Edição 318 | 07 Dezembro 2009

“Os Sertões é uma obra matricial para pensarmos a cultura brasileira”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart e Greyce Vargas

“De acordo com alguns intérpretes, Euclides da Cunha talvez tenha escrito Os Sertões de trás para frente”, conta o historiador Marçal Paredes

Doutor em História, Marçal de Menezes Paredes nos concedeu a entrevista a seguir sobre Euclides da Cunha, dando continuidade ao debate feito na revista IHU On-Line da semana passada. “O paradoxo de Euclides da Cunha reside justamente naquilo que ele consegue manifestar – através da utilização dos oximoros – apesar do que os pressupostos da ciência do século XIX permitiam ver. Ou seja, Euclides trabalha com a ambigüidade entre os conceitos do “sujeito” (da ciência, do ponto de vista abstrato) e as características de seu ‘objeto’”, escreveu ele na entrevista que nos concedeu por e-mail.

Marçal de Menezes Paredes é graduado em Ciências Sociais pela PUC-RS, onde também fez o mestrado em História. Na Universidade de Coimbra (Portugal), realizou o doutorado em História. Atualmente, é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Também é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS. É autor de Um Ser (tão) brasileiro: Tempo, História e Memória em Os Sertões de E. da Cunha (Curitiba: Juruá, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que caracteriza a visão de Euclides da Cunha da identidade brasileira?

Marçal de Menezes Paredes – A interpretação que Euclides da Cunha  faz da Identidade Brasileira tornou-se verdadeiramente um clássico e, como tal, sofreu (e sofre) múltiplas interpretações. Obviamente, a cada nova interpretação, novas características de sua obre são posta em evidência. Em minha opinião, em Os Sertões, Euclides funda uma compressão da Identidade brasileira a partir da oposição entre Litoral e Interior. Para ele, dois tipos de mestiços havia no país: o do litoral, que vivia sob uma “civilização de empréstimo” e, outro, do interior, que mesmo se afastando dos parâmetros tomados como certos pelo eurocentrismo científico do final do século XIX, apresentava o que mais faltava aos brasileiros do litoral: vínculo à terra. O sertanejo torna-se “antes de tudo, um forte”, como diz Euclides, por estar harmonizado com o sertão, por defendê-lo na luta e não abandoná-lo na seca. Deste modo, além da oposição entre litoral e interior, Euclides também manifesta os problemas de interpretar o Brasil profundo a partir das lentes etnocêntricas do cientificismo de sua época. Euclides percebeu este problema, que de alguma forma, ainda é o nosso problema: fundar uma hermenêutica histórica da cultura brasileira.

IHU On-Line – Quais os principais pontos da releitura que o senhor faz da obra Os Sertões, sob o viés da formação das identidades nacionais?

Marçal de Menezes Paredes – De acordo com alguns intérpretes, Euclides talvez tenha escrito os Sertões de trás para frente. Explico. Na releitura que faço da obra, percebo grande eco dos escritos do seu Diário (publicado pela Cia das Letras, sob organização de Walnice Nogueira Galvão) na terceira parte do livro, A Luta. Por isso, acredito que a primeira parte e segunda – A Terra e o Homem – são ensaios que buscavam compreender – através dos parâmetros do Determinismo Geográfico e do Determinismo Biológico – “o fato” da Guerra de Canudos. Nestas partes, o autor se utiliza de grande manancial de conhecimentos que vão da Geologia e da Botânica à Etnologia e Sociologia. Na terceira parte, por sua vez, ainda está vibrando o jornalista (Euclides foi para o sertão como enviado especial do Jornal A Província de S. Paulo), mas este vem mesclado com o historiador da batalha. Como se vê, concordo com Guilhermino César  quando ele diz que Os Sertões é um “livro-estuário”, pois para lá correram águas de diversos rios (as diversas disciplinas) e o autor soube com maestria aglutinar esteticamente a contribuição de tão variados conhecimentos. É neste ponto que entra sua riqueza estilística e literária.

IHU On-Line – Em que sentido esta obra de Euclides da Cunha pode ser entendida como uma resposta à questão sobre quem é o brasileiro?

Marçal de Menezes Paredes – Em sentido total. Pela lógica de Os Sertões, o sertão é o cerne do interior do Brasil e o interior do Brasil é a essência da nação. O responsável pela tradução do livro para o alemão, o professor Bertold Zilly,  explica isso muito bem. Quando Euclides fala do jagunço ele está falando, de alguma forma, de todos os habitantes do interior, dos lugares mais recônditos e inóspitos. Euclides traz ao de cima, à “consciência nacional” a importância de se pensar naquela “terra ignota” (aliás, título de um livro excelente de Luiz Costa Lima , Terra Ignota. A Construção de "Os Sertões". Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1997). Aliás, este o sumo do discurso que Silvio Romero  fez para recepcionar Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras: o ingresso nas letras e na consciência nacional da problemática do povo do interior brasileiro.

IHU On-Line – Onde reside o paradoxo de Euclides da Cunha em relação à questão da identidade nacional em Os Sertões?

Marçal de Menezes Paredes – O paradoxo de Euclides da Cunha reside justamente naquilo que ele consegue manifestar – através da utilização dos oximoros – apesar do que os pressupostos da ciência do século XIX permitiam ver. Ou seja, Euclides trabalha com a ambigüidade entre os conceitos do “sujeito” (da ciência, do ponto de vista abstrato) e as características de seu “objeto”. É fato que o brasileiro nunca se ajustou aos enquadramentos civilizacionais difundidos pela Europa. Mais evidente ainda é que sempre tivemos gerações de intelectuais e políticos tentando brincar de Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, “saneando”, “civilizando”, “branqueando” a nação. Em suma, transformando o país num pseudo-laboratório sociológico, tentando mudar a cara do povão para que ela ficasse mais “nos conformes”, nos preceitos ditos corretos. Preceito difundidos por uma Ciência que se dizia “universal” mas que na verdade era profundamente “local” (uma espécie de regionalismo europeu), e, assim sendo, era severamente etnocêntrica. Euclides chega no limite dessa discussão: ele afirma que o sertanejo é “desgracioso, desengonçado e torto” mas também diz que ele representa a “rocha viva da nossa nacionalidade”. Daí a riqueza do oximoro “Hercules-Quasímodo”, que expõe esta tensão e não a “resolve”. E por quê? Por que ela deve ser solucionada, como se de uma equação se tratasse. Deve ser refletida. Pensada. E isso a leitura de Os Sertões  propicia. Se pensarmos bem, quando Euclides fala que o sertanejo tem um misto de Herói Grego com o Corcunda de Notre-Dame ele está quase no ponto de reconhecer que não interessa esperar encontrar a Grécia Clássica (como faziam os parnasianos) quando se olha para o povo brasileiro; interessa, sim, reconhecer este povo, respeitá-lo e vinculá-lo a uma imagem positiva da nação. Embora este passo só será dado pelo elogio do Aleijadinho, feita pelo Modernismo (por Mário de Andrade, por exemplo) é importante deixar manifesto que Euclides da Cunha já aponta nesse sentido, embora de forma ainda tensional e ambígua.

IHU On-Line – Como aparecem na obra de Euclides da Cunha os conceitos de identidade, memória e tempo?

Marçal de Menezes Paredes – O conceito de identidade aparece de forma ambígua, como tentei demonstrar mencionando a importância dos oximoros, sobretudo o Hérculos-Quasímodo. Os conceitos de Memória e Tempo ficarão articulados e de alguma forma imbricam-se, embora sejam distintos. Como não podia deixar de ser, Euclides é um homem do seu tempo e é nesse sentido que se deve entender a famosa referência que ele  faz sobre a “força motriz da história”. Esta idéia remete à uma percepção universalista, racionalista, teleológica e ontologizada do tempo histórico. Remete à tradição iluminista, à crença da época que dizia que a História tinha um “H” maiúsculo, tinha um rumo único, etapas de desenvolvimento bem estabelecidas e universais (as mesmas para todas as sociedades). Diz respeito, portanto, àquelas compreensões que o próprio Euclides tinha, antes viajar ao sertão, sobre a Guerra de Canudos. Dizia ele que Canudos era um movimento análogo à Revolta da Vendéia, movimento monárquico contrário à República proclamada na França em 1879. Euclides faz um paralelo entre os anti-republicanos franceses – les chuan – e os jagunços liderados pelo Conselheiro.  Claro que esta aproximação é ilusória, mas ela revela a maneira como se pensava a República no Brasil e a própria História da Humanidade. Euclides acreditava que se a França teve que passar pela estágio de uma revolta anti-republicana também o Brasil teria de passar pela mesma experiência histórica. Esta idéia alimentou a construção ideológica do movimento de Canudos com sendo o principal obstáculo à evolução civilizacional brasileira, que na época era sinônimo de República. Passada a Guerra e depois de sua experiência no front de batalha, Euclides revê essa noção e faz, n’Os Sertões, um verdadeiro mea culpa republicano. O conceito de memória, por sua vez, se relaciona à produção da memória social deste conflito, onde Euclides tem papel importante, até porque seu livro se tornou uma referência obrigatória no assunto (embora não a única, nem naquele contexto).

IHU On-Line – Como Euclides da Cunha evidencia que as dualidades tradição/modernidade e objetividade/subjetividade não estão dissociadas na construção do discurso acerca da nacionalidade brasileira?

Marçal de Menezes Paredes – A relação entre tradição/modernidade e objetividade/subjetividade aparecem em dois planos: o individual e o coletivo. Ou seja, o do intelectual, do autor, e o do discurso sobre a Identidade Nacional. No primeiro, o individual, é fundamental perceber que Euclides muda seu posicionamento político em relação à Guerra de Canudos conforme ele vai se aproximando do local da Batalha, conforme ele vai conhecendo de perto o sertanejo e o sertão. Seu espanto pela força indômita do jagunço, pela beleza do sertão em época de chuvas, pela diferença radical entre aquelas paragens e o “centro” do país vai alterando gradualmente suas certezas tomadas de acordo com as teorias aprendidas desde os anos de formação militar. A subjetividade do homem Euclides, então, interfere profundamente na certeza do intelectual que era. Lá pelas tantas, no meio do caminho entre Salvador e Monte Santo, Euclides se ajoelha e reza junto com os sertanejos, num povoado simples, ao lado dos sertanejos, prenhes daquela religiosidade simples e sincrética que lhe é própria. E lembre-se que Euclides era um republicano fervoroso, militar positivista e, obviamente, anticlerical. Mas a proximidade, a influência da ambiência social que ele experimentou indo para profundo Brasil fazem-no relativizar isso. E é aí, na minha opinião que começa a aparecer a força dos oximoros que ele utiliza: Tróia de Taipa (Canudos), Hércules-Quasímodo (o sertanejo). No outro plano, o relativo à construção da identidade nacional, deve-se voltar ao oximoro novamente, mas para observar a tensão entre a Ciência e sua proclamada “objetividade”. Como já disse, Euclides desnuda os limites dessa “objetividade” universal, e, portanto, do próprio conteúdo emancipatório da ciência, Quando ele afirma que a “campanha de Canudos foi um crime. Denuncie-mo-lo”, como o faz na Nota Preliminar do livro, ele está apontando para um problema epistemológico sério que só depois da Segunda Guerra Mundial o Ocidente começou a encarar. Afinal, o genocídio de Canudos foi feita em nome do Progresso Nacional, contra “rebeldes monárquicos” inventados, onde os liderados pelo Conselheiro tiveram apenas o papel de bucha de canhão, pois foram “construídos” na mídia da época, como os inimigos do país. Euclides faz um mea culpa republicano em seu livro.

IHU On-Line – Como a proximidade com o sertão modificou a compreensão de Euclides da Cunha do sertanejo e da nacionalidade brasileira?

Marçal de Menezes Paredes – A proximidade foi o grande motivo da mudança de opinião de Euclides da Cunha. Depois de ver que aquele jagunço era forte, honrado, bom de briga e, sobretudo, um tipo brasileiro que estava muito adaptado à região, Euclides modifica sua opinião sobre ele. Passa de uma condenação sumária a um elogio (embora às vezes ambíguo). O sertão fez com que a certeza dele sofresse um processo de descentramento radical e é esse descentramento que cauciona a relativização daquela anterior condenação do jagunço. De inimigo público numero 1 ele passa a “rocha viva da nacionalidade”. Portanto, a viagem à Monte Santo foi importantíssima nesse processo.

IHU On-Line – Como entender a admiração de Euclides da Cunha pelo jagunço?

Marçal de Menezes Paredes – A admiração dele pelo jagunço se alimenta do fato de ele enxergar no sertanejo aquilo que mais faltava aos brasileiros urbanos, do centro do país: amor a terra, apego ao seu quinhão de origem, bravura na luta, harmonia social.

IHU On-Line – Pode explicar a forma como Euclides da Cunha focaliza a construção de discursos sobre a memória coletiva e qual é a sua relação com as identidades nacionais para recolocar a questão sobre quem é o brasileiro?

Marçal de Menezes Paredes – A questão as identidades nacionais é bastante complexa e mereceria maior espaço para um adequado desenvolvimento. Contudo, quero destacar uma coisa: mesmo sendo um verdadeiro obcecado pela forma literária – ele mexeu e alterou incessantemente no estilo de todas as reedições que o livro teve enquanto esteve vivo – Euclides teve muito respeito com os cadernos de notas dos jagunços, que os soldados do exército coletaram depois da queda de Canudos. Notas escritas com erros gramaticais e ortográficos grandes, mas Euclides os transcreve na íntegra, deixando manifesto com a grafia dos jagunços as profecias de Antonio Conselheiro. Acho que isso dá um bom exemplo da honestidade intelectual do autor de Os Sertões e, em ultima análise, mostra um respeito grande pela memória coletiva dos sertanejos. No limite isso lembra um pedaço do Manifesto Pau Brasil, publicado 26 anos depois por Oswald de Andrade : “A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”. Falar de memória coletiva e identidade nacional, da definição sobre quem é o brasileiro pressupõe que aceitemos o artesanato lingüístico-popular que temos nas ruas, em cada esquina do Brasil. Euclides coleta isso lá no sertão. Depois dele, Guimarães Rosa  reinventará isso e de maneira absolutamente brilhante.

IHU On-Line – Quais os principais dilemas que envolvem a formação histórica do Brasil e em que sentido Euclides da Cunha contribuiu para esse debate?

Marçal de Menezes Paredes – Em minha opinião, o principal dilema que temos, ainda hoje, para pensarmos a formação histórica da cultura brasileira diz respeito aos critérios a serem utilizados. Como pensar o Brasil como nossos critérios? Como olhar para nós mesmos despidos de preconceitos que fizeram parte da nossa própria formação? Este ainda é o nosso desafio e este também era o desafio de Euclides (e ele estava consciente disso, creio). Por isso, usa o oximoro, como tentei atrás explicar. Sua contribuição é, portanto, fundamental. Os Sertões é uma obra matricial para pensarmos a cultura brasileira porque ela inaugura a percepção desta tensão epistemológica e cultural ao mesmo tempo.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição