Edição 308 | 14 Setembro 2009

A pós-metafísica e a narrativa de Deus

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Greyce Vargas

Marcelo Fernandes de Aquino, reitor da Unisinos, explica o que caracteriza a pós-metafísica, qual a importância da compreensão de Deus e como o debate inter-religioso auxilia esse processo

Atualmente, rodeiam vários questionamentos sobre as possibilidades, o significado e a relevância do discurso teológico na sociedade. A explicação do que é a caracterização pós-metafísica, qual a importância da compreensão de Deus e como o debate inter-religioso auxilia esse processo pode ser conferida na entrevista dada pelo Prof. Dr. Pe. Marcelo de Aquino, Reitor da Unisinos, à IHU On-Line. O debate vai ao encontro do tema do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e Impossibilidades, que acontece de 14 a 17 de setembro.

O Prof. Dr. Pe. Marcelo de Aquino é pós-doutor em Filosofia pelo Boston College, Estados Unidos. Especialista em Hegel, fez doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde também obteve dois títulos de mestre, em Teologia e em Filosofia. Realizou graduação em Filosofia na Pontifícia Faculdade Aloisianum, Itália, e especialização em Filosofia na Hoschschule für Philosophie, em Munique, Alemanha. Foi vice-reitor da universidade desde 2002, e também reitor do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, MG. Atualmente, é reitor da Unisinos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma podemos entender o que é a sociedade pós-metafísica?

Marcelo Fernandes de Aquino - O tema “pós-metafísica” está associado ao tema “pós-cristianismo”, ambos presentes na cultura contemporânea. A metafísica começou na manhã grega da filosofia, a invenção grega do logos demonstrativo. Significa a estrutura primária de nossa relação com a realidade. Esta estrutura primária, de uma ou de outra maneira, está subjacente ao nosso ser-com-os-outros-no-mundo. Os gregos a pensaram como contemplação do ser. O verbo ser, em grego einai, é algo muito específico e próprio da língua grega, graças ao qual eclodiu experiência metafísica. Platão  e Aristóteles  pensaram os três grandes campos da experiência metafísica, o conhecimento, o agir e o esperar humano, sob a regência da contemplação do ser. A reflexão platônica aponta para a inteligibilidade suprassensível das ideias separadas. A crítica de Aristóteles a Platão traz a inteligibilidade para a imanência do mundo sensível. Aí temos as duas grandes orientações filosóficas que vigem até hoje: o platonismo, a ontologia das ideias separadas, e o aristotelismo, a ontologia da forma substancial em que a inteligibilidade está inerente a matéria. Plotino  representa uma inflexão na metafísica grega, quando a Ontologia clássica grega torna-se henologia, ou seja, teoria do Uno. Esta virada introduz in nuce o tema do existir e, respectivamente, o da Liberdade absoluta.

Um fato importante da tradição metafísica foi o encontro do logos demonstrativo grego com a palavra da revelação bíblica judaico-cristã. Filo de Alexandria,  que viveu um pouco antes do nascimento de Jesus Cristo, é um nome importante desse encontro. Ainda na cidade de Alexandria, Justino  e Orígenes  promoveram o encontro do anúncio cristão com a filosofia platônica. Deram início a essa operação intelectual de grande importância que foi a assimilação da metafísica grega na sua vertente teológica pelo cristianismo. Basta pensar nas teologias aristotélica e estóica e assim teremos o amplo cenário desse belo hibridismo cultural que resultou da miscigenação entre metafísica e história, ou ainda logos demonstrativo e esperança escatológica. Este paradigma, o paradigma de uma inteligibilidade transcendente, teve um florescimento magnífico nos séculos XII e XIII, do ocidente latino-cristão. Basta pensar em Tomás de Aquino  que remodela o platonismo, o aristotelismo e o neoplatonismo, e coloca a questão da metafísica em torno do ato de existir em sua radical contraposição ao nada.

Entretanto, nesse mesmo período, fins do século XIII d.C., já se manifestam os primeiros sinais de uma outra vertente filosófica, o nominalismo, iniciada por Duns Scotos  e Guilherme de Occam,  que é uma reviravolta na maneira do pensar filosófico. O foco não é tanto mais o ser, mas a representação. Com isso, tem início um processo de desconstrução dessa orientação da metafísica grega na sua aliança com a experiência bíblica judaico-cristã. Tem início o tema da ontoteologia, que, mais tarde, foi criticada por Martin Heidegger.  O filósofo jesuíta Suarez  é um nome importante na questão da pós-metafísica. Ele retoma a operação intelectual de migração do ser à representação. Funda a concepção moderna da ideia de um sistema fechado sobre si mesmo que encontrará em Hegel sua expressão mais famosa. Creio que o tema da pós-metafísica é um repensamento da fundação do discurso racional e filosófico, tanto em sua matriz grega como em sua matriz bíblico-judaico-cristã, e introduz a questão mais delicada da forma de um ceticismo, bastante forte hoje em nossa cultura, e o tema do niilismo.  Uma sociedade pós-metafísica é aquela no qual o ceticismo e o niilismo levantam a pretensão de ser a matriz da identidade cultural da humanidade e da sociedade.

IHU On-Line - Na sociedade de hoje, quando vivemos diversas crises, pensada como pós-metafísica, porque é tão importante pensar, compreender e falar sobre Deus?

Marcelo Fernandes de Aquino - O pensamento grego era fundamentalmente um pensamento religioso e, por isso, foi possível a assimilação das teologias platônica, aristotélica e estóica pelo cristianismo. As raízes desse pensamento eram religiosas. Os gregos tinham feito crítica à religião, não no sentido de uma desconstrução religiosa, mas no sentido de uma elevação do religioso ao plano de uma teologia racional. Hoje, amplos segmentos da nossa humanidade perderam a dimensão da experiência religiosa. O desafio são as questões seguintes: “É possível a experiência de Deus naqueles estratos de sociedade humana não mais organizados do ponto de vista da experiência religiosa? Como fazer? Com se dá a experiência do Absoluto num contexto a-religioso? É possível o encontro da teologia cristã com uma cultura cuja dinâmica expressivista é fundamentalmente niilista e cética?”.

IHU On-Line - O debate inter-religioso pode nos ajudar a se aproximar mais de Deus? Como ele entra neste debate?

Marcelo Fernandes de Aquino - A desconstrução da metafísica, pelo pensamento pós-metafísico, deu grande destaque ao tema da diferença e do pluralismo, e isso impacta o cristianismo na sua pretensão de ser a tradução da revelação e da salvação de Deus num evento irrepetível que é a existência histórica de Jesus de Nazaré. O cristianismo, nos primeiros séculos, assimilou muito da teologia platônica. Sob a influência da ontologia platônica das ideias separadas, elaborou a teologia cristã do Verbo. A fé cristã confessa Jesus de Nazaré como o Filho amado. É radicalmente trinitária. Nos dias de hoje, como dar conta dessa pretensão que a fé cristã faz com o valor da diferença e a não absolutidade de uma experiência particular? Penso que um dos grandes imperativos da teologia cristã é refazer a Teologia do Verbo. Como a Teologia cristã do Verbo é por um lado fiel a isso que é normativo na fé cristã, Jesus de Nazaré é o Filho amado, nele contemplamos o Verbo eterno, e as várias experiências que humanos concretos em culturas diferenciadas vão fazendo do mistério absoluto que nós adoramos como Deus. Esses são os grandes desafios que temos pela frente. Confio que vamos nos deixar levar pelo espírito de Deus e saber traduzir, na cultura pós-metafísica, a nossa experiência. Pessoalmente, creio que chegaremos a dar o passo de volta à metafísica, no sentido de uma metafísica que dê conta do próprio momento de desconstrução desta idade pós-metafísica.

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