Edição 317 | 30 Novembro 2009

Tragédia da Piedade

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Gilda Carvalho e Patrícia Fachin

Ricardo Oiticica comenta a vida e a morte de Euclides da Cunha, considerado um dos formadores do sentimento republicano da nação

Fatalidade? Vingança? Tragédia? Todas essas perguntas se fazem presentes quando o assunto são as circunstâncias que cercam a morte de Euclides da Cunha. Nesta entrevista, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, Ricardo Oiticica, pesquisador da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela mesma Universidade, procura respondê-las ao mesmo tempo em que levanta outras questões inerentes à biografia do escritor e que se relacionam com aquela que veio a ser conhecida como a “tragédia da Piedade”. Ele descreve ainda Euclides da Cunha como um dos “formadores do sentimento republicano de nação”, o qual “sacrificou a vida pessoal em nome do país, em projetos que colocaram tudo em segundo plano”. E completa: “Seu ciclo de vida se encerra bruscamente, numa aterrissagem típica de herói”.

Confira a entrevista feita em parceria com a PUC-Rio.

IHU On-Line - No centenário da morte de Euclides da Cunha, as circunstâncias de seu assassinato não poderiam abafar a leitura da obra?

Ricardo Oiticica - Começo por outra pergunta: dá para entender o Brasil, abstraindo o suicídio de Getúlio Vargas? O corpo de Euclides está no meio do caminho da nossa literatura. Foi um dos formadores do sentimento republicano de nação e sacrificou a vida pessoal em nome do país, em projetos que colocaram tudo em segundo plano. Quanto ao jornalismo, isso nunca foi problema para a literatura de um Euclides, de um Nelson Rodrigues. O problema não está no gênero, mas em quem o exercita.

IHU On-Line – Como conciliar biografia e bibliografia na abordagem do autor?

Ricardo Oiticica - Para esse “misto de celta, de tapuia e grego”, como Euclides se definia, o impasse pode ser mediado pelo conceito clássico de tragédia. Euclides vivia a glória da recente eleição para a Academia Brasileira de Letras - ABL e da indicação para o Colégio Pedro II (então Ginásio Nacional). E recebera de presente, pouco antes, os originais das “Prédicas”, o manuscrito de Conselheiro encontrado no rescaldo de Canudos. Entre o nascimento na fazenda da Piedade, em Cantagalo, e a morte na chamada “tragédia da Piedade”, no Rio de Janeiro, seu ciclo de vida se encerra bruscamente, numa aterrissagem típica do herói. E estendido na Estrada Real de Santa Cruz, nome que associa os chamados “dois gládios” – o Estado e a Igreja, cuja dissociação pela República foi o mote do movimento de Canudos. Um suplemento trágico ainda ocorre: a morte do chefe da última expedição, o Ministro da Guerra Machado Bittencourt, assassinado no momento em que recebia, no Rio, os ex-combatentes. Com essas circunstâncias, volta-se à obra sem se ter saído completamente dela. Algo bem distinto é dizer apenas que Euclides morreu numa sexta-feira, 13.

IHU On-Line – Qual era o ambiente em que a Guerra de Canudos se inscrevia?

Ricardo Oiticica - Reinava entre os monarquistas o sentimento de que a República, “lei do cão” para Conselheiro, cometia a heresia de destronar o representante de Deus. E, entre os republicanos, havia o temor de que Canudos fosse um movimento restaurador. Como disse Euclides, a rua do Ouvidor se transformava numa vereda de Canudos. Simultaneamente à tragédia do casal imperial, enviado para a morte na Europa, ocorria o primeiro ato da tragédia de Euclides na casa do major Sólon Ribeiro, que foi o portador do ultimatum para a família imperial deixar o país. Uma tragédia familiar no Império se encadeava a uma outra, republicana. Há aqui a questão do “guénos”, a maldição de uma linhagem provocada pela quebra de antigos convênios. Olavo Bilac comenta a presença militar na Sé, após a Proclamação da República:

“Então, aqueles mesmos homens duros, que na trágica noite haviam empurrado para o mar a família representante de Deus na Terra, tinham a coragem de vir rezar aos pés desse mesmo Deus injuriado?! Santo Cristo!”.

IHU On-Line - O que ocorreu em casa de Sólon para ligá-lo visceralmente a Euclides da Cunha?

Ricardo Oiticica - Euclides, famoso não ainda por seus escritos, mas por sua insubordinação ao ministro da Guerra do Império, quando cadete da Escola Militar, foi convidado para a festa republicana que se seguiu à missão de Sólon. Na casa do major, flerta com a filha, com quem rapidamente se ligará por uma das manifestações do que Conselheiro chamava “a lei do cão”, o casamento civil. Euclides, o cadete que desafiou o exército imperial. Ana, a personificação da mulher republicana, a tomar pelo “torpedo” que Euclides lhe enviou durante a festa: “Entrei aqui com a imagem da República e parto com a sua imagem...”. Para as gerações futuras, vale lembrar que ainda não havia celular à época, foi um bilhete mesmo.

IHU On-Line - Essa ligação entre Sólon e Euclides também passa pelas veredas de Canudos?

Ricardo Oiticica - Antes, passa pela Revolta da Armada, quando lutam ao lado de Floriano Peixoto, mas se desiludem com a condução do conflito. Em função disso, Sólon será transferido para Salvador e, como comandante do distrito militar baiano, ordenará a primeira expedição a Canudos. Sólon abriu e, de certa forma, Euclides fechou o conflito, como jornalista da comitiva do ministro da Guerra, na expedição decisiva. Três anos depois de a reportagem ser transformada no livro Os sertões, um aspirante do Exército se aproxima de Ana, e os fatos acontecem vertiginosamente, até ela ir com os filhos de Euclides para a casa do amante. Para voltar a Nelson Rodrigues, Ana realizava a máxima de que as mulheres só deviam amar meninos de 17 anos. E Euclides era o último a saber.

IHU On-Line - E no teatro do crime, o que ocorre, precisamente?

Ricardo Oiticica - O resumo da tragédia: com uma arma conseguida a pretexto de “matar um cão”, Euclides troca treze tiros antes de tombar no portão da rua sob os gritos de “cachorro”. O primogênito de Euclides, Sólon, presencia a morte do pai, e Euclides Filho, tentando vingança, também será liquidado mais tarde por Dilermando de Assis, que um dia abandonará a mulher. O irmão dele, Dinorah, suicida-se em consequência do tiroteio: era insuportável para um jogador de futebol, que ainda conseguiu jogar a temporada heróica de 1910, ir, progressivamente, entrevando. Há coisas que só acontecem ao Botafogo, poderia definir Nelson Rodrigues, caso fosse o autor da frase.

Começamos por uma pergunta e terminamos por outra, feita pelo poeta do sertão ao poeta do mar, Vicente de Carvalho:

“Quem definirá um dia essa maldade obscura e inconsciente das causas, que inspirou aos gregos a concepção indecisa da Fatalidade?”.

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Tragédia da Piedade

A esposa de Euclides da Cunha, conhecida como Ana de Assis, tornou-se amante de um jovem tenente, 17 anos mais novo que ela, chamado Dilermando de Assis. Casada com Euclides, teve dois filhos de Dilermando. A traição de Ana desencadeou uma tragédia em 1909, quando Euclides invadiu a casa de Dilermando, armado, dizendo-se disposto a matar ou morrer. Dilermando reagiu e matou-o. Foi julgado pela justiça militar e absolvido por ter agido em legitima defesa. Casou-se com Ana e viveu com ela durante 15 anos. O corpo de Euclides foi velado na Academia Brasileira de Letras.

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