Edição 321 | 15 Março 2010

O Decálogo de Kieślowski e o debate sobre os Mandamentos

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Márcia Junges e Patricia Fachin

Marcus Mello analisa a exibição do Decálogo I e acentua que essa série divide a produção do cineasta polonês

Uma obra que marca uma guinada temática na filmografia do diretor polonês Krzysztof Kieślowski. Assim é o Decálogo, série de dez filmes que serão analisados dentro da programação da Páscoa IHU 2010. A exibição do Decálogo I acontece nesta terça-feira, 16 de março, a partir das 19h30min, na Sala Ignácio Ellacuría e Companheiros, no IHU. O debate subsequente será conduzido por Marcus Mello, da Usina do Gasômetro, de Porto Alegre. De acordo com Mello, “Kieślowski aborda cada um dos mandamentos de forma extremamente original, colocando em permanente discussão a verdade de cada um deles. Sua relação com os dogmas da Igreja Católica não é nem um pouco tranquila e, embora o sentido de sagrado em seus filmes seja uma constante, sua visão muito pessoal dos mandamentos parece revelar uma leitura agnóstica da chamada ‘Lei de Deus’”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor pode fazer uma breve apresentação de quem foi Krzysztof Kieślowski?

Marcus Mello - Kieślowski foi o principal nome do cinema polonês entre os anos 1980 e 1990, e, sem dúvida alguma, é um dos mais importantes e influentes diretores surgidos nos últimos 50 anos. Sua morte prematura não o impediu de deixar como legado uma obra grandiosa, que reflete sobre o mundo contemporâneo com impressionante lucidez.

IHU On-Line - Como o senhor caracteriza as produções cinematográficas de Kieślowski? Há diferença entre a fase polonesa e a francesa?

Marcus Mello - Kieślowski tem uma obra vasta, mas sua primeira fase é menos conhecida pelo público. Na Polônia, dedicou-se inicialmente ao cinema documental, realizando vários filmes que abordam questões sociais e políticas importantes, mas sem muita repercussão internacional. É a partir do reconhecimento da crítica estrangeira em relação à série Decálogo que seu nome passa a ser conhecido fora da Polônia. O Decálogo também marca uma guinada temática em sua filmografia. Seus filmes da fase francesa, que viriam a seguir (A Dupla Vida de Verônica e a Trilogia das Cores), iriam revelar um cineasta mais preocupado com questões metafísicas, para quem a morte torna-se um tema recorrente e crucial.

IHU On-Line - A série Decálogo é baseada nos Dez Mandamentos. Como o diretor aborda cada um deles e os relaciona com conflitos morais?

Marcus Mello - Kieślowski aborda cada um dos mandamentos de forma extremamente original, colocando em permanente discussão a verdade de cada um deles. Sua relação com os dogmas da Igreja Católica não é nem um pouco tranquila e, embora o sentido de sagrado em seus filmes seja uma constante, sua visão muito pessoal dos mandamentos parece revelar uma leitura agnóstica da chamada “Lei de Deus”.
 
IHU On-Line - Como os temas ética e estética se relacionam na obra do diretor polonês?

Marcus Mello - Ética e estética são elementos indissociáveis no cinema de Kieślowski. Ele foi um diretor que sempre foi movido por preocupações éticas, traduzidas numa obra de profundo sentido humanista.
 
IHU On-Line - Em que medida o Decálogo proporciona aos espectadores a oportunidade de refletir sobre os conflitos contemporâneos?

Marcus Mello - Cada episódio do Decálogo está ambientado num conjunto gigantesco de apartamentos em Varsóvia. Este cenário pode ser visto como um microcosmo no qual estão representados os principais conflitos do final do século XX, com suas vertiginosas transformações políticas, tecnológicas e comportamentais. Para muitos críticos, o Decálogo é a grande obra sobre o estertor do regime comunista no leste europeu, cuja derrocada (em 1989) ele irá anunciar claramente.

IHU On-Line - Como os pilares dos princípios cristãos são retratados na obra? De que maneira o diretor conseguiu torná-los universais?

Marcus Mello - Como eu já havia dito, a questão da religião em Kieślowski é nebulosa. Ele chegou a ser acusado de agnóstico por publicações católicas em diversos momentos de sua carreira, já que sua relação com Deus é sempre problemática. Tome-se como exemplo o primeiro episódio do Decálogo, que coloca em cena a morte de uma criança e a revolta de seu pai diante desse fato terrível. Ao invadir a igreja e destruir o altar no final do filme, esse pai desesperado desperta no espectador sentimentos ambíguos em relação à justiça de Deus, o que acaba tendo um efeito bastante perturbador.

IHU On-Line - A partir dos princípios dos Dez Mandamentos, como Kieślowski retrata os ideais da humanidade: ódio, amor, culpa, sob a perspectiva humanística?

Marcus Mello - O Decálogo, assim como os filmes da fase francesa de Kieślowski, são um libelo humanista de enorme densidade e profundidade filosófica. São filmes que revelam sim um sentido de sagrado, mas é como se o diretor identificasse esse sentido apenas no humano e em suas contradições e imperfeições. Sua obra parece dizer que, se Deus existe, esse Deus é cruel e ausente, cabendo apenas ao homem a responsabilidade de alcançar alguma forma de transcendência na vida. Transcendência que se dá, quase sempre, através da criação artística, como mostram as personagens de Irène Jacob em A Dupla Vida de Verônica e Juliette Binoche em A Liberdade é Azul.

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