Edição 323 | 29 Março 2010

Perfil - Waldecy Tenório

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Descobrir os laços que unem literatura e teologia é uma das obsessões do professor Waldecy Tenório, da PUC-SP. Parafraseando Clarice Lispector, ele afirma que a literatura é, toda ela, uma pergunta sobre as grandes questões existenciais do ser humano. E lembrando o crítico George Steiner , ele afirma ainda que toda obra literária, de alguma forma, é sempre teológica, no sentido em que a teologia também se preocupa com as grandes questões que nos afetam e desafiam. Esse é, segundo ele, o caso da poesia de João Cabral. Mas o professor se apressa em explicar que não se trata aqui de nenhuma teologia do poder, ou do terror, ou do medo. Na entrevista que você confere a seguir, concedida, pessoalmente, por ocasião da vinda de Tenório para o Evento Páscoa IHU 2010, a necessidade da ressurreição no cotidiano de nossas vidas foi outro tema discutido, também com base na literatura, a partir da aula que ele ministrou sobre “O claro enigma de Drummond: a vida besta e a festa no brejo” e também a partir da leitura teopoética que fez do filme “Central do Brasil”. Em sua vinda à Unisinos, Tenório ministrou, ainda, a aula magna do curso de Letras.

Origens - Por razões circunstanciais, nasci em Palmares, na zona da mata pernambucana. Mas me criei e despertei para a vida intelectual em Olinda. E, você sabe, temos lá uma canção que diz mais ou menos assim: “Olinda é para os olhos, não se apalpa, é só desejo, ninguém diz é lá que eu moro, diz apenas é lá que eu vejo”. Estudei as primeiras letras na escolinha de dona Alice, na rua do Sol. Depois estudei no Seminário de Olinda, famoso por suas raízes iluministas e por sua formação humanística. Por isso, vivendo há mais de 40 anos em São Paulo, toda vez que vou a Recife rever minha mãe e meus irmãos, cumpro obrigatoriamente o ritual quase religioso de subir e descer as ladeiras de Olinda. Para renovar as forças, tenho de respirar aquele ar, ouvir aqueles sinos e ver aquele mar.

Família - Sou casado há 43 anos com Marili. Temos quatro filhos e três netos. Marcos, Daniel, Raphael e Lucas. E depois Gabriel, Júlia e Luisa. Também eles são fonte de energia e motivação para a vida. E muito do que consegui fazer devo a Marili, sem dúvida.

Interesse pela Teologia - Se o pudor impedia Erasmo  de se dizer teólogo, imagine... Não, não sou teólogo, sou leitor de teologia, e sou basicamente professor de literatura. E foi a literatura que me aproximou da teologia. Como a literatura mergulha fundo na condição humana, e a teologia também, ao ler poetas e romancistas, voltei aos temas teológicos que fizeram parte de minha primeira formação. Voltei às Confissões de Santo Agostinho , voltei aos Padres da Igreja... Tive excelentes professores no Seminário. Um cônego Pedro Adrião, autor de Tradições Clássicas da Língua Portuguesa, está na arqueologia da aproximação que faço hoje entre ficção e teologia.

Formação Acadêmica - Minha formação acadêmica se deu na Universidade de São Paulo, onde fiz minha graduação em Letras Clássicas e depois o doutorado em Filosofia. Da graduação, passei direto para o Doutorado por insistência do professor Rui Coelho, então diretor da FFLCH, para quem meu projeto sobre João Cabral era um projeto de doutorado, e não de mestrado. Por essa mesma razão, me transferi de Letras para a Filosofia, porque o professor João Alexandre Barbosa, meu orientador natural, não tinha vaga para me receber naquele momento. Então fiz a minha tese sob a orientação do professor Franklin Leopoldo e Silva. Tive excelentes professores na USP e, certamente, devo muito a eles. A João Alexandre Barbosa devo, além de tudo, o prefácio que escreveu para o meu livro A Bailadora Andaluza: A Explosão do Sagrado na Poesia de João Cabral, publicado pela Ateliê Editorial com apoio da Fapesp. Na USP, fui pesquisador do Instituto de Estudos Avançados e, atualmente, sou líder de um grupo de pesquisa chamado Literatura e Sabedoria, com a participação de professores de outras Universidades, entre eles Maria Clara Bingemer e Eliana Yunes, da PUC-Rio. Faço parte de outros grupos de pesquisa em outras universidades, como UFSC e Unicamp, e considero importante para mim a participação que tenho tido nos diversos simpósios organizados pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Experiência jornalística - No capítulo de minha formação intelectual, devo incluir também minha experiência jornalística. Fui redator de “O Estado de S. Paulo” durante 13 anos.  Fui também colaborador de algumas revistas da Abril e editor do jornal “O São Paulo”, da arquidiocese de São Paulo, a convite do cardeal Arns  e de frei Romeu Dale. Na condição de jornalista, vivi alguns momentos importantes da história política recente do Brasil. No “Estadão”, trabalhei em vários editoriais e encerrei minha carreira com um dos editores do Suplemento Cultura. Como editor de “O São Paulo”, escrevia os editoriais de propósito, para que o censor os vetasse. De fato, ele fazia isso, e, então, eu ligava para “O Estadão” dizendo que a Censura vetara o editorial do jornal da arquidiocese. Aí o “Estadão” publicava o editorial que, graças ao censor, era lido no Brasil inteiro. Foi um longo aprendizado durante o qual tive a oportunidade de conviver com grandes intelectuais, inclusive da USP.

Transdisciplinaridade - Essa aproximação entre literatura e teologia deu um pouco de trabalho. Entre nós, os estudos de Antonio Manzatto  sobre Jorge Amado , e o meu sobre João Cabral estão entre os primeiros realizados no Brasil. Lembro de um certo estranhamento quando falei em literatura no Departamento de Teologia da PUC-SP, no início da década de 90. Os teólogos olhavam a literatura com desdém, os críticos literários olhavam a teologia com desconfiança, e os diálogos se resumiam a risinhos constrangidos de cada lado e pronto. Um dossiê da revista IHU On-Line , do Instituto Humanitas Unisinos, do qual participei junto com a jornalista Graziela Wolfart, não faz muito tempo, mostrou a mudança nesse panorama. E nisso teve um grande papel a atuação de Karl-Josef Kuschel  quando ironizou a arrogância de quem manipula o texto literário para finalidades religiosas e a arrogância oposta de quem faz que não vê a angústia religiosa pulsando no fundo do texto. Kuschel vai mais longe e, fazendo suas as palavras de um poeta alemão, diz que Deus inventou os artistas, poetas, pintores, músicos, cineastas para preservar o sagrado que os sacerdotes e os teólogos deixaram escapar de suas mãos. É como se a reflexão teológica se deslocasse do campo fechado da teologia para o campo aberto da arte. Finalmente, todos descobrimos São Tomás : a vida extrapola o conceito. Felizmente, todos estamos descobrindo o São Tomás de a vida extrapola o conceito.

Deus e as dobras do texto - Parece que Deus gosta mais de literatura do que de teologia. Veja o Ulisses de Joyce . É o grande romance da modernidade. Chegou-se a dizer que era um divisor de águas: antes e depois do Ulisses. E chegou-se a dizer também que o Ulisses é um romance teológico. Talvez porque lá se diga que Deus é um grito no meio da rua. O fato é que Deus aparece na literatura, de vez em quando dá as caras no cinema, ele gosta da arte. Mas é manhoso, arteiro, se esconde, se disfarça nas dobras do texto, e é assim há muito tempo. Os profetas sabiam disso. Isaías principalmente: Tu és um Deus que se esconde.

Guimarães Rosa e Dostoievski - Vamos dar só dois exemplos: Dostoievski  e Guimarães Rosa . Deus está ou não presente em seus romances?  Minas é mais perto do que a Rússia, podemos falar melhor de Rosa. A quem se dirige Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, nesse livro que parece o fragmento de uma grande confissão? Quem é o interlocutor cruel que ouve, ouve, ouve e não responde? É o diabo? E se não for? É preciso ler o romance examinando isso. Não quero dizer nada porque, segundo Wittgenstein , aquilo que o leitor pode descobrir é melhor deixar por conta do leitor. Vê como a literatura se aproxima da teologia?  Mas não é uma teologia do poder, é uma teologia que não sabe, que procura, que é sabedoria e, por isso mesmo, vá lá uma pitada de Walter Benjamin, é o índice da incompletude dos nossos saberes.

Humanidade coisificada - Essa aproximação entre literatura e teologia vem sendo chamada de teopoética. Acho que, na história recente, o primeiro a empregar essa palavra foi Harvey Cox  para designar a teologia imaginativa. Foi na esteira de Cox que eu usei a palavra no meu A Bailadora Andaluza, publicado em 1996. Mas coube a Kuschel desenvolver o conceito de maneira mais precisa, e é no sentido de Kuschel que a palavra vem ganhando terreno nos meios acadêmicos, tanto nos estudos teológicos quanto nos estudos literários. Seja como for, ao resgatar valores humanos, a teopoética é extremamente importante num momento em que a humanidade se coisifica, e o que chama a atenção no homem moderno é o olhar vazio de quem perdeu o caminho do ser.

Pesquisas atuais - No momento, preparo um artigo sobre João Cabral, uma espécie de post-scriptum de A Bailadora Andaluza, à maneira de Umberto Eco (não veja pretensão nisso). O livro, que está sendo coordenado pelo professor Luciano Santos, da UFBA, e também pelo professor Geraldo Mori , da Faculdade dos Jesuítas em Belo Horizonte, será publicado pela Loyola com prefácio de Kuschel. Fora isso, estou preparando textos para diversos encontros, entre os quais o da Alalite, em Buenos Aires, no mês de outubro. Vou coordenar um simpósio na Soter, em julho, junto com Maria Clara e Eliana Yunes, preparo também um livro reunindo artigos que tenho espalhados por aí e, sobretudo, estou lendo muito. Enfim, tenho trabalho para mais uns 50 anos.

Pequenos luxos - Gosto de caminhadas, do silêncio, de música. Alguns autores me perseguem e tenho de lê-los. Mas é com prazer que os leio: Santo Agostinho, Proust , Camus . Gosto demais do comissário Maigret, de Simenon, a ponto de tê-lo citado em um livro. Entre os brasileiros, Machado , Rosa, Manuel Bandeira , Drummond . Talvez fosse um luxo desejável ser astrônomo ou maestro da orquestra sinfônica... Mas, o luxo maior acho que seria aquele que se deu Paul Klee: o de ser inapreensível na imanência.

Grandes ateus - Gosto mais deles do que dos carolas. Tenho horror a carolas, em todas as variantes, inclusive os de partido político. Sou chegado ao cristianismo de Tolstói e gosto imensamente dos ateus. Da angústia dos ateus. Camus me comove. Devo ter algum parentesco com Juan Luis Segundo , esse teólogo que escreve para os ateus um livro admirável, A História Perdida e Recuperada de Jesus de Nazaré.

Desafios da Teologia - Essa pergunta é para os teólogos, cabe a eles dar a resposta. Quanto a mim, posso apenas expressar desejos. Que a teologia abandone seus dogmatismos e suas certezas. Ouça mais o coração do que a cabeça. Que ela seja aquilo que Horkheimer queria que ela fosse: a esperança de que o assassino não triunfe nunca sobre a vítima inocente.

O ser brasileiro - No passado, fomos “fortes”, depois, fomos “cordiais”, depois, “tristes”, depois, viramos “macunaímicos” e caímos na dialética da malandragem. Agora, estamos em outro estágio, o cinismo. Hélio Pellegrino  falou na sociopatia brasileira, essa doença social que se manifesta no sintoma generalizado da falta de vergonha. É uma gangrena, uma peste. É preciso muito cuidado para evitar o contágio.

IHU - O trabalho que o Instituto Humanitas Unisinos - IHU vem fazendo pode ser visto como um antídoto para a sociopatia de que falava Hélio Pellegrino. É uma das coisas mais importantes da universidade brasileira, incluindo as públicas e as comunitárias. O IHU acompanha os grandes desafios da modernidade, discute os problemas brasileiros e, enfim, presta um grande serviço à sociedade em geral. Posso dizer, com tranquilidade, que tenho orgulho de colaborar com o IHU.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição