Edição 314 | 09 Novembro 2009

A filosofia pós-moderna e a força infinita do espírito humano

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Márcia Junges e Jasson Martins | Tradução: Jasson Martins

Exortações “tu deves crer” e “tu deves amar” são caminho alternativo ao relativismo modernista, observam Ana María Fioravanti e Maria Jose Binetti. Espírito humano dotado de força infinita, em contraposição ao niilismo, é que tem a ver com a filosofia pós-moderna

Os estudos sobre Kierkegaard na Argentina avançaram muito, mas ainda não o bastante, analisam Ana María Fioravanti e Maria Jose Binetti na entrevista que concederam, em conjunto, por e-mail, à IHU On-Line. Para diversos pesquisadores, dizem elas, a oposição entre a filosofia do dinamarquês e a de Friedrich Hegel, não tem mais sentido. Utilizando-se de uma expressão hegeliana, Fioravanti e Binetti afirmam que os que lutam se abraçam. “Partindo desse ponto de vista, é inegável que Kierkegaard é devedor do pensamento do filósofo alemão, à medida que boa parte de sua obra é uma discussão, por vezes até violenta, com Hegel”. E complementam: “O problema essencial, cremos, é que a utilização de certos conceitos idênticos distrai do como devem ser entendidos”. È o caso dos termos angústia, desejo, temor, finito, infinito, absoluto, verdade, singularidade e espécie, familiares para os leitores de Kierkegaard, e que já “tinham sido tratados anteriormente por Hegel”. Para elas, a filosofia pós-moderna “não tem a ver com um niilismo relativista, mas sim com a força infinita do espírito humano, tal como Kierkegaard o concebeu”. À onda de “direitos de todo tipo e cor que desencadeou o modernismo, ele opôs como único caminho, inclusive para alcançar esses mesmos direitos, o ‘tu deves crer’ e o ‘tu deves amar’”.

Ana María Fioravanti é professora particular e tradutora. Membro fundadora da Biblioteca Kierkegaard Buenos Aires e responsável pelos projetos desenvolvidos atualmente por esta Instituição, traduziu ao espanhol (a partir da tradução italiana) alguns textos de Kierkegaard e colaborou com a tradução da obra El instante. (Madrid: Trotta, 2006). Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard da parte Argentina, apresenta a comunicação De Vassallo a Kierkegaard: finitude e transcendência.

Maria Jose Binetti é licenciada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica Argentina Santa María de los Buenos (UCA). Doutora em Filosofia pela Universidade de Navarra, Espanha, é pesquisadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet). Leciona na Universidade John F. Kennedy, na Argentina. Além de artigos em revistas nacionais e internacionais, publicou os seguintes livros: El poder de la libertad. Introducción a Kierkegaard (Buenos Aires: Ciafic, 2006), La posibilidad necesaria de la libertad. Un análisis del pensamiento de Søren Kierkegaard (Universidad de Navarra: Pamplona, 2005). Colaborou com a tradução de El instante. (Madrid: Trotta, 2006). Na Jornada Argentino-Brasileira, apresentou o tema O impacto de Kierkegaard na emergência do sujeito contemporâneo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como surgiu a Biblioteca Kierkegaard e quais são seus objetivos?

Ana María Fioravanti e Maria Jose Binetti - Essa ideia nasceu de um fato realmente fortuito. Um professor de filosofia, Oscar Cuervo, e um licenciado em psicologia, Héctor Fenoglio, decidiram, por volta do ano 2000, estudar dinamarquês para ler Kierkegaard em seu idioma original e para isso se dirigiram à Igreja Dinamarquesa em Buenos Aires, onde depois de um tempo e com a ajuda inestimável do pastor Andrés Albertsen formaram um grupo de estudos, ao qual concorriam pessoas de diversas características e ocupações, como estudantes, professores, artistas, e outros. Dois anos mais tarde, em dezembro de 2002, tivemos a ideia de organizar uma biblioteca que reunisse todas as obras de Kierkegaard e os escritos de outros autores sobre Kierkegaard. Porém, na realidade, o nosso principal objetivo, desde o princípio, foi não só estudar e difundir o pensamento do “Grande Dinamarquês”, como o chamamos um pouco de brincadeira e um tanto sério, mas trabalhar especialmente com os grandes equívocos, confusões e tergiversações em torno aos conceitos-chave, a maioria decorrentes da falta de clareza para distinguir entre os escritos de Kierkegaard assinados com pseudônimos, e os que assinava com seu próprio nome. Creio que este é o propósito que eu assinalaria como o mais importante, se tivesse que escolher um, para caracterizar o maior empenho da Biblioteca Kierkegaard Argentina: tratar de pouco a pouco colocar alguma caridade sobre o histórico e grave mal-entendido que consiste em confundir indiscriminadamente o que dizem os escritos chamados pseudônimos ou estéticos e os chamados religiosos ou edificantes. Quer dizer, o mal-entendido de não saber escutar e reconhecer as vozes que falam em cada caso.

IHU On-Line – O que ocorreu com a recepção do pensamento de Kierkegaard, sobretudo a comentada oposição a Hegel, para que ficasse tão marcada na história da filosofia do século XIX? Esse é um problema atual, ou hoje em dia não faz sentido essa oposição?

Ana María Fioravanti e Maria Jose Binetti - Sobre este tema, as opiniões estão muito, muito divididas. Atualmente, há inúmeros pesquisadores que pensam que o antagonismo entre Hegel e Kierkegaard já não tem sentido e existe uma tendência a assimilá-los mais que a opô-los. Creio que era Hegel que dizia que os que lutam se abraçam. E partindo desse ponto de vista, é inegável que Kierkegaard é devedor do pensamento do filósofo alemão, à medida que boa parte de sua obra é uma discussão, por vezes até violenta, com Hegel. De modo que é necessário conhecer bem Hegel para compreender melhor Kierkegaard. No entanto, esse antagonismo ainda segue vigente e quase nos atreveríamos a dizer que, mais que do nunca. Sabemos que esta afirmação que, por outro lado, é compartilhada pela maioria dos integrantes da Biblioteca Kierkegaard Argentina, provoca sempre os debates mais inflamados e apaixonados. O problema essencial, cremos, é que a utilização de certos conceitos idênticos distrai do como devem ser entendidos. Conceitos tais como angústia, desejo, temor, finito, infinito, absoluto, verdade, singularidade e espécie etc., tão familiares para os leitores de Kierkegaard, também tinham sido tratados anteriormente por Hegel. No entanto, o modo em que se põe a relação entre ambos os autores é muito diferente. Para Hegel, o que singulariza o homem é o desejo, porém esse desejo se torna infinito e então aparece a ação enquanto luta pelo reconhecimento do outro como desejo, que é uma luta até a morte, porque o eu que deseja o deseja todo. Só a transformação da vida em cultura, a ação que, como diz Hegel, produz um eu que é um nós e um nós que é um eu, pode superar de algum modo essa luta. O que ele chama o sim do perdão, o salto que superaria o mal radical, só é possível pela presença do espírito que vive entre nós através da arte, a religião e, acima desse espírito, a filosofia, quer dizer o saber absoluto.

O sim do perdão

Trata-se de uma questão ética e política, trata-se de um saber. Trata-se do estado de direito, onde não basta um reconhecimento formal mas uma apropriação igualitária do poder, a riqueza e a informação que, como diz o professor Cullen, um especialista em Hegel, são respectivamente a homenagem de Hegel à Revolução Francesa, à economia de mercado e à Ilustração. Porém a Revolução Francesa pode desembocar no terror, a economia de mercado na alienação, da riqueza e a Ilustração em uma relação satisfeita com o presente, e a fé, uma fuga do mundo.

Portanto, o reconhecimento do outro só se dá naquilo que Hegel chama o sim do perdão, fundado na solidariedade e na fraternidade. Pois bem, Kierkegaard não fala de solidariedade e fraternidade nem de superação através do Espírito absoluto. Suas categorias não são teológicas, nem filosóficas, nem estéticas. Toda sua vida se concentrou em um só propósito: como tornar-se cristão e em esclarecer como a pregação deveria consistir em que um indivíduo singular (Enkelte, em dinamarquês, que significa alguém singular, único) falasse como indivíduo singular a outro indivíduo singular. Esse falar consiste propriamente, e sobretudo, em um convite a ouvir a palavra reveladora que é a pessoa de Cristo, e que não é nenhum Espírito absoluto que vai se desenvolvendo na história.

Aqui não tem nada que ver a história, porque todo cristão, em qualquer época e lugar, tem que ser contemporâneo de Cristo. Ele não ensina a verdade. Ele é a verdade que torna manifesto o único amor que não pode surgir do coração de nenhum homem: o amor ao próximo, que inclui o amado, o amigo e ainda o inimigo. Gostaríamos de reforçar que em um de seus livros fundamentais, As obras do amor , repete uma e outra vez que esse amor não surge do coração de nenhum homem. E, portanto, frente a esse amor, só se pode crer ou não crer.

A exposição, ao menos para nós, é muito diferente. Na encruzilhada de cada caminho singular está proposto o convite. Um convite que se oferece a cada um e a todos, e que não se pode aceitar sem escândalo nem paradoxo. Creio que entre um e outro não existe reconciliação possível, e que a oposição Hegel-Kierkegaard continua sendo decisiva também em nossos dias e nos dias que virão. É lógico, em uma época em que o liberalismo tem triunfado em todas suas formas, cada qual pode interpretar o que quiser e como quiser. E é possível que isso mesmo contribua à tarefa esclarecedora da qual falávamos no início. Porém, não estamos tão seguras. A luta de Kierkegaard consistiu em querer tirar o engano, a confusão e a ilusão de qualquer paraíso imaginário, social, político, cultural ou individual. Parece-nos que à torrente de direitos de todo tipo e cor que desencadeou o modernismo, ele opôs como único caminho, inclusive para alcançar esses mesmos direitos, o “tu deves crer” e o “tu deves amar”.

IHU On-Line – Por que Soren Kierkegaard não é um autor popular na América Latina?

Ana María Fioravanti e Maria Jose Binetti - Em primeiro lugar, porque a filosofia enquanto ciência não pode ser popular. Em segundo lugar, e vendo o caso particular de Kierkegaard, porque ele não foi popular nem sequer em seu próprio país. Sabemos que sua obra começou a ser conhecida na Europa apenas depois da Segunda Guerra Mundial, e recém hoje podemos dizer que seus estudos gozam de um florescimento internacional, sustentado em grande parte pelo apoio institucional do Centro de Estudos de Copenhague e da Hong Kierkegaard Library, assim como também pelas sociedades kierkegaardianas espalhadas pelo mundo inteiro. No caso da América Latina, o que tem dificultado ainda mais a tarefa de recepção e difusão de sua obra é, na minha opinião, e antes de tudo, a barreira idiomática que nos separa do dinamarquês, muito menos acessível e motivador que, por exemplo, o idioma alemão. Em consonância com esta eu considero que existe também uma espécie de barreira cultural. A Dinamarca é um país isolado, inclusive no que diz respeito à própria Europa, e as diferenças entre o espírito nórdico e o espírito latino não são poucas. A soma de ambos os fatores é o que me parece ter atrasado o ingresso de Kierkegaard em nossos países, ou ao menos ter feito com que ele fosse conhecido por intermédio de terceiros pensadores, tais como Miguel de Unamuno.  Não obstante, e em pé de igualdade com o resto do mundo, seus estudos começam atualmente um caminho de crescimento e amadurecimento também na América Latina, cujo reflexo vemos nas instituições tais como a Sociedade Iberoamericana de Estudos Kierkegaardianos (México), a Sobreski (Brasil) e a Biblioteca Kierkegaard Argentina.

IHU On-Line - Qual é a atualidade de Kierkegaard no contexto do pensamento filosófico contemporâneo?

Ana María Fioravanti e Maria Jose Binetti - A atualidade de Kierkegaard é muito grande, ao ponto de animar-nos a dizer que a constituição da subjetividade contemporânea proposta - entre outros - por J. Derrida, G. Deleuze, J.-L. Nancy, J. Caputo o M. Taylor conserva as determinações fundamentais da subjetividade kierkegaardiana. A pós-modernidade hermenêutica e a desconstrução assumem de Kierkegaard os conceitos de diferença e repetição, paradoxo, possibilidade, instante, inter-esse ou ser-no-meio-de, e inclusive sua consistência religiosa, fundada na decisão da fé e estabelecida para além de toda igreja instituída. O sujeito contemporâneo possui a validade absoluta do singular kierkegaardiano, e é precisamente sua elevação a uma infinitude possível a que questiona e problematiza a finitude temporal da existência, ao mesmo tempo em que supera os limites fixos e abstratos do entendimento formal. No lugar da destituição e do ocaso do sujeito, o que parece haver hoje em dia é uma convalidação de sua força absoluta, a respeito da qual o pensamento de Kierkegaard se mostra como a maior influência. Neste sentido, entendemos que a filosofia pós-moderna não tem a ver com um niilismo relativista, mas sim com a força infinita do espírito humano, tal como Kierkegaard o concebeu.

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