Edição 306 | 31 Agosto 2009

Bombas cluster: a posição brasileira

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Patricia Fachin

O conceito de segurança precisa ser revisto. É preciso focar “na segurança humana que conceba a soberania como a responsabilidade dos estados de protegerem os cidadãos, e não suas armas”

As bombas cluster também conhecidas como bombas cacho “podem funcionar como minas terrestres”, escreve Gustavo Oliveira Vieira, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Isso porque, elas se abrem e se espalham antes de tocar o solo, difundindo o impacto das explosões. Ao se abrirem no ar, explica, “projetam dezenas ou centenas de submunições que passam a funcionar ao modo de granadas, que por sua vez deverão explodir ao tocaram o solo”. Contrário à fabricação das bombas cluster, o professor frisa que as taxas de falha são altíssimas. Como exemplo, cita os quatro milhões de submunições jogadas por Israel no sul do Líbano, em 2006. Segundo ele, estimativas mostram que aproximadamente um bilhão falhou.

O Brasil é produtor, armazenador e exportador dessas armas e essa é uma das justificativas para que o país não apoie negociações internacionais de combate a esse modelo de armamento. Na opinião de Vieira, o impedimento brasileiro está relacionado ao comércio internacional. “Foi liberada, ano passado, uma exportação dessas armas com mais de meio bilhão de reais”, informa. Segundo o pesquisador, “a delegação brasileira inclusive no ano passado chamou um diretor da indústria fabricante destas armas para a negociação da Convenção sobre Certas Armas Convencionais CCAC – dando mais um indício que a preocupação primordial pode ser comercial e econômica”.

Para ele, iniciativas como essa representam uma afronta aos princípios constitucionais que devem guiar a política externa brasileira. “A Constituição brasileira no seu artigo 4º estabelece como princípios a defesa da paz, a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Esses princípios não são opcionais, possíveis de aderir por conveniência, eles deveriam vincular cada uma das decisões do Brasil nas relações internacionais”, complementa.

Gustavo Oliveira Vieira é graduado e mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Além de docente na Unisinos, atualmente, também é professor do Centro Universitário Franciscano – Unifra. Dedicado a estudos relacionados ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, Vieira apresentará a palestra Paz por meio do Direito Internacional: a Convenção de Oslo sobre bombas cluster e a (crítica) posição brasileira, na quarta-feira, 02-09-2009, das 9h às 11h, no Auditório Maurício Berni, na Unisinos. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as características e os perigos causados pelas bombas cluster? Elas podem ser comparadas a minas terrestres?

Gustavo Oliveira Vieira - As bombas cluster – também chamadas de submunições cluster, bombas cacho ou de fragmentação – são artefatos bélicos jogados do ar ou do solo por meio de um contêiner, e, ao se abrirem no ar, projetam dezenas ou centenas de submunições que passam a funcionar ao modo de granadas, que por sua vez deverão explodir ao tocarem o solo ou o alvo. O problema é que as taxas de falha são altíssimas (dos quatro milhões de submunições jogadas por Israel no sul do Líbano em 2006, estima-se que um milhão falhou), a imprecisão é grande (varia conforme o tipo de solo, inclinação, vento, pressão, manutenção do artefato etc.) e o poder explosivo é muito grande, muitas com potencial para penetrar blindados.

Dessa forma, podem funcionar como minas terrestres, gerando um efeito indiscriminado, durante e após os conflitos, acionadas pela própria vítima. Mais do que isso, o uso das armas erradas gera problemas ambientais e atraso ou impedimento do desenvolvimento em países afetados. O problema é que os Estados armazenam bilhões destas submunições, e não havia, até a Convenção de Oslo, aberta para assinaturas em dezembro último, um instrumento legal vinculante que proibisse este armamento. 

IHU On-Line - O que significa a posição da diplomacia e dos militares brasileiros que se demonstram contrários a negociações de acordos sobre esse armamento e, em especial, a rejeição brasileira ao Tratado de Oslo? Há justificativas para tal decisão?

Gustavo Oliveira Vieira - O Brasil é produtor, armazenador e exportador deste tipo de arma. Parece extremamente lógico que os militares não queiram abrir mão de nenhuma arma que possa ter utilidade militar, ainda que marginal. Mas a decisão é do Itamaraty. E a justificativa variou.

Primeiro o Ministério das Relações Exteriores (MRE) questionou a legitimidade do processo de Oslo de negociação, disse que o único fórum correto seria aquele da Convenção sobre Certas Armas Convencionais (CCAC). No entanto, isso jamais impediu o Brasil de ser parte de tratados internacionais. Tanto as Convenções de Genebra, que o Brasil promove, como o Tratado de Ottawa sobre erradicação das minas terrestres foram negociados fora da Organização das Nações Unidas (ONU) – embora conte com todo apoio da organização, do próprio Secretário-Geral, das suas agências -, e depois de fechados retornam à ONU para operacionalização. Ora, as negociações no âmbito da CCAC só ocorrem por consenso – e consenso com os Estados membros da CCAC não tem condições de enfrentar problemas humanitários. Se um se opõe, não sai, ou fragiliza o texto – foi o que ocorreu com o tema das minas. Ademais, é bem menos universal, pelo número de Estados-partes  que a Convenção de Ottawa, por exemplo, que conta hoje com 156 Estados, enquanto a CCAC não chegou a 100. Hoje, a Convenção de Oslo está depositada na ONU, com 17 países que a ratificaram. Quando chegar a 30 estados que tenham depositado o instrumento de ratificação, ela entrará em vigor. 

Depois do texto do tratado de Oslo, concluído nas negociações, o MRE o rechaçou por considerar o tratado de Oslo discriminatório, pois não considera bomba cluster quando combinar sistemas de segurança e precisão do tipo guiadas por sensores, autodestruição eletrônica, autodesativação, com menos de dez submunições e mais de 4 quilos cada submunição. Nós, como campanha internacional pela erradicação das bombas clusters (CMC), como sociedade civil organizada participando do processo, buscamos um tratado sem qualquer exceção – que erradicasse todas. O Brasil não quis participar das negociações. De toda forma, realmente essa exceção exige mecanismos importantes para amenizar o problema humanitário e banir todas as submunições clusters até hoje utilizados. 

O que não é dito pelo Itamaraty é a questão do comércio internacional. Foi liberada, ano passado, uma exportação dessas armas com mais de meio bilhão de reais. Talvez a causa maior. O que aponta à direção de um pragmatismo amoral da política externa brasileira. A delegação brasileira, inclusive no ano passado, chamou um diretor da indústria fabricante destas armas para a negociação da CCAC – dando mais um indício que a preocupação primordial pode ser comercial e econômica.

A meu ver, isso representa uma afronta aos princípios constitucionais que devem guiar a política externa do Brasil. A Constituição brasileira, no seu artigo 4º, estabelece como princípios a defesa da paz, a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Esses princípios não são opcionais, possíveis de aderir por conveniência, eles deveriam vincular cada uma das decisões do Brasil nas relações internacionais.

IHU On-Line - Os militares brasileiros alegam que não utilizam essas bombas. O que justifica, então, tanta resistência em banir a fabricação desses armamentos?

Gustavo Oliveira Vieira - Os militares brasileiros não vão à guerra para defender o Brasil há mais de 60 anos. Por isso também não usam essas armas. E está certo, faz parte da nova lógica internacional de cooperação, militares preparados para apoiar a construção da soberania na Amazônia, missões de paz, crises internas, enfim. Ainda assim, na lógica militar não faz sentido abrir mão de qualquer arma. Mas quem decide não pode utilizar uma lógica militar, mas olhar o todo. O Brasil decidir isso é considerar que todos podem agir também dessa maneira. E como líder mundial, o Brasil oferece um exemplo que puxa outros países consigo. É uma questão de política interna, voltada para o mundo. Será uma política belicosa ou pacifista?

IHU On-Line - Militares brasileiros dizem ainda que as munições cluster são mais eficazes que outros armamentos e, além disso, são acessíveis a países com forças relativamente menores. Considerando posições como essa, o senhor acredita que é possível chegar a um consenso internacional?

Gustavo Oliveira Vieira - Sendo realista, inexiste solução tudo ou nada. Uma solução única para todos os males mundiais. Se pensarmos assim, nunca vamos dar um passo à frente no sentido da paz ou dos direitos humanos. É preciso reduzir a complexidade e avançar passo a passo. Esse é um passo concreto que podemos avançar – acabar com as bombas cluster. Se não o mundo, grande parte dos países do mundo. O que, por sua vez, tem a capacidade de gerar um estigma que mesmo os países que não fazem parte desta Convenção de Oslo poderão se ver impedidos de usar tal armamento.

Consenso absoluto é infelizmente impossível. Veja o caso das minas terrestres antipessoal. Dezenas de milhões de minas plantadas no planeta. Também são armas de pobres, como se diz, matando pessoas mais pobres ainda em quase cem países. E alguma utilidade militar as minas teriam. Agora, a produção caiu de 50 países na década de 90 para menos de dez, dois países apenas usaram no último ano, apontando uma redução substancial. Mas quem mais tem utilizado são as guerrilhas – os atores armados não-estatais. O trabalho está dando muito resultado. Dezenas de milhões de minas foram destruídas para implementação do Tratado de Ottawa – veja o sentido preventivo, parou a produção, destruíram estoques. O futuro está sendo preservado, e isso é difícil de contabilizar. Se o consenso é impossível, um passo a frente de cada vez é, sem dúvida, necessário.

IHU On-Line - O Brasil tem uma forte campanha pelo desarmamento e, ao mesmo tempo, se opõem ao banimento das bombas cluster. Isso é uma contradição?

Gustavo Oliveira Vieira - A meu ver, sim. O Brasil e o MRE têm posições exemplares em muitos aspectos. Veja o caso do desarmamento nuclear. O Brasil, a partir da embaixada para desarmamento em Genebra, com o Embaixador Soares e o Conselheiro Julio Laranjeira, está tentando um programa de ação para o desarme nuclear. Algo fundamental para a própria espécie humana. No campo dos direitos humanos o Brasil é parte da grande maioria de instrumentos internacionais, submeteu-se à Corte Interamericana de Direitos Humanos (coerente com o que diz a Constituição e inclusive o artigo 7º da ADCT que indicava que o Brasil propugnaria por um tribunal internacional de direitos humanos). Falta esse passo agora, das bombas cluster.

Ainda assim, o Brasil tem positivamente tentando negociar um protocolo no âmbito da CCAC para regular bombas cluster. Isso não resolverá o problema humanitário, e por isso não é suficiente, mas é muito mais do que nada. Será um passo positivo, se sair.

IHU On-Line - Como percebe a proposta de lei do deputado Fernando Gabeira para o fim da fabricação destas bombas no Brasil? Esse projeto demonstra que o Brasil está disposto a rever sua posição quanto à produção das bombas cluster?

Gustavo Oliveira Vieira - O deputado Fernando Gabeira é uma voz lúcida, mas, infelizmente, minoritária no Congresso Nacional. Há milhares de projetos de lei. A proposta dele tem muito a ver com a necessidade de se pautar o tema no Congresso. É preciso que se debata o tema, se leve à esfera pública.  

IHU On-Line - A que o senhor atribui o avanço da corrida armamentista na América Latina e no mundo de modo geral?

Gustavo Oliveira Vieira - À ausência de um projeto civilizatório global. Os Estados gastaram ano passado 1,4 trilhões de dólares em defesa e armas. Sendo que o mundo poderia acabar com a fome com pouco mais de 60 bilhões. A sociedade internacional demonstra com isso uma incoerência trágica. Sinal que a fome e a morte de milhões de pessoas são muito mais um problema de vontade política do que de falta de recursos.

Sobre o armamentismo, cada região e cada país têm um contexto interno e internacional muito peculiar. No caso do Brasil, o aumento do orçamento militar tem, em grande parte, a ver com o sucateamento dos instrumentos e salários. É preciso meios, mas, no século XXI, penso que conhecimento é tão ou mais importante para se garantir soberania quanto às armas. Um exemplo é o caso da Amazônia. É óbvio que nosso conhecimento e, consequentemente, soberania sobre a Amazônia é ainda precário. Culpa da falta de armas? Não, certamente que não, mas da política interna e da falta de conhecimento que temos da região, das espécies e até das pessoas que moram lá.

A concepção de soberania para o século XXI mudou. Não pode mais ser a westfaliana do século XVII. Será que as armas não têm hoje uma importância mais econômica que de segurança, efetivamente? Senão, quais seriam os inimigos do Brasil?

O próprio conceito de segurança precisa ser revisitado. Da segurança nacional, de meados do século XX, é preciso se focar hoje na segurança humana que conceba a soberania como a responsabilidade dos Estados de protegerem os cidadãos, e não suas armas.
 
IHU On-Line - Como construir a paz por meio do Direito Internacional? Isso é possível, considerando que os países apresentam interesses diferentes?

Gustavo Oliveira Vieira - As coletividades sempre terão que apontar interesses e culturas diferentes. Aliás, faz parte do direito internacional e dos direitos humanos o respeito e a própria manutenção das diferentes culturas, assim como na Carta da ONU a autodeterminação dos povos. Isso é fundamental para uma construção democrática. Ainda que a democracia no sistema internacional seja um dos seus grandes déficits.

Nesse sentido, o conflito no direito internacional precisa ser encaminhado pelas vias de solução pacíficas. A guerra é uma das formas de solução de controvérsias. Para atender a essa demanda, muitos mecanismos de solução pacífica de controvérsias são sistematicamente criados exatamente para fazer com que se resolvam os conflitos, as diferenças, antes que se tornem expressivas a ponto de chegar ao uso da força.

Portanto, o papel do direito internacional para a construção da paz percorre(rá) necessariamente a domesticação da força dos Estados, pelo controle de armas, pelo desarmamento,sistemas de segurança coletiva, mecanismos de cooperação internacional mais densos, construção da confiança entre os povos, criação de jurisdições internacionais, órgãos interestatais para tomadas de decisões com força cogente etc. A União Européia é um exemplo disso tudo – basta ver o que são os 50 anos antes da União Européia (EU) ser criada e os 50 posteriores.

A construção da paz por meio do direito e por meio do direito internacional é uma resposta a qual muitos autores renomados se debruçam (desde Kant a Kelsen,  Bobbio,  Höffe, Habermas,  entre muitos outros). Os Estados precisam passar a definir suas políticas internas e internacionais tendo como referência a construção de uma sociedade mundial.

IHU On-Line – Qual é o papel da universidade na construção dos direitos humanos?

Gustavo Oliveira Vieira - Penso que a Universidade, como espaço de conhecimento, tem papel fundamental para esta construção. Há pouco mais de 50 anos foi criado o campo de estudos chamado de “estudos de paz”, ainda pouco explorado e difundido no Brasil. Se há um tempo a Universidade fornecia uma resistência marxista, na guerra das ideologias, penso que hoje a ideia da paz e dos direitos humanos representam categorias capazes de apontar um potencial emancipatório adequado à sociedade contemporânea.

Na Unifra criamos um Grupo de Estudos e Ações Pacifistas onde se estuda o tema, e se age em prol destes objetivos. Hoje, estamos focados no tema das minas e munições cluster. Mas podemos ir além. Quem tiver interesse pode acessar o site em português www.porumbrasilhumanitario.org. E todos estão convidados a cooperar. Também tem um site em inglês da ONG internacional ICBL(www.icbl.org), que, com o Tratado de Ottawa aberto recebeu o prêmio Nobel da Paz de 1997,  e a  CMC (www.stopclustermunitions.org). Quando a ICBL recebeu o prêmio Nobel, a nossa coordenadora da época, Jody Williams, no seu discurso, disse algo que considero fundamental sobre o papel da sociedade civil: “todos juntos somos uma superpotência!”

Leia mais...

>> As Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) publicou uma série de matérias sobre as bombas cluster e a não adesão do Brasil aos acordos propostos até o momento. Confira.

• Bomba ‘cluster’, brasileira, usada em ataque gera polêmica internacional, publicada no dia 4-03-2008;

• Brasil vota contra o “mais importante tratado de desarmamento”, publicado no dia 11-06-2008;

• “Nunca mais bombas em ‘cluster’. Mas os países produtores, entre os quais o Brasil, não concordam”, publicada em 11-06-2008;

• Desarmamento: o Brasil dá um passo para trás. Entrevista especial com Daniel Mack, publicada em 05-07-2008;

• Brasil rejeita banir bombas de cacho, publicada em 04-12-2008;

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