Edição 321 | 15 Março 2010

A água como objeto de tutela e controle jurídico

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Graziela Wolfart

Em função da sua anunciada escassez, a água pode se tornar o mais importante recurso natural quando se pensa em qualidade ambiental das “futuras gerações”, lembra o professor Délton Winter de Carvalho

Professor de Direito Ambiental, Délton Winter de Carvalho considera como desafios para esta área “a capacidade e parâmetros jurídicos para tomar decisões antes que desastres aconteçam ou se agravem; e a compatibilização entre o desenvolvimento tecnológico e sua ressonância ambiental”. Na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, ele explica que isso “repercute no fato de que o saneamento é condição para qualquer acumulação humana sustentável. Sem saneamento, há uma proliferação de riscos ambientais biocumulativos. Trata-se de um autoenvenenamento à conta-gotas, silencioso e invisível aos sentidos humanos, mas desastroso após anos de ingerência ambiental”. Para ele, “há uma relação direta entre falta de saneamento básico, contaminação ambiental e saúde pública. É um círculo vicioso, escassez-contaminação-aumento da demanda e consumo de água”.

Délton Winter de Carvalho possui graduação, mestrado e doutorado em Direito pela Unisinos. Atualmente, é professor na mesma universidade, no Centro Universitário Feevale, e membro do corpo editorial da Revista Brasileira de Direito Ambiental. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito. Atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Ambiental, dano futuro, Teoria dos Sistemas. É autor de Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental. (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008)

Confira a entrevista.
 
IHU On-Line - Como a questão da água e da sua escassez tem aparecido na área do direito ambiental?

Délton Winter de Carvalho - A escassez dos recursos ambientais tem gerado um aumento da relevância do Direito Ambiental na regulação do que eu chamo "nova conflituosidade ambiental". Dentro desta nova conflituosidade ambiental, destaca-se a área dos recursos hídricos, em razão de sua essencialidade à vida humana e de uma crescente contaminação e escassez em nível global. Assim, esta "nova conflituosidade ambiental", no que toca aos recursos hídricos, decorre da crescente escassez da água em nível global, o que, por sua vez, tem sua origem em diversos fatores, tais como: (i) crescente demanda por água (com o aumento da população mundial); (ii) contaminação de recursos hídricos, gerando escassez da água potável no mundo; (iii) aquecimento global; (iv) produção de biocombustíveis cada vez mais intensa. Estes fatores têm gerado um salutar aumento da fiscalização dos órgãos ambientais sobre os empreendimentos que fazem uso de recursos hídricos, exigindo não apenas a formalização de autorizações (outorga para uso de recurso hídrico) como o devido cumprimento das condicionantes e restrições. Assim, a água passa a ser objeto de tutela e controle jurídico, seja preventivamente (outorga para seu uso, com condições e limites; fiscalização etc.), seja para punir (responsabilidades administrativa, civil ou mesmo criminal) pela inexistência de autorização ou pela ocorrência de contaminação de recursos hídricos.
 
IHU On-Line - Como o direito ambiental vê a água: como mercadoria (algo privado e pelo qual deve ser pago), ou como um bem público universal?

Délton Winter de Carvalho - Na verdade, a legislação brasileira refere-se à água como bem de domínio público (Lei 9433/97) e uso comum (art. 225 Constituição Federal), ou seja, é de todos. Por se tratar de bem finito e a fim de estimular o seu uso racional, a água é dotada de valor econômico, podendo ser cobrada a sua utilização. Desta maneira, ela ganha uma conotação privada e uma possibilidade de mercantilização que, sem os devidos cuidados, pode ser excludente e privatista.

IHU On-Line - Em que medida o conceito de dano ambiental futuro, defendido pelo senhor na obra com o mesmo nome, envolve a questão da água?  

Délton Winter de Carvalho - Diante de todos os diagnósticos e prognósticos globais para o futuro, os mais pessimistas (ver nesse sentido o Painel Intergovernamental sobre o aquecimento global – IPCC ) dizem respeito à água. Isto torna a água um dos, senão o mais importante, recurso natural quando se pensa em qualidade ambiental das “futuras gerações”. Considerando que o dano ambiental futuro consiste num sistema de responsabilização pela produção de riscos ilícitos (considerados juridicamente intoleráveis segundo a sua probabilidade e magnitude), qualquer possibilidade de comprometimento de recursos hídricos tem uma relevância determinante, diante da convicção científica da escassez futura da água. Desta forma, mesmo diante de uma probabilidade pequena, qualquer possibilidade de comprometimento futuro de recursos hídricos é algo dotado de grande magnitude sob o ponto de vista ambiental e de interesses das futuras gerações. Lembre-se que a Constituição Brasileira fez questão de posicionar expressamente as futuras gerações como destinatários do direito intergeracional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
 
IHU On-Line - Como responsabilizar a sociedade civil e o poder público pela escassez da água?

Délton Winter de Carvalho - Sempre que algum setor da sociedade civil e do poder público contribuir para um dano significativo aos recursos hídricos pode haver a sua responsabilização. Senão vejamos: nos casos de dano é mais fácil. O difícil é constituir uma relação probatória de causa e consequência cientificamente ancorada. No caso do risco ambiental, deve ser demonstrada a probabilidade de ocorrência de um dano futuro, bem como a magnitude deste, que deve ser suficientemente grave para justificar a imposição de medidas preventivas (adoção das melhores tecnologias disponíveis, interdição ou suspensão de atividades, melhoria nas metodologias adotadas, adoção de relatórios de controle etc.).

IHU On-Line - De que forma a questão do saneamento básico é contemplada pelo direito ambiental?

Délton Winter de Carvalho - O Direito ambiental regulamenta o saneamento básico ainda de forma muito superficial, pois há divergências sobre a competência para implantação dos sistemas de saneamento básico. A obrigatoriedade da implantação de sistemas eficazes esbarra nas alegações orçamentárias dos entes estatais. Neste sentido, observa-se uma falta de imposição judicial do que o texto legal já prevê, função esta que cabe à coletividade, sociedade civil organizada, organismos não governamentais, poder público e ao Ministério Público.

IHU On-Line - O senhor acredita que a água possa, futuramente, ser motivo de guerra entre nações? Como ficaria a questão da distribuição equitativa da água no mundo em termos jurídicos? 

Délton Winter de Carvalho - Acredito que a água já esteja sendo motivo de conflitos entre nações. O caso mais enfático é a disputa de água no Oriente Médio. Este fenômeno tende a aumentar nos próximos anos. Os pontos de conflito serão entre países e entre atividades que disputarão o acesso à água (agricultura, indústria, lazer, consumo humano). Provavelmente a água ocupará um espaço de conflito como vemos hoje disputas bélicas pelo petróleo. O fundamento jurídico para a distribuição equitativa da água é bastante simples, pois sendo um bem de uso comum da humanidade, esta deve ser acessível a todos, bem como deve haver um fortalecimento do múltiplo uso desta, sem que seja permitida a exclusão de quaisquer grupo, país ou atividade.

IHU On-Line - Quais os maiores desafios para a área do direito ambiental hoje, considerando que vivemos, como o senhor mesmo define, a era do risco? Como isso se relaciona com a questão da água e do saneamento?

Délton Winter de Carvalho - A meu ver, os maiores desafios impostos pela sociedade contemporânea ao Direito Ambiental dizem respeito: (i) à capacidade e parâmetros jurídicos para tomar decisões antes que desastres aconteçam ou se agravem; e (ii) à compatibilização entre o desenvolvimento tecnológico e sua ressonância ambiental. Isto repercute no fato de que o saneamento é condição para qualquer acumulação humana sustentável. Sem saneamento, há uma proliferação de riscos ambientais biocumulativos. Trata-se de um autoenvenenamento à conta-gotas, silencioso e invisível aos sentidos humanos, mas desastroso após anos de ingerência ambiental. Há uma relação direta entre falta de saneamento básico, contaminação ambiental e saúde pública. É um círculo vicioso, escassez-contaminação-aumento da demanda e consumo de água.

IHU On-Line - Como a preocupação com a água e com o saneamento aparece nos cursos de direito ambiental promovidos pelas universidades brasileiras? Qual a demanda que prevalece na academia em relação a este tema?

Délton Winter de Carvalho - O debate jurídico acerca da gestão dos recursos hídricos é mais de análise da legislação e ponderação teórica. Na falta de fiscalização e de imposição das metas legislativas, tem-se um abismo entre o que texto legal prevê e a ação pública e privada da água. Neste contexto, as universidades devem desenvolver um papel central de pesquisa e transformação, fornecendo dados e fomentando a adoção de estratégias para a gestão dos recursos hídricos. Um exemplo do que quero dizer é o Projeto Monalisa que, realizado por professores da Unisinos, muito antes da chamada “catástrofe do Rio dos Sinos” diagnosticou cientificamente a gravidade da situação, posteriormente confirmada pela falta de ação preventiva.

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