Edição 313 | 03 Novembro 2009

Metaxu: a união de planos diferentes de realidade

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Gilda Carvalho e Patrícia Fachin

Na opinião do filósofo Fernando Rey Puente, a noção de metaxu, ou seja, de intermediário, é fundamental no pensamento de Simone Weil, pois possibilita estabelecer contato com o Bem, transcendente e inacessível

“Uma hermenêutica das culturas pensada de modo original e singular”, a obra de Simone Weil deve “ser entendida como uma ampla reflexão sobre as culturas”, sugere Fernando Rey Puente, professor de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Para ele, a estratégia teórica que está por trás das interpretações da escritora e filósofa francesa “reside em uma dupla operação exegética que ela empreende”. Por um lado, menciona, ela mostra que o mundo grego está inserido no contexto mundial e também recebeu a revelação divina.  Por outro, enfatiza, “ela tenta mostrar que o cristianismo é essencialmente filosófico e científico, e que nada foi mais danoso para o mesmo do que a separação que começou a haver entre a ciência e a religião cristã a partir do Renascimento”.

Desde o princípio da vida, a matemática e a mística tiveram um significado especial para Simone Weil, e, na percepção da escritora, revestidas de mística, as ciências poderiam nos levar a Deus.  “Ela queria repensar uma nova ciência que pudesse ser ‘lida’ também num plano místico. Uma ciência que estivesse à altura de nossa civilização do trabalho, algo que nem mesmo os gregos, que ela tanto estimava, chegaram a compreender”, acentua.

Fernando Rey Puente é mestre em Filosofia pela Freie Universität Berlin, na Alemanha, e doutor na mesma área pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É também autor de livros sobre Schelling, Aristóteles e Simone Weil. Destacamos Simone Weil et la Grèce, (Paris: L’Harmattan, 2007) e As Concepções Antropológicas de Schelling (São Paulo: Loyola, 1997). Recentemente, organizou, em parceria com o Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, o Congresso Internacional Simone Weil e a Filosofia, em comemoração ao centenário da filósofa.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual a função dos metaxu na composição do pensamento weileano?

Fernando Rey Puente - A noção de metaxu, ou seja, de intermediário, tem um papel fundamental no pensamento de Simone Weil, na medida em que é por meio desses intermediários que é possível estabelecer um contato com o Bem, que é transcendente e inacessível para nós. Como ela postula existir diferentes planos de realidade e que acredita na possibilidade de eles poderem ser “lidos” um detrás do outro, os intermediários são essenciais no seu pensamento, pois são eles que permitem a passagem de um plano para o outro. A matemática, por exemplo, é um desses intermediários para ela, um intermediário de extrema importância.

IHU On-Line - Como a matemática se insere na vida de Simone Weil e como ela influencia seu pensamento?

Fernando Rey Puente - A matemática está presente desde os primórdios da vida de Simone Weil, pois ela cresceu e foi educada ao lado de seu irmão, André Weil,  um dos matemáticos mais importantes do século XX. Ela dizia que seu irmão havia sido desde a mais tenra idade um verdadeiro gênio, razão pela qual ela comparava a infância dele à de Pascal. Devido a essa imensa superioridade intelectual que ela acreditava existir entre ela e seu irmão, Simone chegou mesmo a sentir-se alijada do reino do espírito, até que, um dia, ela teve uma espécie de revelação de acordo com a qual compreendeu que ninguém está impossibilitado de adentrar nesse território caso se empenhe verdadeiramente a entrar nele com dedicação e atenção. Desse modo, ela sentiu-se consolada para continuar seus estudos.

Ela entende a matemática principalmente em relação à civilização grega, em particular em relação a Platão  e aos pitagóricos.  Na sua interpretação dessa civilização que tanto amava, ela não considerava a matemática apenas como uma mera disciplina formal e abstrata, mas também, e, sobretudo, como a verdadeira ciência da natureza e como uma mística. Em outras palavras, a matemática era um metaxu que permitia unir planos diferentes de realidade. Esse duplo aspecto da matemática é, portanto, essencial para que se compreenda a importância que suas reflexões sobre a matemática terá no desenvolvimento de sua obra e de sua relação e apreciação de diversos pensadores, tais como Platão e Descartes , dois dos mais importantes filósofos que influenciaram a sua filosofia.

IHU On-Line - Seria possível afirmar que Simone Weil possuía uma compreensão mística das ciências, em especial da Matemática?

Fernando Rey Puente - Sem dúvida, ela pensava que a matemática e as ciências em geral deveriam ser revestidas de uma dimensão mística, ou seja, elas deveriam nos levar a Deus. Para Weil, a ciência grega nada mais era do que uma ponte para nos conectar a Deus. Mas, cabe ressaltar, ela, de modo algum, tinha um projeto nostálgico de retorno ao mundo grego. O que queria mesmo era repensar uma nova ciência que pudesse ser “lida” também num plano místico. Uma ciência que estivesse à altura de nossa civilização do trabalho, algo que nem mesmo os gregos, que ela tanto estimava, chegaram a compreender. Por isso, enfatiza o trabalho como a especificidade de nossa civilização, e, necessariamente, deveria ser em torno a essa noção de trabalho que uma nova espiritualidade deveria se erguer.

IHU On-Line - Simone Weil tinha duas grandes paixões: o Cristianismo e a cultura ou a tradição grega. Como ela aproxima essas duas forças tão presentes em sua vida?

Fernando Rey Puente - De fato, essa aproximação me parece constituir a verdadeira chave para a compreensão de sua obra, que deve ser entendida como uma ampla reflexão sobre as culturas. Trata-se de uma hermenêutica das culturas pensada de modo original e singular.

A estratégia teórica que está por trás de sua interpretação reside em uma dupla operação exegética que ela empreende: por um lado mostrar que o mundo grego se insere em um contexto mundial no qual todos ou quase todos (à exceção os romanos) os povos da Terra receberam uma revelação divina, inclusive os gregos. Ou seja: contrariamente à ideia tão propalada que na Grécia teria ocorrido algo único – o triunfo da razão autônoma e soberana - que se entende como o nascimento da razão e o abandono do mito, ela pensa que a própria ciência grega nada mais é do que a revelação particular que essa civilização recebeu para mediar a distância por eles sentida entre a transcendência do Bem (exposta em Platão) e a miséria dos homens (apresentada em suas tragédias). Por outro lado, ela tenta mostrar que o cristianismo é essencialmente filosófico e científico, e que nada foi mais danoso para o mesmo do que a separação que começou a haver entre a ciência e a religião cristã a partir do Renascimento. Ora, a identidade entre os conceitos de logos e arithmos permite a ela reler a tradição grega e a tradição cristã em nova chave hermenêutica. Assim, o logos do início do Evangelho de João é lido não como “verbo”, mas sim como “mediação” no sentido matemático.

Igualmente, ela pode “ler” no reencontro de Orestes  e Antígona  o reencontro da alma humana com Cristo. Em suma, ela elabora um complexo método de “leitura” (um conceito central para ela) que a capacita a “ler” diversas analogias entre fatos e culturas aparentemente diversos e desconexos com imensa facilidade e originalidade.

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