Edição 313 | 03 Novembro 2009

A mediação comunitária como prática jurídica popular inovadora

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Fiadora da justiça, bem político supremo, a amizade é o vínculo social por excelência, já que ela faz do viver em comum uma escolha, e não uma necessidade, afirma Rosa Maria Zaia Borges Abrão

Amanhã, dia 4 de novembro, acontece mais uma edição do evento IHU em Movimento - Direito em Debate. Na ocasião, a Profa. Dra. Rosa Maria Zaia Borges Abrão, da PUCRS, abordará o tema “A philía como critério de inteligibilidade da mediação comunitária”. A convite da IHU On-Line, a professora concedeu a entrevista que segue, por e-mail, adiantando aspectos do debate que ela levantará nesta quarta-feira, no Auditório Maurício Berni, localizado na Unidade de Ciências Jurídicas da Unisinos. “Entende-se a mediação comunitária como um instrumento eco-pedagógico-comunicacional de autocomposição de conflitos que visa à democratização do acesso à justiça e a emancipação social sob os fundamentos de uma ética da alteridade”, explica Rosa Abrão. Em outras palavras, “mediação comunitária, ou justiça comunitária, ou justiça popular, só se legitima como tal se for produzida pelos próprios sujeitos que se identificam como membros de uma determinada comunidade; caso contrário, tem-se aí mera extensão do Estado”.

Rosa Maria Zaia Borges Abrão possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU, mestrado em Direito pela Unisinos, e doutorado em Filosofia do Direito pela USP. Atualmente, é professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. É membro da Associação Brasileira do Ensino do Direito - ABEDI. Tem experiência na área de Direito Internacional Público, como ênfase em Direito Internacional Humanitário, área na qual é coordenadora de grupo de estudos na PUCRS desde 2005. Possui atividades vinculadas à área de mediação, como professora da disciplina e como coordenadora de atividades de extensão e, ainda, na área de filosofia do direito.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir de que conceito de philía a senhora abre a discussão sobre o tema a ser apresentado no evento? Pode explicar esse conceito?

Rosa Maria Zaia Borges Abrão - O conceito de philía a partir do qual se propõe a discussão é aquele vinculado à teoria aristotélica e traduz-se por amizade. A própria etimologia da palavra amizade, para os antigos, já explica, em grande parte, seu significado nas teorias de seus diversos filósofos. A amizade é enaltecida pela sabedoria antiga por uma palavra que a distingue de éros (amor): essa palavra é philía. Os antigos deram à palavra “amizade” a extensão que nós damos à palavra “amor”. Assim, amizade paternal, familiar, amizade amorosa; todos os tipos de afeição entre as pessoas, profundas ou estreitas, banais ou frias, como a filantropia, ou pessoais e íntimas, como a amizade propriamente dita, era para eles amizade. A democracia da pólis clássica também conhece a amizade sob o ponto de vista político: uma amizade que está determinada mais por razões ideais de solidariedade que por questões de relações pessoais. Assim, considerada a amizade como uma virtude (difícil quando não problemática) representativa de uma benevolência recíproca, conforme alguns teóricos, da qual cada um é consciente; uma virtude cuja perfeição requer que seja levado a seu ponto máximo o reconhecimento das qualidades essenciais de cada um pelo outro; não se pode dizer que ela se limita a um sentimento. Ela é uma atividade comum ou, ao menos, a pressupõe. Sendo correto dizer que a amizade pertence ao domínio da filosofia moral, não se pode deixar de admitir que ela também assuma um papel não periférico na filosofia política e na antropologia filosófica. Destaca-se que o tema da amizade é um dos fundamentais na obra de Aristóteles e, com certeza, melhor que qualquer outro, ele mostra claramente a unidade da ética e da política sob o comando arquitetônico desta última. Fiadora da justiça, bem político supremo, a amizade é o vínculo social por excelência, já que ela faz do viver em comum uma escolha, e não uma necessidade.

IHU On-Line - Quais os maiores desafios e avanços atuais em relação à questão da mediação em nossa sociedade?

Rosa Maria Zaia Borges Abrão - Os desafios são maiores que os avanços, devo admitir. Ainda há muita resistência às práticas de mediação de conflitos, em especial por parte dos profissionais do direito. Assim, considerando-se a cultura jurídica moderna de matriz liberal-individualista-positivista-racionalista, pode-se apontar como desafios à mediação de conflitos, entre outros: a ruptura com o paradigma moderno do monopólio da distribuição do direito pelo Estado, que impõe que a justiça encontra-se apenas nos tribunais; a reaproximação entre afeto e razão no mundo jurídico e a consequente contraposição à cultura jurídica do litígio, ou seja, a de que a composição dos conflitos se dá contra o outro, e não com o outro; a reflexão em torno do ensino jurídico tradicional e da formação acadêmica dos profissionais do direito, já que, salvo raras exceções, não se privilegia espaço nos currículos dos cursos de direito para disciplinas que apresentem e aprofundem teórica e praticamente os métodos consensuais de composição de conflitos, o que resulta na formação de novos profissionais que irão atuar a partir de “velhos” métodos, não compatíveis com a complexidade e exigências da sociedade contemporânea. A despeito dos enormes desafios, alguns avanços já podem ser apontados: já se encontram instituições de ensino superior que incluíram em seus currículos e em seus espaços de prática jurídica os mecanismos alternativos de composição de conflitos; há programas do governo federal de fomento à formação de mediadores comunitários e à criação de programas universitários de teoria e prática da mediação (justiça comunitária e Pacificar, respectivamente, ambos projetos financiados pelo Programa Nacional de Segurança com Cidadania - PRONASCI, do Ministério da Justiça); a utilização, por alguns núcleos de assessorias jurídicas populares espalhados pelo Brasil, da mediação como uma das premissas de atuação com as comunidades carentes.

IHU On-Line - O que podemos entender por mediação comunitária?

Rosa Maria Zaia Borges Abrão - Entende-se a mediação comunitária como um instrumento eco-pedagógico-comunicacional de autocomposição de conflitos que visa a democratização do acesso à justiça e a emancipação social sob os fundamentos de uma ética da alteridade. Pode-se encontrar na doutrina denominações distintas de “mediação comunitária”, tais como “resolução de disputas de vizinhança”, “justiça informal” etc. Estas várias instâncias podem ser colocadas sob a rubrica da “mediação comunitária”, não porque tenham uma singular e homogênea identidade, mas para desvelar uma racionalidade política contingente. A grande questão que precisa ser ressaltada aqui, quando se fala em mediação comunitária, e que é pressuposto para que se possa defender a potencialidade que o mecanismo teria em se constituir como instrumento de resgate da afetividade e solidariedade perdidas na modernidade, para que se possa conferir-lhe o papel de propulsora de identidades, autonomias, emancipações, construídas no conviver humano, é a de que uma justiça comunitária demanda, necessariamente, sua realização por membros da própria comunidade. Dito de outra forma: todos os elementos distintivos da mediação não seriam qualificados de comunitários se realizados por agentes externos à comunidade – sem querer parecer redundante, nestes termos. Enfim, o que se quer dizer aqui é que mediação comunitária, ou justiça comunitária, ou justiça popular, só se legitima como tal se for produzida pelos próprios sujeitos que se identificam como membros de uma determinada comunidade; caso contrário, tem-se aí mera extensão do Estado.

IHU On-Line - De que forma a philía pode ser considerada um critério de inteligibilidade da mediação comunitária?

Rosa Maria Zaia Borges Abrão - Tomar a mediação como instrumento eco-pedagógico-comunicacional de autocomposição de conflitos é tornar possível uma concepção de direito e de justiça muito mais próximos da realidade. Legitimar as práticas de mediação comunitária é legitimar uma justiça próxima dos cidadãos porque é por eles manufaturada (não no sentido próprio de um “estado de natureza”, mas numa perspectiva de autonomia e emancipação pró-societária), é atender ao conceito de cidadania que permeava a teoria política aristotélica: cidadão é aquele que delibera e decide. É também por este motivo que a mediação comunitária pode ser tomada como uma prática jurídica popular inovadora. Primeiro porque trabalha com um conceito de liberdade que se contrapõe àquele desenhado pela modernidade – nela o homem é livre da comunidade. A concepção de integração social que é pressuposto para a prática da mediação nos moldes aqui defendidos, prescreve a condição humana de liberdade na comunidade; não se pode pensar o significado de ser e estar no mundo a par da pertença ao local pelo qual se identifica no mundo. O homem age, interage, troca, constitui-se a partir da sua identificação com valores, princípios, convicções que não se postulam no isolamento, mas, ao contrário, na comunhão. E conviver constitui-se em algo complexo, que pode vir a gerar conflitos. Se estes são solucionados levando em conta o contexto no qual se produzem, de forma não universalista, de maneira consensual, de modo a valorizar e buscar preservar os laços afetivos que cimentam as relações humanas tem-se uma grande probabilidade destes conflitos gerarem transformações sociais positivas. Considerando que a modernidade deixou para a amizade um espaço exclusivamente adstrito ao privado, justifica-se sustentar que a mediação comunitária, por adotar como critério de inteligibilidade a amizade, recupera o caráter ético da vida em sociedade, admitindo que os vínculos sociais se justifiquem por fundamentos jurídicos, sociais, mas também afetivos, e que qualquer abalo nestes vínculos dizem respeito, diretamente, ao público, na medida em que são produtos do conviver, e não só do viver, em comunidade. Ou seja, quando se está diante de um conflito e se permite encará-lo como algo compartilhado, e não rivalizado, por aqueles que o vivenciam, quando se potencializa a restauração das animosidades tendo como foco a perpetuação de relacionamentos, permite-se invocar, no plano público, a importância dos laços afetivos como condição de possibilidade dos atores se enxergarem como partícipes da comunidade. 

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