidade infantil partiram especialmente de alguns de seus discípulos, como é caso do psiquiatra suíço C.G.Jung . Hoje está mais claro que a recusa de Jung à Psicanálise nos moldes de Freud não se devia simplesmente a uma má compreensão da Psicanálise ou à recusa do complexo de Édipo como o complexo nuclear do inconsciente. Deve-se compreender que Freud e Jung eram homens muito diferentes, endereçavam-se a interlocutores distintos e tinham concepções antropológicas, ontológicas e epistemológicas que logo entraram em choque, o que implicou também nas consequências éticas do trabalho dos dois. Acredito que certos endereçamentos e a persistência de resíduos metafísicos ainda impedem o diálogo entre os herdeiros de Freud e os de Jung, mas que um diálogo poderia ser possível se levar em conta a chamada “virada linguística” e seus efeitos na Antropologia e na Epistemologia do século XX. Também pode ser frutífera para o diálogo a consideração de que tanto a Psicanálise quanto a Psicologia Analítica (de Jung) são práticas de linguagem, e que ambas podem e devem andar no compasso das Ciências da Linguagem.

IHU On-Line - Quais são as aproximações que podem ser feitas entre o inconsciente freudiano e uma compreensão deste como mecanismo biopolítico nos moldes foucaultianos?
Charles Lang -
Nunca podemos nos esquecer que o aparecimento da Psicanálise coincide com a passagem do século XIX para o século XX, e isto não é coincidência nem questão de detalhe. É do século XIX a ideia de que saúde e educação são as maiores riquezas de uma Nação. Esta ideia, inclusive, está presente em nossos dias quando se avaliam o índice de desenvolvimento humano de um país mensurando-se a saúde e o grau de educação da população. Ora, para que pudéssemos ter cidadãos cada vez mais saudáveis e altamente educados, foi necessária uma biopolítica, e parece que quem pagou mais caro para que os objetivos desta biopolítica fossem atingidos foram as mulheres. Os homens conseguiram manter um duplo papel, negado às mulheres. Destas se esperava que casassem e cumprissem o destino de donas de casa, intermediando o mundo da casa, do marido e das crianças e o mundo do poder educante e do poder médico. Neste sentido, dos homens não se exigiu tanto e, no final e na virada do século, parecia ser preferível nascer homem. De certa maneira, era isso o que aparecia no discurso das pacientes de Freud, uma queixa do preço que as mulheres tinham a pagar, e uma inveja do duplo papel que os homens poderiam exercer: um dentro de casa e outro na rua. Muitas das pacientes de Freud lamentavam a sua condição e a da mãe, ao mesmo tempo em que denunciavam a rigidez do pai em casa concomitante a sua liberalidade com prostitutas e bordéis.

Esta biopolítica também fez com que as crianças se tornassem o objetivo maior da sociedade, da família e da vida de um homem e de uma mulher. Não é a toa que, em 1914, Freud registrava em seu Introdução ao narcisismo a expressão His majesty, the Baby, ou seja, que então os bebês tinham ocupado o lugar que o Rei ocupara no passado. Assim, não se pode afirmar diretamente que o inconsciente é um mecanismo biopolítico, mas pode-se pensar que a escuta do inconsciente tornou-se possível a partir de uma determinada configuração familiar, a chamada família nuclear burguesa, e que Freud tenha feito coincidir o seu complexo de Édipo com este modelo familiar.

A transformação da família

Claro que as coisas mudaram desde então e que não é mais possível pensar-se o Édipo tendo exclusivamente em conta o modelo familiar de então. A família transformou-se. O Édipo também. O corpo da mulher deixou de ser objeto exclusivo para o prazer do homem e para gerar filhos, como o era na Viena de Freud em que a histeria – um padecimento do corpo psíquico – tornara-se uma espécie de política. O século XX foi considerado por muitos como o “século das mulheres”, e, junto com este movimento, surgiu o movimento gay e, mais recentemente, o movimento dos transexuais. O interessante, neste último, é a discussão que ele levanta: não se trata apenas de questões de gênero e de papéis, mas a questão de poder transformar o próprio corpo, reivindicar-se um corpo que não seja nem de homem nem de mulher. E isto também está sendo repensado pelos psicanalistas.
 
IHU On-Line - Nesse sentido, o inconsciente é o espaço da transgressão, onde não impera a normalização e a normatização? Por quê?

Charles Lang - O inconsciente, por sua própria natureza, é algo que irrompe e transgride o regime da consciência. O sonho noturno, muitas vezes, tem um impacto maior em uma vida humana do que a oratória ou um argumento lógico. Muitas das grandes decisões de nossas vidas as tomamos no travesseiro, ou seja, a partir de uma disposição produzida pelo sonhar. Os grandes oradores sabem do perigo que os ronda em uma fala pública. Recentemente uma das pré-candidatas à presidência da República traiu-se quando, ao querer dizer o nome de seu atual partido, disse o nome do partido ao qual havia antes dedicado quase toda a sua vida e com o qual rompeu. Sua justificativa para o lapso foi a de que “ainda não havia conseguido fazer o luto”. Os nossos sintomas – um tique nervoso, um hobby, uma mania, um vício etc. – falam muito mais de nossa infância e de quem de fato somos do que o livro em que queremos explicar o nosso pensamento sobre determinado assunto. 

O inconsciente é também algo extremamente criativo. Basta lembrarmos do potencial subversivo e criativo do humor em épocas de vigilância e tutela estatal e religiosa; do perigo de uma piada, de uma charge, de uma homofonia ou de um jogo de palavras. O “pai, afasta de mim este cálice” de Chico Buarque, escrito, venceu o censor militar. Mas o “cale-se”, ouvido, estava fora de alcance de qualquer censura. A poesia, o teatro, a literatura, as artes visuais etc., - ou seja, os campos em que à criatividade humana é dada a liberdade - são os precursores disto que Freud nomeou como inconsciente. Por isso, em época de repressão e em regimes de exceção, a arte é o primeiro visado.

O inconsciente é algo normalizado, o que nos permite sermos desculpados quando chegamos atrasados ou esquecemos um compromisso ou a data de aniversário da pessoa que dizemos amar. Tacitamente somos compreendidos e justificados mesmo que o outro tenha a clara percepção de que a desculpa que utilizamos é uma desculpa “esfarrapada”. Tacitamente, somos condescendentes por compreendermos que cada um de nós tem que lidar com algo em si e nos outros que simplesmente escapa ao controle. Ele é normalizado no sentido de que intuitivamente compreendemos que simplesmente não conseguimos viver sem álibis diante deste estranho/familiar em cada um. E é normatizado no sentido de que o inconsciente não é algum puramente irracional, obscuro, abscôndido e sobrenatural. O inconsciente é regido por leis e por processos, descritos por Freud e formalizado de diferentes maneiras, o que constitui as diferentes escolas pós-freudianas. O exemplo mais retumbante da formalização do inconsciente foi produzida em termos linguísticos, topológicos e lógico-matemáticos: trata-se do trabalho do psicanalista francês Jacques Lacan.

A invenção do dispositivo analítico

Por outro lado, normalizar e normatizar o inconsciente têm sido a pretensão de diversos discursos: o amoroso, o político, o pedagógico e, no último século, o psicanalítico. A história da humanidade é o testemunho dos resultados destas tentativas. O que temos a partir de Freud é a invenção de um dispositivo, o dispositivo analítico. Sabemos que esta invenção tem como questão a epidemia histérica que assolava os países europeus mais desenvolvidos de então. Retrospectivamente podemos hoje entender a histeria como um dos germes de uma das grandes vertentes ocidentais de oposição à tradição, à ideologia e à sociedade patriarcais. Ao dar ouvidos à histeria, Freud a inclui de outra maneira, a autoriza, dá-lhe uma autoridade e autoria completamente diferente do que era comum no meio familiar, social e médico. Lacan, nos idos do maio de 68, torna público o seu conceito de discurso analítico, resgatando o espírito de Freud ao colocar no lugar de agente justamente o que é o resto, o excluído nos outros discursos. Não se trata, no entanto, de tornar consciente o inconsciente ou de incluir o excluído. Não se trata de uma nova militância. Trata-se de escutar naquilo que é excluído a verdade que o excluiu e o mantém excluído. E entender o próprio processo de exclusão como uma forma necessária, mesmo que inviável, de tratar com o intratável, de suportar o insuportável. Neste sentido, o dispositivo psicanalítico não é um mecanismo biopolítico no sentido da dominação, do cálculo e do controle, mas no sentido da escuta daquilo que causa o sujeito e que é a sua verdade, e da criação e produção de formas e espaços que tornem o sujeito, na era da ciência, viável.

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