Edição 323 | 29 Março 2010

Vingança, justiça e o gozo do Outro

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Márcia Junges

A psicanalista Noêmia Santos Crespo analisa a vingança sob a perspectiva psicanalítica, e conclui que ela não é redentora. Lei do “olho por olho, dente por dente” resulta em gozo maligno do Outro. O resultado é uma “economia do gozo tóxica”

Se analisarmos a vingança de um ponto de vista psicanalítico, podemos dizer que ela não é redentora, “se entendermos redenção como algo que circunscreve e limita o gozo”. A conclusão é da psicanalista Noêmia Santos Crespo, na entrevista concedida com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. “Pelo contrário, a vingança reafirma o gozo fora da Lei, e o propaga. Supõe um Outro consistente e gozador, e reforça a alienação do sujeito a esse Outro”. Ela explica que, quando se aplica a regra do olho por olho, dente por dente, “é o gozo maligno do Outro que o vingador se permite exercer, fazendo-se instrumento do mesmo. Isso promove uma economia de gozo tóxica, mortífera, alienante. Só uma desconstrução desse Outro imaginário, suposto consistente, gozador, sem perda, pode favorecer uma liberação do sujeito. A vingança vai no sentido oposto”. A psicóloga diz que não “adianta tentar erradicar o Mal – isso já seria, paradoxalmente, um Mal. É preciso obter algum tipo de equilíbrio, de dialética tolerável, entre essas forças”. Ela acredita que perdoar seja possível e necessário, mas difícil. O perdão só se concretiza “quando se consegue subjetivar a falta do Outro, sua inconsistência, seu vazio”.

Noêmia dos Santos Crespo é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre pela Fundação Getúlio Vargas e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutora em Psicologia Clínica PUC-Rio com a tese Modernidade e declínio do pai: a resposta psicanalítica (Vitória: EDUFES, 2003). É docente na Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a conexão que existe entre justiça, vingança e o gozo do Outro?

Noêmia Crespo - Justiça pode ser entendida de diversas formas. Trata-se da observância das leis, escritas ou não escritas, da pólis; ou ainda, respeito às tradições de um grupo; submissão às regras sociais de reciprocidade que regem a economia das trocas, dom e contradom (ver, a esse respeito, a obra de Marcel Mauss).  Nas sociedades ditas modernas, espera-se que o Estado detenha o monopólio da violência e que distribua justiça. Isto acontece de forma imperfeita, especialmente, em nações marcadas por grandes disparidades de acesso à renda, riqueza, oportunidades, educação, como é o caso da nação brasileira. Essa própria disparidade, num contexto cultural dominado pelos ideais de igualdade modernos (pós-Revolução Francesa), tende a ser percebida como uma injustiça.

De um ponto de vista psicanalítico, pode-se entender Justiça como a incidência da Lei sobre o campo do Outro.  Este Outro é o lugar onde a necessidade de cada sujeito em formação vem a ser cifrada pela palavra, transformando-se em demanda. Trata-se de um lugar abstrato (código, linguagem), e, ao mesmo tempo, encarnado em outros significativos (mãe, pai, suplentes), que promovem a chamada “socialização primária” do infans. Mais tarde, esse Outro “se expande”. Passa a ter outros nomes e vestimentas: é a Vida, é Deus, é o Destino... Instância abstrata à qual cada um referencia sua demanda, implicitamente, quando a formula.

Subjetivação da Lei

É importante frisar que esta incidência da Lei sobre o campo do Outro pode não ser subjetivada para alguns – o que configura psicose. Mesmo quando a Lei é subjetivada como algo que barra o Outro, isso é sempre “não-todo”. Algo sempre escapa ao império da Lei, e o desejo do Outro é um enigma potencialmente insubmisso a qualquer norma. Para alguns, mesmo quando há alguma subjetivação da Lei, este enigma – aquilo que, do Outro, permanece desconhecido em termos de desejo - é “sentido” como gozo ou vontade de gozo do Outro, o que resulta insuportável.

Experiências de dano percebidas como humilhação, o popular “esculacho”, entram nesta rubrica. São vividas como foco de um gozo maligno do Outro extraído à custa do sujeito que as padece. A demanda de justiça responde a isso, buscando refrear esse gozo suposto ao Outro pela Lei. A demanda de vingança responde a isso buscando retaliação, que permanece no registro do gozo; reafirma o gozo e o propaga, ao invés de limitá-lo. “Isso goza”, quer encarnado no autor da primeira injúria, quer encarnado naquele que a revida. Em alguns casos, isso pode gerar um encadeamento de vinganças e contravinganças capaz de atravessar gerações inteiras, sem jamais encontrar qualquer pacificação.  Há um belo filme brasileiro que ilustra muito bem este processo. Chama-se Abril Despedaçado.  Recomendo-o.

IHU On-Line - Analisando do ponto de vista psicanalítico, a vingança é redentora? Por quê? 

Noêmia Crespo - De um ponto de vista psicanalítico, a vingança não é “redentora”, se entendemos redenção como algo que circunscreve e limita o gozo. Pelo contrário, a vingança reafirma o gozo fora da Lei, e o propaga. Supõe um Outro consistente e gozador, e reforça a alienação do sujeito a esse Outro.

IHU On-Line - Em que medida a vingança é um reflexo do mal que habita o ser humano?

Noêmia Crespo - Isso é bem evidente. Freud observou que existe satisfação no mal naquilo que viola o princípio do prazer. A pulsão de morte é ineliminável e faz confinar com sofrimento a busca por mais gozar – quer este sofrimento seja extraído do sujeito sobre seu próprio corpo, quer sobre o corpo de um outro.

Quando se pratica a regra do “olho por olho, dente por dente”, é o gozo maligno do Outro que o vingador se permite exercer, fazendo-se instrumento do mesmo. Isso promove uma economia de gozo tóxica, mortífera, alienante. Só uma desconstrução desse Outro imaginário, suposto consistente, gozador, sem perda, pode favorecer uma liberação do sujeito. A vingança vai no sentido oposto.

IHU On-Line - Quais seriam algumas das formas sutis do mal em nosso mundo, hoje?

Noêmia Crespo - No mundo de hoje, as formas do Mal estão, como sempre, mescladas com as formas do Bem. Eros e pulsão de morte são inelimináveis e inextrincáveis. Não adianta tentar erradicar o Mal – isso já seria, paradoxalmente, um Mal. É preciso obter algum tipo de equilíbrio, de dialética tolerável entre essas forças.

IHU On-Line – Comparativamente aos primeiros séculos da história, a vingança mudou de “cara”? Quais são as peculiaridades da vingança do homem do século XXI?

Noêmia Crespo - A vingança pode ter mudado de “cara” na atualidade; pode assumir, por exemplo, um dialeto “científico”. Assim, um governo pode atribuir o Mal a algum tipo de essência biológica, a um determinismo genético, racial ou outro, e tentar promover a segregação ou eliminação do Mal, segregando ou eliminando os supostos “maus” de “nascença”. Mas disso, o que resulta é o pior.

IHU On-Line - O advento do declínio do pai e do delírio de autonomia contemporâneos tem alguma relação com a proliferação da intolerância ao Outro e também do mal e da vingança? Por quê?

Noêmia Crespo - A vingança não é incompatível com o autoritarismo de tipo patriarcal. O pai primevo do mito freudiano, afinal, é uma figura do gozo vingativo. Sociedades organizadas sob a égide do pai podem ser amplamente reguladas pela Lei de Talião - “olho por olho, dente por dente” - que tem origem na civilização judaica. A vingança “científica” da atualidade, esta sim, parece prescindir de qualquer referência a um pai. Mas isso não parece torná-la menos devastadora.

IHU On-Line - Como compreender que habitam no mesmo ser humano o mal e laivos de bondade? A convivência social nos “contamina” ou temos uma irresistível tendência a fazer sofrer?

Noêmia Crespo - É preciso superar o maniqueísmo tradicional e entender que Eros e Pulsão de Morte supõem um ao outro na teoria freudiana. Freud sempre foi dualista, por perceber que a condição humana é conflitiva, inquieta e indomável por “natureza” (ou desnatureza). Longe de ser pessimista, ele apostava na impossibilidade de uma redução dos seres humanos à condição de formigas, em qualquer Admirável Mundo Novo. Isto, é claro, tem um preço, bastante alto, aliás: é o preço de nossa liberdade, irredutível, ainda que não ilimitada.

IHU On-Line - É realmente possível perdoar, ou a memória tem a dupla função de não nos fazer esquecer para evitar a repetição dos erros e, por outro lado, remoer algo que não podemos e não conseguimos superar?

Noêmia Crespo - Perdoar só é possível quando se consegue subjetivar a falta do Outro, sua inconsistência, seu vazio. É muito difícil, mas é necessário – e possível. Pode-se entender um tratamento analítico nesses termos: um trabalho voltado à tarefa de perdoar o Outro pela sua falta. Perdoá-lo pelos “traumatismos” que nossos maus encontros com essa falta do Outro nos deixaram. Enfim, perdoar o Outro pela sua inexistência. A “tirania da memória”, que teima em reeditar as sequelas subjetivas dos traumas, é um obstáculo poderoso a esse resultado. Mas, ao menos em alguns casos, não um obstáculo intransponível.

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