Edição 320 | 21 Dezembro 2009

Uma Igreja guiada por um “iluminista” em defesa da grande Tradição

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Moisés Sbardelotto | Tradução Moisés Sbardelotto

Se vivemos em uma época de triunfo da ciência mas de empobrecimento da razão, Bento XVI mostra ser “o verdadeiro iluminista” dos nossos tempos, como o grande defensor da livre inteligência, afirma Sandro Magister

Em um momento histórico incerto, instável, “líquido” – em suma, de crise –, os católicos são guiados por alguém que vê longe e percebe que hoje “a vida humana está em perigo mais do que esteve no passado”, afirma o teólogo, filósofo, historiador e jornalista italiano Sandro Magister. Segundo ele, com uma defesa intransigente da “grande Tradição”, Bento XVI “realiza uma obra de verdadeira 'ecologia'”, salvando o homem e o planeta do “risco da perdição”.

Magister, nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, defende a centralidade europeia da Igreja (“porque é na área em torno ao Mar Mediterrâneo que a Tradição da Igreja afunda as suas raízes”) e afirma que o método papal “é de grande paciência” e “mais educativo do que prescritivo”. Para ele, as polêmicas com os anglicanos e os lefebvrianos desencadeadas neste ano, na realidade, “fazem parte de um projeto mais estratégico: o de reforçar a unidade da Igreja sobre a base da grande Tradição”.

Teólogo, filósofo e historiador pela Faculdade Teológica de Milão e pela Università Cattolica del Sacro Cuore, na Itália, Sandro Magister é também especialista em informação religiosa, particularmente sobre a Igreja Católica e o Vaticano. Nascido em 1943, atualmente, atua como colunista da revista L'Espresso, na qual escreve desde 1974.

É autor de La politica vaticana e l’Italia 1943-1978 e Chiesa extraparlamentare. Il trionfo del pulpito nell’età postdemocristiana. Também editou a publicação do livro Omelie. L'anno liturgico narrato da Joseph Ratzinger, papa (Ed. Libri Scheiwiller, 2008), com uma análise a partir das homilias do Papa Bento XVI. Morador de Roma, é casado e tem duas filhas.

Também publica textos e análises da Igreja Católica contemporânea em seu sítio Chiesa (http://chiesa.espresso.repubblica.it/) e em seu blog Settimo Cielo (http://magister.blogautore.espresso.repubblica.it/).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua opinião, quais são as principais ambiguidades da Igreja de hoje e do pontificado de Bento XVI em relação à sociedade contemporânea?

Sandro Magister – O Papa Bento pede à cultura de hoje para “ampliar os espaços da razão”. O pedido pode parecer inútil e antiquado, porque nunca como hoje a razão científica estendeu o seu raio de conhecimentos. Ao mesmo tempo, porém, esse enorme acúmulo de saberes parece fechado sobre si mesmo, debruça-se apenas sobre coisas visíveis e rejeita pensar nas coisas invisíveis. O próprio intelecto humano e a vontade se reduziram a partículas da natureza. E com isso desaparece também a liberdade do homem, abandonado ao cego destino do acaso.

Em uma época de triunfo da ciência mas de empobrecimento da razão, o Papa Bento se apresenta portanto como defensor da racionalidade “aberta”. É o verdadeiro “iluminista” dos nossos tempos, é o grande defensor da livre inteligência. É aquele que quer manter aberto para o homem o caminho rumo a horizontes infinitos, em definitivo, a Deus. Pede que os homens de hoje, também aqueles que estão distantes da fé, ousem a grande aposta: viver “como se Deus existisse”. È uma aposta com a qual não se perde nada, mas se pode vencer tudo.

IHU On-Line – Vimos ao longo deste ano diversos debates acerca da relação do Vaticano com a bioética e as questões de vida e morte (Terry Schiavo e Eluana Englaro) e questões culturais (como os crucifixos na Itália e na Espanha). O senhor considera o Vaticano como conservador nesses debates ou ele está apenas tentando manter a normatização de uma instituição histórica? Seria essa uma espécie de luta pela identidade católica em uma sociedade cultural e religiosamente plural?

Sandro Magister – Sobre todas essas questões, a acusação que se faz a Bento XVI e à Igreja Católica é de serem atrasados com relação aos tempos, fechados com relação ao novo, armados só de condenações. Na realidade, o Papa e a Igreja veem longe. Compreenderam que a vida humana está hoje em perigo mais do que esteve no passado. As tecnociências chegaram de fato a poder modelar o homem ao seu prazer, não só a servi-lo. E atualmente afirma-se um modelo de sociedade que tende a cortar suas próprias raízes. Defendendo o homem desde o seu primeiro instante “natural” de vida até o último e as sociedades com toda a sua riqueza de história, de cultura, de arte, de fé, a Igreja realiza uma obra de verdadeira “ecologia”, salva o homem e o planeta do risco da perdição.

IHU On-Line – A Igreja de Roma está aferrada a um ideal de cristianismo? Como o Vaticano dialoga com a questão da secularização?

Sandro Magister – O ideal de cristianismo ao qual o Papa Bento olha é simplesmente o que a Igreja recebeu de Cristo. Nesse sentido, ele é o Papa da grande Tradição. É verdade, a secularização retirou da Igreja privilégios e proteções mundanas que, em outra época, haviam se sobreposto a ela e, nesse sentido, a purificou. Mas nem por isso a Igreja deve desaparecer do espaço público e reduzir-se a uma experiência interior e privada, como tantos desejariam. Ao defender a presença e a ação pública da Igreja, o Papa Bento é intransigente, em plena coerência com o seu grande antecessor João Paulo II. Se cedesse às pressões secularizantes e aos teóricos, também católicos, do cristianismo invisível, o Papa Bento sabe que trairia justamente a grande Tradição – que tem o dever de proteger – e trairia, em definitivo, o mandato recebido de Cristo de pregar o Evangelho a todas as nações.

IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre a encíclica “Caritas in veritate”? Quais novas perspectivas ela apresenta para o futuro da Igreja?

Sandro Magister – A “Caritas in veritate” recebeu críticas muito favoráveis por parte de economistas e homens de governo de todo o mundo. O seu núcleo está nas próprias palavras que a intitulam: toda ação mundana, política, econômica deve ser realizada em um horizonte de verdade e não baseada apenas em cálculos utilitaristas. Que os poderes desse mundo se adequem a esse apelo é difícil. Mas o caminho está demarcado, e a Igreja se apresenta como precursora.

IHU On-Line – Como o senhor analisa as “grandes manchetes” da Igreja neste ano, como a questão lefebvriana, a visitação apostólica às religiosas dos EUA, as negociações com os anglicanos, o escândalo na Irlanda e a questão dos legionários etc.? Em que direção a Igreja está indo?

Sandro Magister – As “notícias” citadas são de dois tipos. A visita apostólica às religiosas nos EUA, a outra visita apostólica aos Legionários de Cristo e o chamado à ordem dirigido à Igreja na Irlanda por causa dos escândalos dos abusos sexuais se referem àquela obra de disciplinamento e de limpeza dentro da Igreja que está no coração do Papa Bento. Pelo contrário, a abertura de diálogo com os lefebvrianos e a admissão na Igreja Católica dos anglicanos que pedem para nela entrar fazem parte de um projeto mais estratégico: o de reforçar a unidade da Igreja sobre a base da grande Tradição. A esse mesmo projeto pertencem as decisões de liberar a missa no rito antigo e o diálogo sempre mais intenso com as Igrejas ortodoxas.Com todas essas decisões, o Papa Bento faz com que esse tipo de ecumenismo progrida muito, o único que registrou avanços nestes anos. Infelizmente, porém, a unidade desses gestos do Papa não é bem visível, também por causa do modo confuso e desordenado com o qual a Cúria Vaticana os colocou em ação: uma confusão que se refletiu também na mídia.

IHU On-Line – Em uma perspectiva geral, Roma está realmente aberta aos problemas mundiais ou ainda tem uma mentalidade europeia com relação ao mundo?

Sandro Magister – Não há dúvida de que a Igreja de Roma tem uma visão e uma presença planetária, como o pontificado de João Paulo II mostrou em grande escala. E o baricentro numérico do catolicismo mundial seguramente está sempre mais na África e na América Latina. Mas isso não nega que as lideranças da Igreja continuem tendo a sua matriz na Europa. E não pode não ser assim, porque é na Europa, ou melhor, na área em torno ao Mar Mediterrâneo, que a Tradição da Igreja afunda as suas raízes. Os Padres da Igreja são todos dali, assim como os grandes autores medievais. A “essa” Europa a Igreja está indissoluvelmente ligada e dela pode aprender também as linhas mestras para uma evangelização levada até os confins do mundo e “inculturada” nos novos povos, exatamente como o cristianismo soube fazer magnificamente desde a sua primeira expansão.

IHU On-Line – A Igreja parece estar teológica e liturgicamente perdida na cultura e na sociedade de hoje. Em sua opinião, como Bento XVI responde a essas dúvidas? Qual é o seu “paradigma”?

Sandro Magister – No campo litúrgico, atribui-se ao Papa Bento XVI a vontade de uma “reforma da reforma”. Isso tem um fundamento. Mas o método que o Papa adota é de grande paciência. É mais educativo do que prescritivo. Ao liberar a missa de rito antigo, o Papa não tocou em nada da missa de rito novo. Porém, fez entender que é preciso tomar o melhor dos dois ritos, exatamente como ele faz quando celebra, seguindo o novo missal. As suas celebrações são um modelo vivo da “reforma” por ele desejada. Quanto à teologia e à questão chave da cristologia, que o Papa vê seriamente em perigo, também aqui o seu agir é de tipo exemplar. A quem separa o Jesus da história do Cristo da fé, o Papa Bento responde principalmente com a sua pregação, com as suas homilias e com o seu livro “Jesus de Nazaré”, cujo segundo volume ele está escrevendo. Se depois alguém quiser o seu “paradigma”, o encontrará exposto por exemplo na homilia que o Papa Bento dirigiu aos teólogos da Comissão Teológica Internacional, no último dia 1º de dezembro .

IHU On-Line – A Igreja Católica ainda tem alguns problemas com relação às mulheres e aos homossexuais. Como o Vaticano pode lidar melhor com o diferente? Como responder a essas pessoas, compreendendo suas necessidades especiais dentro da Igreja?

Sandro Magister – As duas questões controversas, lendo a mídia, são substancialmente o acesso às ordens sagradas para a mulher e o casamento para os homossexuais. Nem uma coisa nem outra parecem minimamente pensáveis para a Igreja Católica, nem com o atual Papa, nem – pode-se apostar – com os futuros.

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