Edição 306 | 31 Agosto 2009

A seleção sexual darwiniana: espinho na cauda do pavão

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Aldo Mellender de Araújo utiliza metáfora de historiadora da biologia para explicar mecanismo de seleção sexual darwiniano, muito mais brando do que a seleção natural, que envolve “reprodução e morte/sobrevivência”

“A seleção natural envolve reprodução e morte/sobrevivência. A seleção sexual é mais branda neste sentido, envolvendo apenas maior ou menor número de descendentes”. A explicação é do pesquisador Aldo Mellender de Araújo, na entrevista exclusiva que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Usando a metáfora do “espinho na cauda do pavão”, cunhado por uma historiadora da biologia, ele explica que certas estruturas físicas dos animais poderiam ser explicadas por outro tipo de função. “Esta função poderia ser aumentar a atratividade por parte das fêmeas, ou, como nos cascudos, subjugar machos rivais, em confrontos por disputa de fêmeas”, acentua. O mecanismo de seleção sexual seria, contudo, bem mais brando, pois não envolvia morte.

Mellender é graduado em História Natural e doutor em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com a tese A estrutura populacional e malformações congênitas da população de Porto Alegre. É pós-doutor pela Universidade de Liverpool, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, e Universidade Cornell, nos Estados Unidos. É professor e pesquisador do Departamento de Genética, no Instituto de Biociências da UFRGS. Escreveu dezenas de artigos técnicos. Em 11 de setembro, proferirá  no IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin a conferência Um espinho na cauda do pavão: reflexões sobre a teoria da seleção sexual de Darwin.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as principais proposições da teoria da seleção sexual de Darwin?

Aldo Mellender de Araújo - Darwin observou que além das diferenças sexuais óbvias entre machos e fêmeas de diferentes espécies, ligadas ao aparelho reprodutor, havia outras que não estavam relacionados à reprodução diretamente, tais como as penas dos machos de muitas aves, que apresentam coloração intensa (a cauda do pavão, por exemplo). Em insetos, como alguns cascudos, por exemplo, os machos apresentam estruturas na cabeça, tais como projeções espinhosas, enormes mandíbulas em outros casos, que não tinham uma relação direta com o ato da reprodução. Ele imaginou que estes "ornamentos" poderiam ser explicados por algum outro tipo de função. Esta função poderia ser aumentar a atratividade por parte das fêmeas, ou, como nos cascudos, subjugar machos rivais, em confrontos por disputa de fêmeas. Então, a evolução destas estruturas, ou cores, ou comportamento muito diferente entre os sexos, ele imaginou que poderiam ser explicados por um outro mecanismo, análogo ao da seleção natural, mas sem envolver morte; ele chamou a este processo, seleção sexual.
 
IHU On-Line - Por que os aspectos sobrevivência e reprodução estavam separados no processo de seleção natural?

Aldo Mellender de Araújo - O processo de seleção natural foi definido por Darwin como a sobrevivência das variações que são vantajosas e a eliminação das variações desvantajosas. Como isso seria feito? Ao reproduzirem, os indivíduos portadores destas variações vantajosas, teriam um maior número de descendentes (que por sua vez teriam o mesmo tipo de variação) do que aqueles que possuem variações desvantajosas. Aqui Darwin teve que imaginar que estas variações seriam herdáveis, caso contrário o mecanismo da seleção natural não funcionaria. Desde os anos 1930 do século XX, a seleção natural passou a estar associada a dois componentes: a viabilidade (sobrevivência) e a fertilidade (reprodução diferencial). Assim, ao contrário do que a pergunta enfatiza, sobrevivência e reprodução NÃO estão separadas.
 
IHU On-Line - Quais são as diferenças entre seleção sexual e seleção natural?

Aldo Mellender de Araújo - A seleção natural envolve reprodução e morte/sobrevivência; a seleção sexual é mais branda neste sentido, envolvendo apenas maior ou menor número de descendentes. Um pavão com uma cauda muito bonita, com desenhos bem delineados e cores vivas, tem muito mais chance de ter um número grande de filhotes, do que um macho que não tenha esta “beleza” na estrutura da cauda. Este último terá filhos, provavelmente, mas em menor número. Isso não significa que as fêmeas de pavão tenham um “senso” estético. Simplesmente a escolha que elas fazem deste padrão bonito de cauda do macho está associada a uma menor infestação de ectoparasitos no macho, a uma frequência menor de infecções bacterianas, e assim por diante. Logo, estes machos são os mais saudáveis; eles terão mais descendentes e seus filhos machos provavelmente exibirão caudas similares, enquanto que as filhas deverão ter o mesmo gene (ou genes) de escolha tal como a mãe teve. 
 
IHU On-Line - O que quer dizer a metáfora “um espinho na cauda do pavão”? O que isso revela sobre a teoria da seleção sexual?

Aldo Mellender de Araújo - O “espinho na cauda do pavão” foi a metáfora empregada por uma historiadora da biologia, ao referir-se à evolução de ornamentos como a cauda do pavão ou dos machos de cascudos, para ficar apenas com estes dois exemplos. Darwin já havia se referido, em cartas, que o espetáculo da cauda do pavão o fazia ficar doente. Uma estrutura como o olho, com toda a sua estrutura fina de ajuste de foco, por exemplo, o perturbava também. Só que no caso do olho, ele o via como um órgão altamente vantajoso; mas e a cauda do pavão? Esta parecia antes uma extravagância, sem uma função aparente. Seria até desvantajosa para o seu possuidor, pois sob a perseguição de um predador, dificultaria a fuga. Portanto, ele utilizou o conceito de seleção sexual para explicar a existência de estruturas sem função aparente, mas que poderiam servir como atração sexual. Em algumas espécies de aranha da região do município de Osório, Maquiné e outros do nosso Estado, o macho captura uma presa (um inseto, em geral), o enrola com fios de seda e sai à procura de uma fêmea. Ela “oferece” este “presente nupcial” às fêmeas, como uma condição para a cópula. Se não tiver “presente”, não tem cópula! Este comportamento (muito raro em aranhas, mas comum entre insetos) evoluiu por seleção sexual.
 
IHU On-Line - Alguns críticos argumentam que as ideias de Darwin sobre a seleção sexual foram fortemente influenciadas pela cultura da Inglaterra vitoriana, refletindo um viés chauvinista. O que há de verdadeiro nessa afirmação?

Aldo Mellender de Araújo - De fato, alguns autores já pensaram nesta possibilidade, não apenas em relação à teoria da seleção sexual, mas em relação a toda a teoria darwiniana da evolução. A sociedade vitoriana era uma sociedade capitalista emergente, onde a competição era importante e os homens eram os protagonistas desta competição. Darwin utilizou, muitas vezes, explicações em função de “custos” e “benefícios”, o que foi explicitado pela biologia evolutiva do século XX, constituindo-se em importante forma de explicação evolutiva. Um filósofo brasileiro vai mais longe, propondo que, desde a revolução científica do século XVII, a ciência se tornou machista; o filósofo em questão é Hilton Japiassú,  que publicou um interessante ensaio com o título de O projeto masculino-machista da ciência moderna  (capítulo do livro editado por Luiz Carlos Soares, 2000 - Da Revolução Científica à Big (Business) Science. Editora Hucitec em colaboração com a Editora da Universidade Federal Fluminense).
 
IHU On-Line - Qual é a atualidade da obra fundamental de Darwin 150 anos após sua publicação?

Aldo Mellender de Araújo - Darwin continua atual como antes. Quase todos os grandes problemas evolutivos da atualidade já foram mencionados por ele. A leitura de A origem das Espécies é fundamental para qualquer evolucionista contemporâneo. Outras obras de Darwin que constituem as bases de abordagens contemporâneas, são: A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, que é uma aula sobre diferentes comportamentos e o seu significado evolutivo, sendo um ponto de partida para a Psicologia Evolucionista; A Origem do Homem e a Seleção Sexual, obra de referência sobre evolução humana em uma época em que pouquíssimos fósseis de hominídeos estavam disponíveis; nesta obra ele previu que a origem dos humanos teria sido na África, o que veio a ser confirmado plenamente no século XX. Além disso, mais da metade desta obra aborda o tema da seleção sexual em todos os grupos de animais, incluindo humanos.
 
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Aldo Mellender de Araújo - Darwin tem sido muito reverenciado justamente neste ano em que completaria 200 anos de idade; a sua obra mais conhecida, A Origem das Espécies, fará, em novembro, 150 anos. Todavia, há um outro autor contemporâneo dele e cuja vida se estendeu até a primeira década do século XX, que foi também muito importante, não só porque chegou independentemente ao conceito de seleção natural, que foi Alfred Russel Wallace . Este autor reconheceu que Darwin tinha a prioridade em relação à ideia de seleção natural, mas comparando os textos de ambos, que foram lidos perante a Sociedade Lineana de Londres, percebe-se que a narrativa de Wallace é bem mais compreensível do que a de Darwin. É verdade que Darwin teve que fazer, às pressas, um resumo de toda a sua teoria e talvez, devido a isso, suas ideias pareçam, às vezes, menos claras do que as de Wallace. Este autor também publicou livros importantíssimos; no entanto ele é menos conhecido do que Darwin; um desses livros teve por título Darwinism.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição