Edição 318 | 07 Dezembro 2009

As lutas pela liberdade ao conhecimento e pela liberdade ao capital

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Graziela Wolfart

Para o bem ou para o mal, esta sociedade está marcada pelos valores de uma moral utilitarista, de uma ideologia consumista e de uma ética hedonista. Em suma, pelo signo da gratificação instantânea, acredita o professor de Ciência da Computação na UnB, Pedro Rezende

“A crescente radicalização normativa do conceito de propriedade, mormente nos regimes jurídicos das patentes e do direito autoral, segue a lógica desse anseio utilitarista pela tutela dos bens simbólicos, que para mim é a característica principal da sociedade da informação. Muito mais do que o volume ou o fluxo de informações disponíveis: se essa informação em si fosse riqueza, material ou moral, viciados em internet seriam bilionários”. A opinião é do professor Pedro Rezende, na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line. Ao refletir sobre os impactos da Internet e das tecnologias digitais em nossa sociedade, o professor da UnB entende que “num momento de reacomodação das fronteiras de eficácia e de eficiência entre competição e cooperação (...) as oportunidades se multiplicam e podem frutificar com abundância, como mostra a evolução do software livre. Mas talvez só frutifiquem positivamente, no plano individual, enquanto não for crime produzir colaborativamente, com autonomia de interesses e por iniciativa própria. Pois o tal livre mercado, a pretexto de preservar essa possibilidade, parece determinado a empurrá-la à criminalidade, enquanto segue sua lógica material e concentradora”. Rezende ainda identifica que “foi com a bandeira do conhecimento livre que a educação formal ganhou e cumpriu, desde a Renascença, um papel importante na evolução da nossa civilização, que é o de alavancar o desenvolvimento científico e tecnológico”.

Pedro Antônio Dourado de Rezende é bacharel e mestre em Matemática pela Universidade de Brasília. No vale do silício, trabalhou com controle de qualidade do sistema operacional Macintosh na Apple Computer, com sistemas de consulta a bases de dados por voz digitalizada na DataDial, e com as primeiras aplicações de hipertexto, precursoras da web, desenvolvendo HyperCard stacks para Macintoshes. Seus interesses profissionais incluem o estudo de métodos formais para análise e projeto de protocolos criptográficos. Atualmente é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília - UnB, onde tem lecionado, desde 1990, teoria da computação, teoria dos grafos, linguagens formais, linguagens de programação, compiladores, organização de hardware e software, criptografia e segurança de dados, informática e sociedade, entre outras disciplinas, e exercido os cargos de coordenador do bacharelado em Ciência da Computação, do Laboratório de Informática, e do ensino básico de programação. É co-autor do livro Burla Eletrônica (Rio de Janeiro: Instituto Alberto Pasqualini, 2002), sobre vulnerabilidades do sistema eleitoral informatizado em uso no Brasil. Sua página pessoal na Internet é http://www.cic.unb.br/~pedro/

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais as principais transformações que a Internet tem provocado na sociedade? O que de mais significativo muda nas relações sociais?

Pedro Rezende - A Internet inaugura uma forma inédita de comunicação entre máquinas em rede, baseada em protocolos digitais descentralizados e abertos, estratificados e independentes entre si, o que possibilita inúmeras novas formas de comunicação entre pessoas e instituições conectadas, de natureza horizontal e de alcance global. Quando disseminadas, essas novas formas de comunicação provocam transições sociotécnicas, ou seja, transformações nas relações e nas interações que formam a sociedade, realimentando inclusive a própria evolução das tecnologias digitais, das TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação). A maneira como o dinheiro hoje circula, de forma virtual no atacado, é um exemplo disso. De mais significativo, as transições sociotécnicas alteram as relações de poder, projetando a natureza política, instrumental e estratégica das TIC. E a política se realiza, basicamente, através de processos normativos que buscam estabelecer e fazer valer costumes, normas e leis. Daí porque tanta discussão hoje sobre "regras para a Internet" e cibercrime. Com a Internet, as relações de poder vão sendo alteradas, principalmente, por deslocamentos nas fronteiras de eficácia ou de eficiência entre cooperação e competição. Alavancas de dominação se formam, como mostra Lawrence Lessig no seu livro Code is Law, pelo controle das configurações e das operações de uso das TIC, e pelo dirigismo em processos legislativos destinados a obrigar usos sob tais controles, ou a coibir usos que deles escapem.

IHU On-Line - Que rumos nossa sociedade está tomando a partir da concepção de que o conhecimento é livre, de que mudou a ideia de propriedade na era digital?

Pedro Rezende - Rumos só se revelam em perspectiva. Então, recuemos no tempo. A liberdade e o direito de conhecer sempre estiveram no centro da luta entre as duas naturezas humanas, animal e espiritual, desde nossas origens míticas. A concepção moderna do conhecimento como algo que deve ser livre, vem do Iluminismo, e foi resgatada da última aventura global pelo totalitarismo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 48. Todavia, como a História tende a mover-se pendularmente, vemos agora esse direito universalizado sendo novamente atropelado. Na transição sociotécnica atual, quem está tentando mudar a "ideia de propriedade" não são os defensores desse direito na esfera digital, pelo contrário. São os interesses corporativos e institucionais que querem anulá-lo, na sua luta por dominância, frente às alterações nas relações de poder provocadas pela disseminação e convergência das TIC. Fazer parecer o contrário, pintar os cavalos dessa batalha como se o conhecimento livre fosse inimigo da propriedade, como se a ideia de propriedade fosse natural e automaticamente extensível ao imaterial, como se a liberdade em meio digital violasse essa extensão, é base da sua estratégia. Esses interesses veem a evolução tecnológica como oportunidade para mais sinergia entre eles, para mais controle hegemônico capaz de alavancar seus poderes, como bem descreve o filósofo Paul Virilio.

Tais interesses veem a outra face dessa sinergia, aquela que a Internet propicia aos que buscam livremente o conhecimento, como ameaça a seus modelos de negócio e de gestão do poder. Pintam-na como ameaça contra toda a ordem social, e usam-na para camuflar a sua cobiça, apelando ao medo insuflado e à própria cobiça de cada um. Mas se, como prega sua ideologia, é o mercado que tem antes que ser livre, e é papel primordial do Estado o de proteger esta liberdade, então são os seus modelos negociais e políticos que deveriam evoluir, readaptando-se às novas formas e relações de poder. Porém, esses interesses parecem antes alinhar-se numa luta mortal pela sobrevida de seus modelos, coordenada por controladores financeiros. Eles preferem readaptar os pontos cegos da sua ideologia, ao invés dos seus modelos arcaicos, haja vista o que revela a crise econômica atual. Nessa luta, as principais táticas que empregam são a radicalização progressiva do conceito de propriedade, o controle estatal para impô-la seletivamente a ferro e fogo, a depreciação do conceito de bem público e a fusão dos negócios com o mando político. Então, penso que os rumos da
nossa sociedade serão definidos pelo desfecho desta luta.
 
IHU On-Line - Como o senhor caracteriza a sociedade do conhecimento, ou a sociedade da informação? Quais são os valores dessa sociedade?

Pedro Rezende - Recorro ao jurista Eben Moglen,  da Universidade de Columbia. Nesta sociedade, as atividades produtivas mais importantes não ocorrem mais em fábricas, nem mais por iniciativa individual, mas em comunidades conectadas por software. Daí a importância do software como infraestrutura fundamental para a economia pós-industrial. Essa importância não é pelo software em si ser um tipo de bem valioso, o que é verdade, nem é pelo fato do software intermediar a produção de atividades úteis, o que também é verdade. É pelo fato dele prover meios alternativos e eficientes de produção, transformação e transporte de bens de natureza simbólica, inclusive do próprio software. Desses bens simbólicos, os mais valiosos são os que intermediam fluxos de bens essenciais, principalmente bens materiais de demanda inelástica. Como as moedas internacionalmente aceitas. Bens simbólicos se distinguem de bens materiais por não lhes tocarem a escassez natural; em economês: por terem custo marginal irrisório, ou por serem não-rivais. No capitalismo tardio, concentradores financeiros controlam os meios de produção de bens essenciais. É lógico, portanto, que eles vejam como necessário, para a manutenção desse controle em sociedades informatizadas, estender o conceito jurídico de propriedade para poderem tutelar o usufruto de bens simbólicos. Nessa tutela, além das moedas, a do software também é estratégica. Pois software, como diz o professor Gustavo Torres, são próteses do pensamento. Ele molda a percepção humana na esfera virtual, onde o dinheiro e o conhecimento hoje mais circulam. Não é à toa que o fornecedor dominante de software trata seus clientes como inquilinos de suas próprias máquinas. A crescente radicalização normativa do conceito de propriedade, mormente nos regimes jurídicos das patentes e do direito autoral, segue a lógica desse anseio utilitarista pela tutela dos bens simbólicos, que para mim é a característica principal da sociedade da informação. Muito mais do que o volume ou o fluxo de informações disponíveis: se essa informação em si fosse riqueza, material ou moral, viciados em Internet seriam bilionários.

Hoje, essa radicalização permite explorar incertezas nos limites do cercamento jurídico em torno de ideias e expressões criativas, e miragens da proprietarização do conhecimento como fonte de riqueza coletiva inesgotável. Tal exploração atinge não só as trocas simbólicas, mas também os mercados de sementes, de remédios, de bens culturais. Transgênicos ou não, tradicionais ou não, coletivos ou não. O efeito prático disso é gerar escassez artificial de bens imateriais para neutralizar efeitos dissipativos que a hiperconectividade provoca em concentrações de renda. Mas, quando sua eficácia se esvair, talvez atropelada pela vindoura escassez de insumos materiais, tal radicalismo poderá servir a outros fins. Como outrora serviu ao nazi-fascismo, conforme explica a socióloga Walquiria Rego,  da Unicamp. Para o bem ou para o mal, esta sociedade está marcada pelos valores de uma moral utilitarista, de uma ideologia consumista e de uma ética hedonista. Em suma, pelo signo da gratificação instantânea.

IHU On-Line - Em que medida a área da educação acaba atingida pelo universo do conhecimento livre?

Pedro Rezende - Ela acaba atingida indiretamente, depois de crescer nele. Foi com a bandeira do conhecimento livre que a educação formal ganhou e cumpriu, desde a Renascença, um papel importante na evolução da nossa civilização, que é o de alavancar o desenvolvimento científico e tecnológico. Nesse papel, ela nos trouxe, dentre outros frutos, a revolução industrial e a revolução digital, que, por sua vez, acabou precipitando o fim da era industrial. Na era pós-industrial, o neoliberalismo passa a combater ferozmente essa bandeira, sob o verniz ético-moral do utilitarismo, face à consequente crise do capitalismo tardio. É a forma que essa ideologia encontra de seguir produzindo escassez artificial de bens imateriais, rumo à miragem do perpétuo crescimento econômico. Ela quer nos vender um sonho de loteria, o da produção intelectual como fábrica de dinheiro; e muitos caem nessa, dispostos a pagar pelo bilhete com a sua liberdade de acesso ao saber alheio útil acumulado. A História pode então seguir mais um movimento pendular, onde a educação volta a ser um instrumento de controle social, onde seu papel volta a ser o de adestrar as massas numa visão dogmática de mundo e num enrijecimento da divisão geopolítica do trabalho e da produção. Vemos o cerco deste combate na agenda política que busca forçar os Estados, começando pela periferia do capitalismo, a abrir mão desta sua missão, de guiar e prover o processo da educação formal. Nas democracias modernas, a educação formal é tida como função do Estado devido ao seu papel principal, que tem sido o de preservar e retransmitir valores e saberes que mantêm a coesão social. E essa agenda busca transformar a educação formal em mais um mercado selvagem, com o mínimo de regulação e de fronteiras, e com o máximo de conversão em dividendos políticos, na irrefreada fusão dos negócios privados com o poder público.

IHU On-Line - O que muda no mundo do trabalho, no conceito de trabalho a partir da internet e do conhecimento livre?

Pedro Rezende - Creio que a mudança mais notável, como já frisei antes, é a sinergia que a Internet propicia aos que buscam livremente o conhecimento. Num momento de reacomodação das fronteiras de eficácia e de eficiência entre competição e cooperação, como o que estamos vivendo, as oportunidades se multiplicam e podem frutificar com abundância, como mostra a evolução do software livre. Mas talvez só frutifiquem positivamente, no plano individual, enquanto não for crime produzir colaborativamente, com autonomia de interesses e por iniciativa própria. Pois o tal livre mercado, a pretexto de preservar essa possibilidade, parece determinado a empurrá-la à criminalidade, enquanto segue sua lógica material e concentradora.

IHU On-Line - Qual a pertinência de discutir a questão da propriedade intelectual e do direito autoral no mundo da Internet, onde o conhecimento se constrói coletivamente?

Pedro Rezende - Esta questão é interessante pelos possíveis desdobramentos. A luta que mencionei antes, que define os rumos da sociedade da informação, é uma luta por corações e mentes, essencialmente. Entre os que lutam pela liberdade ao conhecimento, e os que lutam pela liberdade ao capital. Nela, porém, muitos se confundem ou se perdem entre sentimento e razão. E, flagrados em distopias ou emaranhados em contradições, atiram a esmo. Pois, a questão abarca um feitiço juridiquês, figura de linguagem estranha, tanto oximoro quanto sinédoque. Essa figura em questão não é nem conceito, pois, o que define seria uma contradição performativa. É uma justaposição de dois conceitos antagônicos: pro¬priedade, que é outorga de privilégios in¬dividuais exclusivos para posse e usufruto e gozo; e intelecto, que desde o latim pré-cristão significa ação do entendimento. A propriedade restringe algo a um só, enquanto o intelecto para existir precisa compartilhar o algo. A Internet forma o último campo de tensionamento entre esses dois conceitos. Para uma disputa política esclarecida entre os interesses envolvidos, é preciso então separá-los. É preciso revisitar o direito autoral em sua origem, como armistício negociado que foi, antes do feitiço pegar.

Para que a Internet continue a prestar-se ao que veio, é preciso renegociar esse armistício com base nas novas fronteiras. É preciso separar o direito autoral desse ouro-de-tolo, dessa impertinente ensebação que empurra a agenda de radicalização normativa de quem descabe em sua cobiça. Pois, caso contrário, seremos enganados por uma miragem coletiva a qual profecias bíblicas possivelmente se referem como “operação do erro”.

IHU On-Line - Quais os maiores desafios e pontos mais polêmicos hoje na área da segurança computacional?

Pedro Rezende - Em minha opinião, os maiores desafios estão em entender o que é confiança. Para sabermos quando, como e onde, na esfera digital, ela ocorre ou é demandada, por quem e a respeito do quê. Para sabermos avaliar melhor os riscos, identificar as ameaças e os conflitos de interesse a que nos expomos com a virtualização das práticas sociais, em meio ao fascínio coletivo com as tecnologias digitais. Para termos boas estratégias de defesa, locais e sistêmicas, para médio e longo prazos. Já os pontos mais polêmicos dizem respeito ao foco da proteção. Dados só informam quando comunicados, voluntariamente ou não. E a comunicação tem dois interlocutores, que podem até ser o mesmo agente em tempos distintos. Mas nem sempre os interesses dos interlocutores a respeito desses dados se alinham. Dentre muitos casos emblemáticos, por brevidade, cito a recente criação do blog corporativo da Petrobrás, e seu motivo como exemplo. Segurança, como diz o criptógrafo Bruce Schneier,  é, ao mesmo tempo, um processo de riscos e probabilidades, e um teatro de percepções e sentimentos. Quando há conflitos de interesse entre interlocutores, “segurança da informação” deixa de fazer sentido, apesar de ser o termo habitual de quase todos para se referirem ao processo. Mas, quando há conflitos desse tipo, esse hábito leva a confusões entre o processo e o teatro da segurança. Nesses casos, o foco da proteção nos dados, e não nos interesses, ofusca conflitos e empoderamentos, que só beneficiam os que disso se locupletam. Os quais, via de regra, são os que controlam o uso das tecnologias intermediadoras.

IHU On-Line - Qual a importância da criptografia para a questão das mudanças na ideia da propriedade com a era digital?

Pedro Rezende - Em rede aberta, como a Internet, a única coisa que a criptografia pode fazer é traduzir o problema da identificação de interlocutores que desejam, através da rede, comunicar-se em privado ou com garantias de integridade, seja da origem ou do conteúdo dos dados, para o problema da distribuição de certificados-raiz, para o da custódia de chaves privadas, e para o da integridade das plataformas onde chaves criptográficas operam. E os problemas traduzidos, conforme explico em "Modelos de Confiança" (www.cic.unb.br/~pedro/trabs/modelos_de_confianca.pdf), só terão solução eficaz em situações onde haja um canal de confiança entre os interlocutores que seja adequado ao objetivo e ao método de proteção escolhidos, e que lhes esteja disponível tempestivamente. Qualquer agregado de procedimentos e mecanismos de segurança digital, como, por exemplo, uma ICP (Infra-Estrutura de Chave Pública), não pode proteger quem quer que seja além de suas fronteiras virtuais. Não pode impedir que computadores e redes sejam atacados através dessas fronteiras de confiança. Na realidade, tais ataques são tão plausíveis quanto indicarem as relações custo/benefício em se penetrar essas fronteiras de confiança, sob o recrudescente cerco do risco moral à disseminada tecno-imersão de práticas sociais. Por isso, a importância da criptografia será sempre limitada às condições de confiança disponíveis ao contexto de uso. Forçar a barra, ou obscurecer esses limites, por exemplo, decretando fé pública por atacado e invertendo o ônus da prova de fraude na identificação do titular do certificado, como faz a ICP Brasil, em relação à segurança de usuários constitui puro teatro. Teatro que tem como efeito real o de agravar riscos no processo, para quem se vê obrigado a se comunicar com base nela.

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