Edição 318 | 07 Dezembro 2009

O conhecimento é patrimônio comum da humanidade

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Graziela Wolfart

Toda a produção de novos bens culturais é baseada nas anteriores, de modo que existe uma espécie de contribuição coletiva da humanidade em cada novo bem cultural produzido, defende Pablo Ortellado

Para o professor da USP, Pablo Ortellado, o que estamos vendo no momento atual é o embate entre dois modelos: “o modelo tradicional e o modelo novo, digital, no qual os intermediários são menos importantes. E o direito autoral, que era o instrumento jurídico que organizava essa cadeia produtiva, está se tornando menos fundamental, para não falar obsoleto, que talvez seja uma palavra muito forte”. Em entrevista concedida, por telefone, para a IHU On-Line, ele reflete sobre o universo digital e suas consequências na produção intelectual e cultural, argumentando que “o direito autoral seguramente não vai desaparecer, mas terá que ser reformulado de maneira que se encaixe em uma realidade onde ele não é mais o elemento estruturante da indústria cultural”.

Pablo Ortellado possui graduação e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, onde atualmente é professor. Tem experiência na área de Políticas Públicas, com ênfase em Políticas para acesso a informação, atuando principalmente nos seguintes temas: propriedade intelectual, movimentos sociais, teoria política, comunicação.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como falar deste universo de conhecimento livre na Internet em um país onde o acesso às tecnologias está longe do ideal?

Pablo Ortellado – Em primeiro lugar, as políticas que temos de acesso às tecnologias, mesmo se pensarmos em uma perspectiva global, são muito mais um potencial do que uma possibilidade efetiva de acesso ao conhecimento. Então, deve acontecer simultaneamente um processo de ampliação do acesso à tecnologia por meio de políticas de promoção de acesso à Internet, banda larga, computadores; mas não devemos esperar a universalização do acesso para promover, por meio dessa tecnologia, um acesso universal aos conteúdos. Do contrário, teríamos um fato consumado de acesso à tecnologia num ambiente de alta restrição. Então, a missão é dupla: ampliar o acesso à tecnologia, simultaneamente fazendo uso do parcial acesso que se tem às tecnologias, explorar o seu limite por meio de licenças livres, práticas de digitalização de conteúdo, políticas de fomento ao compartilhamento e assim por diante.

IHU On-Line - Quais os entraves para a ampliação da banda larga no Brasil? Qual sua opinião sobre a proposta de torná-la regulada?

Pablo Ortellado – O principal entrave à ampliação da banda larga no país é o custo, e isso é um consenso. A banda larga no Brasil é cara. E isso tem dois fatores: o fator de natureza internacional, como o sistema de distribuição de custos na Internet se dá, e esse é um problema que está muito além da capacidade do país resolver, ou seja, o Brasil como ator internacional pode ajudar na mudança disso; e existe um problema interno no Brasil que é a forma como a regulação da telecomunicação e da Internet se dá no país. E, nesse sentido, o governo brasileiro tem bastantes meios de interceder de maneira a baratear o custo do acesso à banda larga. As medidas que estão aparecendo no debate vão desde oferecer este acesso como serviço público, que implicaria toda a camada mais básica de infraestrutura do acesso à banda larga ser assumida pelo Estado; como também a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) passar a ter um papel mais ativo na regulação do setor de Internet, de provimento de acesso à Internet.

IHU On-Line - Como entender o paradoxo das indústrias de copyright no universo das redes digitais?

Pablo Ortellado – O problema do direito autoral no universo digital é o seguinte: esse modelo que temos de direito autoral vigente se consolidou na sua forma atual por organizar a indústria cultural na sua capacidade de produção mecânica de bens culturais reprodutíveis. Ela foi criada basicamente para regular a distribuição de livros, de LPs, fitas, CDs. É para isso que existe, é assim que foi desenhada e ocupa o papel de organizadora de todo esse sistema. Então, ela concentra a propriedade no intermediário, que cumpre o papel cultural de selecionar o conteúdo. Temos vários artistas que buscam visibilidade, ele seleciona esses artistas, porque o meio de produção física é oneroso, produz esses artistas com a capacidade que tem de financiamento, e depois divulga esses artistas e distribui o conteúdo. Esse modelo está sendo completamente subvertido pelas novas tecnologias, porque o papel do intermediário não é mais necessário. Com a Internet, em particular, temos uma rede de distribuição que não é global, porque tem o problema do limitado acesso às tecnologias, como falamos há pouco, mas que é potencialmente universal. Num prazo muito pequeno – comparando com a história da indústria cultural - estaremos perto da universalização do acesso a essas tecnologias. Falo de um par de décadas, no máximo. Temos a capacidade com computadores nas casas das pessoas, com uma rede de distribuição como a Internet, temos socialização dos meios de produção, então todos têm meios para fazer seu livro, para compor, para editar e gravar sua música, e isso está distribuído nas casas. Tenho uma rede de promoção que é a Internet. Monto meu site, uso serviços na Internet como o myspace, para promover a música, ou sites de distribuição de conteúdo acadêmico ou literário. Tenho vários veículos que estão disponíveis e estão abertos a todos, nos quais eu posso promover e tornar público o conteúdo que produzi domesticamente. E esses mesmos sites que fazem as promoções, proporcionam o acesso por meio de download. Na medida em que os conteúdos estão sendo digitalizados, essa cadeia produtiva está sendo feita. E o que estamos vendo, nesse momento, é o embate entre dois modelos: o modelo tradicional e o modelo novo, digital, no qual os intermediários são menos importantes. E o direito autoral, que era o instrumento jurídico que organizava essa cadeia produtiva, está se tornando menos fundamental, para não falar obsoleto, que talvez seja uma palavra muito forte.       

IHU On-Line – Está na hora, então, de uma renovação na legislação?

Pablo Ortellado – O direito autoral, se continuar do jeito que está, ficará obsoleto nesse cenário. Por isso é preciso uma reforma da lei do direito autoral para ele se adequar a esse novo panorama da distribuição digital, porque aí ele cumpre uma nova função, muito menos importante daquela que cumpria. Por isso, é preciso que ele incorpore exceções e limitações bastante amplas, para que esses usos que estão sendo feitos da Internet passem a ser considerados legais, uma vez que já são situações de fato. É preciso que a lei reconheça isso por meio de exceções e limitações, e é preciso também, nessa lei, reequilibrar a relação entre intermediários, produtores e consumidores.

IHU On-Line - O momento atual, com a Internet, acaba dissolvendo a questão da autoria. Que problemas aparecem com essa ideia?

Pablo Ortellado – Esses novos modelos que estão aparecendo na Internet funcionam com pouco apoio no direito autoral. Não é sem nenhum apoio, é pouco. Os chamados novos modelos de negócio que estão se desenvolvendo no ambiente digital normalmente deslocam a fonte de remuneração dos artistas e produtores culturais para outras direções. O acesso aos bens deixa de ter a barreira do preço. Eu produzo meu bem cultural, uso dos meios digitais para promovê-lo e distribuí-lo, sem intermediação mercantil, muitas vezes, e a sustentabilidade da atividade cultural é normalmente deslocada para o serviço e, às vezes, é deslocada para a publicidade. Ao fazer esse processo, que não envolve basicamente direito autoral, desloco minha fonte de remuneração para os shows. Durante a atividade de performance, eu arrecado dividendos que sustentam a atividade artística e o acesso à música gravada passa a ser gratuito. Obviamente que o direito autoral continua aí. Quando tenho execução comercial em rádios, o direito autoral continua sendo relevante, se tenho o uso da música na publicidade, num filme, qualquer contexto comercial relevante, o direito autoral continua valendo. Mas para a relação entre o músico e o público, a mediação do direito autoral enquanto instrumento jurídico, que limitaria o acesso em troca de uma remuneração, desapareceu. Mas ele continua operando nessas outras esferas no caso da música. No caso do livro, essa situação está muito menos avançada, porque o acesso digital aos conteúdos literários avançou muito menos, em parte porque é muito difícil ainda ler na tela do computador um livro grande. Agora, com a expansão dos dispositivos portáteis, tipo Kindle , ou o dispositivo da Sony, que são os dois grandes dispositivos de leitura de textos digitais que entraram no mercado e começaram a se expandir neste ano, vemos uma mudança parecida no âmbito da indústria editorial, porque os conteúdos serão digitalizados, e o papel das editoras na intermediação também será questionado, com a diferença de que a produção de textos literários requer muito menos investimento. Eu não preciso de um estúdio, preciso basicamente de um computador e um processador de texto. Então, penso que o direito autoral seguramente não vai desaparecer, mas terá que ser reformulado de maneira que se encaixe em uma realidade onde ele não é mais o elemento estruturante da indústria cultural.

IHU On-Line - Que cenário podemos vislumbrar a partir da retomada da noção de que a cultura é um bem comum e que a maior parte das criações têm como base a própria cultura?

Pablo Ortellado – É curioso porque essa mudança, esse movimento de acesso à informação e de reivindicação da cultura como bem comum, não apareceu enquanto pauta política própria. Ele veio como uma espécie de justificação ou a posteri de uma situação de fato. Quando as novas tecnologias permitiram que, por meio da digitalização dos conteúdos, nós tivéssemos uma universalização do acesso aos bens culturais, criou-se uma espécie de argumentação, reivindicando o acesso. E só a partir do momento em que foi possível falar em acesso universal aos bens culturais foi que se criou um movimento em defesa dessa bandeira. De maneira que essa situação que vivemos hoje precedeu a demanda. A demanda é um movimento para utilizar o potencial das novas tecnologias no seu limite máximo. E, a partir do momento em que foi possível pensar no acesso universal aos bens culturais, começaram a se desenvolver argumentos, que são essencialmente corretos. Por exemplo, a produção cultural é cíclica. Toda a produção de novos bens culturais é baseada nas anteriores, de modo que existe uma espécie de contribuição coletiva da humanidade em cada novo bem cultural produzido. Quanto menos empecilho existir nesse ciclo produção/consumo/produção, mais viva e dinâmica será a produção cultural. Hoje temos meios econômicos para aumentar a velocidade e potencializar ao máximo as voltas desse ciclo. Além disso, nos fundamentos da nossa sociedade, desde a época do iluminismo e da consolidação da ideia de direitos humanos, pressupõe-se que o conhecimento produzido pela humanidade é patrimônio comum. E agora temos a possibilidade prática desse ideal iluminista ser efetivamente realizado.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição