Edição 324 | 12 Abril 2010

Foucault e a governamentalidade biopolítica

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Márcia Junges

Para o filósofo César Candiotto, o pensamento foucaultiano é atual para compreender os três dispositivos de poder responsáveis por uma “ortopedia moral dos indivíduos”: disciplinar, de segurança e controle das mentes. Biopolítica precisa ser compreendida a partir de um paradoxo.

A partir do legado do filósofo francês Michel Foucault, é possível identificar três dispositivos de poder na atualidade. O primeiro deles, amplamente investigado em Vigiar e punir, é o dispositivo disciplinar, hoje observável em instituições semiabertas como “escolas, empresas, hospitais, manicômios e prisões”, analisa o filósofo César Candiotto. Por se dirigirem à superfície corporal, esses dispositivos “proporcionam uma ortopedia moral e a constituição de um indivíduo normalizado segundo os imperativos morais e até mesmo mercadológicos”. O segundo dispositivo é o da segurança, “que promete atuar na preservação e cuidado da vida de uma população biologicamente determinada exigindo, em troca, a restrição de suas liberdades, a obediência a suas normativas, o pagamento adequado de seus impostos”. Por último, o dispositivo disciplinar se encarrega de controlar as mentes, suas aspirações e desejos, criando-os e moldando-os. Essas ideias são desenvolvidas na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Nela, Candiotto antecipa aspectos que irá debater em 16 de abril, das 20 às 22h, no pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, na Sala Conecta, na Unisinos. Para conferir a programação completa do XI Simpósio Internacional IHU, que acontece de 13 a 16 de setembro clique aqui.

Professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Candiotto é graduado em Filosofia por essa instituição, e em Teologia pela PUC do Chile. Cursou mestrado em Educação pela PUCPR e doutorado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e na Universidade de Paris XII com a tese Foucault e a verdade. Organizou as obras Mente, cognição, linguagem (Champagnat: Curitiba, 2008) e Ética: abordagens e perspectivas (Champagnat: Curitiba, 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a relação entre biopoder e a governamentalidade dos sujeitos?

César Candiotto - Foucault  entendeu o biopoder como uma tecnologia política determinada situada a partir da segunda metade do século XVIII. Seu alvo é a vida tomada a partir da multiplicidade de uma população, definida em termos de traços biológicos específicos. Caracteriza-se pela gestão calculada do ingresso da vida natural no domínio da política, a partir da formação de saberes que a controlam e a explicam e de poderes que intervêm na sua regularidade. Estatística, demografia e medicina social são saberes que emergem nessa época ao lado dos poderes soberanos modernos decorrentes do surgimento dos Estados nacionais. Se a ideia política de nacionalidade e, portanto, de cidadania, advém daquele que é nascido num determinado território, o conceito de população, por sua vez, reúne seres humanos em razão de seu corpo espécie. Quer dizer, o corpo deixa de ser algo constitutivo do humano para ser mecanicamente associado à lógica geral de qualquer ser vivente cuja função é suportar os mais variados processos biológicos, desde a natalidade à mortalidade, no entremeio dos quais podem ser situadas epidemias, endemias, morbidades, fluxos migratórios etc.

Num e noutro caso, corpo e vida somente interessam às estratégias de poder e às técnicas de poder se eles figuram em processos associados à população. Pelo menos dois aspectos da vida natural foram decisivamente importantes para este espaço de discursividade e para práticas de intervenção e regulação: o sexo e a raça.

Sexualização como resistência

Para a definição da sexualidade saudável, houve o controle da masturbação infantil, a delimitação das sexualidades desviantes em termos patológicos de perversão. Em vistas da positivação da pureza de uma raça, foram estatuídas categorias populacionais consideradas degenerativas, em relação às quais não se deveria cuidar, mas abandonar e, até mesmo, eliminar. Se o biopoder, pelo menos nessa primeira acepção, opera principalmente sobre a vida natural, nesse mesmo campo de imanência é que incidem as práticas de resistência. A sexualização da sociedade a partir dos anos 1960 constituiu uma modalidade de resistência (no sentido de libertação ou de liberalização), que atuou no mesmo nível que a regulação da sexualidade por parte do biopoder. Já a figura do muçulmano, judeu meio vivo e meio morto nos campos de concentração nazistas, delineada por Agamben , atua a partir da indiferença proporcionada por seu corpo inerte, diante da violência do soldado que dele espera um pedido de misericórdia, um enfrentamento ou, pelo menos, uma tentativa de fuga.

Chave de inteligibilidade

Quanto à governamentalidade, não é um modo historicamente circunscrito de atuação do poder, como no caso do biopoder. Trata-se, antes, de uma chave de inteligibilidade, de um pano de fundo, de um campo de possibilidades a partir dos quais as relações de poder adquirem uma nova significação em relação à sua concepção anterior. Até 1978, Foucault entende o poder como relação estratégica entre forças ínfimas e microfísicas que atravessam os corpos individuais e perpassam o tecido societário. Desde 1978, ele o concebe como um conjunto de ações, em função do qual os indivíduos tentam limitar as ações de outrem ou a previsibilidade de que as mesmas ocorram a partir de suas próprias ações.

Denomina-se também de governamentalidade dos sujeitos porque nessa chave de leitura sempre são supostos agentes livres; mas eles assim o são na medida em que e somente quando agem. Nesse sentido, se o biopoder opera principalmente a partir dos estados de dominação que atuam sobre a vida natural politicamente investida, já a governamentalidade dos sujeitos combina técnicas de dominação e técnicas de si em termos de sujeitos livres. Diante da tentativa permanente que os poderes têm de determinar nossas ações e seu campo de possibilidades objetivando o governo da individualização, podemos criar espaços de reversibilidade a partir de ações que não somente limitam aquela tentativa de governo, mas também engendram singularidades múltiplas, inalcançáveis por quaisquer tentativas de condução de nossas condutas.

IHU On-Line - Quais os principais dispositivos de poder hoje existentes?

César Candiotto - Entendido o dispositivo como um conjunto de discursos, práticas, conformações espaciais e arquiteturais, no amplo sentido atribuído por Foucault, acredito que é possível identificar a sobreposição de três dispositivos na atualidade.

O primeiro deles, magistralmente descrito por Foucault em Vigiar e punir, é o disciplinar. Ele incide sobre a otimização do corpo em termos de um sistema de recompensas em vista de condutas almejadas; e de vigilância e correção, para a prevenção ou correção de comportamentos indesejáveis. Ele ainda pode ser observável em instituições semiabertas como escolas, empresas, hospitais, como também nas famosas instituições de confinamento, caso dos manicômios e prisões. Ao se dirigir à superfície corporal, esses dispositivos proporcionam uma ortopedia moral e a constituição de um indivíduo normalizado segundo os imperativos morais e até mesmo mercadológicos.

O segundo dispositivo é o da segurança, que promete atuar na preservação e cuidado da vida de uma população biologicamente determinada exigindo, em troca, a restrição de suas liberdades, a obediência a suas normativas, o pagamento adequado de seus impostos. Essa proteção em função dos riscos e perigos internos ou externos possui um elevado ônus, posto que, muitas vezes, está embutida a anuência dos cidadãos à atuação extralegal do Estado e seus mecanismos diante de outras populações potencial ou realmente consideradas perigosas.

Controle das mentes

Finalmente, temos um tipo de dispositivo que não incide principalmente no corpo ou enfaticamente na vida entendida biologicamente, mas opera ao nível do controle das mentes, suas aspirações e desejos. Em sociedades mais desenvolvidas entre as quais o declínio do trabalho material é acompanhado da ascendência do trabalho imaterial, a planta industrial é sucedida da ampliação das organizações transnacionais, muitas delas prevalentemente virtuais, como a Google; sociedades estas nas quais a crise do Estado regulador é acompanhada da predominância crescente da influência midiática da propaganda e da publicidade, cada vez mais as mentes estão em conexão entre si. Daí ser fundamental a criação de sonhos e desejos, dominar e controlar a arte do possível, delimitar as situações nas quais pensamos atuar livremente e assim por diante.

Importante é salientar que esses três dispositivos atuam conjuntamente, ainda que seja possível mostrar que no recrudescimento da industrialização houve atuação sobressalente da disciplina; na formação e consolidação dos Estados nacionais a acentuada operacionalidade do dispositivo da segurança; e nas sociedades pós-industriais e de serviços, marcadas pela decisiva influência da realidade virtual engendrada pela automação dos processos industriais e dos imperativos midiáticos sobre a política e as ideologias, a predominância dos dispositivos de controle.

IHU On-Line - De que se trata o “governo e a direção de consciência” em Foucault?

César Candiotto - Em artigo publicado na Revista de filosofia Natureza humana, tentei mostrar que o conceito de governamentalidade em Foucault se presta a diferentes domínios de análise. Nesse caso, antes que procurar definir o que é a governamentalidade, seria preferível mostrar como ela opera. Evidentemente que sua abrangência é tributária da fonte privilegiada utilizada por Foucault, que é o pensamento ético e político grego e romano.

Se na modernidade, governar se tornou sinônimo de gestão política e administrativa, entre os gregos, tal exercício designava diferentes domínios, tais como o governo da cidade, o governo do lar, o governo pedagógico e o governo de si mesmo. Contudo, na sua operacionalidade, estas artes de governar eram isomórficas. Quer dizer, ainda que os conteúdos dos governos político e pedagógico tivessem uma natureza diferente dos governos do lar e de si mesmo, os primeiros sendo de ordem pública e os últimos do domínio privado e individual respectivamente, na sua forma eles estavam relacionados entre si.  Segue-se que o competente governo da pólis, bem como a correta educação dos jovens que se preparavam para ser cidadãos pela paideia, supunha também a adequada governança do oikos (da mulher, dos filhos e escravos) e a moderação no governo autocrático.

Nesse primeiro momento, talvez ainda não seja conveniente falar de direção de consciência. Mas já desponta a ideia de que o adequado governo de si mesmo em vista do governo político tem como condição ser dirigido por um mestre, no caso o pedagogo.

Direção de consciências

Um segundo momento da direção de consciência pode ser situado no helenismo e no pensamento imperial. Ali a direção deixa de ser realizada pelos pedagogos e passa a ser exercida por conselheiros privados; não mais está limitada exclusivamente à juventude para se tornar uma prática ascética a ser preservada em qualquer etapa da vida; seu objetivo não se restringe à preparação para o governo político, doravante sendo relacionado à busca de um permanente cuidado ético de si em termos de autodomínio e de senhorio diante das vicissitudes da existência. Trata-se de se preparar para acontecimentos que, muitas vezes, independem do indivíduo, mas que, naquilo que depende de seu empenho, ele pode exercer uma maestria sobre os mesmos, como educar-se para enfrentar com moderação a iminência de uma doença, a perda repentina da fortuna.

Um terceiro momento da direção de consciência é identificado no monaquismo cristão a partir do século IV d.C. Agora a direção é praticada por um mestre espiritual; ela também deverá ser um exercício recorrente durante toda a existência ao modo de uma ascese; mas essa ascese deixa de buscar o objetivo ético do cuidado de si pelas técnicas de domínio sobre si mesmo, para voltar-se ao escopo da salvação da alma mediante técnicas relacionadas à obediência e à renúncia de si. No governo pastoral cristão, apresentado como o primeiro capítulo da genealogia da governamentalidade, Foucault observa esse cuidado religioso que se estende à totalidade dos fiéis de um conjunto ou comunidade, mas que ao mesmo tempo não se descuida de cada fiel mediante a confissão e a direção de consciência.

Potencial transformador limitado

Algo análogo ocorre na governamentalidade moderna e contemporânea, quando é exercido um poder ao mesmo tempo totalizante e individualizante, no qual a regulação da vida tomada em seu conjunto é indissociável da previsibilidade e controle dos anseios, desejos e sonhos de cada indivíduo. Hoje se procura dirigir a consciência para limitar seu potencial transformador, de modo que os indivíduos pensem, sintam e decidam a partir de escolhas que outros já fizeram por eles. Isso não significa, por outro lado, que eles tenham que se deixar governar dessa maneira e por estes agentes. A perspectiva do governo sempre supõe indivíduos que agem livremente e, portanto, sejam capazes de criar linhas de fuga às diversas tentativas de individualização e totalização por parte das mais variadas tentativas de condução da consciência.

IHU On-Line - Por outro lado, qual é o sentido em falarmos sobre um “(des)governo biopolítico da vida humana”, como o XI Simpósio do IHU abordará, em setembro?

César Candiotto - O título do Simpósio é muito sugestivo porque parte do pressuposto foucaultiano de que as relações de governo (nesse caso, biopolíticas) estão situadas sempre no mesmo plano de imanência das resistências que lhes podemos opor. Não há um fora das resistências em contraposição às relações de poder. Significa que diante das diversas tentativas de governo político da vida humana nas sociedades ocidentais modernas e contemporâneas, sempre tem sido possível empreender resistências ao modo de um não deixar-se governar desse modo, por estas instituições e assim por diante. Esse desgoverno da vida implica deixar de viver a partir dos parâmetros que as biopolíticas nos seus desdobramentos políticos, médicos, estatísticos, demográficos, publicitários e mercadológicos nos estimulam a seguir a fim de propor outras maneiras de viver, que não deixam de ser, mesmo assim, relações de governo. Mas nesse caso é o governo de si mesmo que se impõe diante do governo dos outros. Se no governo biopolítico a vida natural passou a fazer parte do campo de investimento político, de modo que se criou um espaço de indistinção e de indiscernibilidade entre vida qualificada (Bíos) e vida desqualificada (Zoé), o desgoverno da vida humana consiste, nesse caso, em se contrapor ao investimento político da vida natural a partir de uma revalorização da vida qualificada. Creio que o próprio Foucault entendeu a biopolítica a partir desse paradoxo que implica, de um lado, o investimento político sobre a vida natural; e, por outro, a possibilidade da proposição de novas maneiras de viver diante daquele investimento.

IHU On-Line - Quais são os principais aspectos que tornam Foucault um autor tão atual?

César Candiotto - Na verdade, há duas maneiras de examinar a investigação de Foucault: uma primeira é a partir da inatualidade de seu pensamento, no sentido de que desde há algum tempo ele pode ser incluído na ampla tradição filosófica ocidental, em virtude da detecção de uma problemática filosófica peculiar, que concerne às práticas de produção da verdade. Vale ressaltar que tal problemática ele a trata de modo singular mas sempre em diálogo com a tradição filosófica que remonta a autores como Platão , Descartes , Kant , Nietzsche , Heidegger . Como não temos condições de precisar seus meandros nesse espaço resta dizer que lhe interessam fundamentalmente os modos históricos de constituição do verdadeiro e do falso nas diferentes práticas científicas, práticas sociais e práticas de si mesmo. 

A segunda maneira de avaliar a investigação de Foucault diz respeito à sua atualidade, o que vai de encontro à pergunta proposta. Como outros expoentes de seu tempo, Foucault proporcionou a inflexão de conceitos como “biopolítica” e propôs neologismos, como o de “governamentalidade” a partir da análise de acontecimentos minúsculos, práticas singulares, discursos inglórios e vidas infames de diferentes domínios. Tais conceitos e neologismos ainda hoje são invocados como instrumentos de análise em diferentes áreas do saber: da filosofia ao direito, da psicologia à psiquiatria, da história à sociologia, da pedagogia à literatura.

Além disso, a atualidade de seu pensamento é tributária da maneira como ele entendia a própria tarefa da filosofia, nas poucas vezes em que tentou delimitá-la, no sentido de diagnóstico do presente, analítica da política, ascética de si mesmo. Fazer filosofia não consistia necessariamente na sistematização de doutrinas, na apologia de uma corrente de pensamento, ou na estreiteza das polêmicas que constantemente não excedem o terreno das opiniões inflexíveis. Antes, ela é da ordem da problematização: que problemas a política, as práticas institucionais e os saberes nos colocam atualmente? O que faz que determinados discursos entrem no jogo do verdadeiro e do falso e outros não?

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