Edição 304 | 17 Agosto 2009

“Vargas inverteu o jogo do poder quando se matou”

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Patricia Fachin e Greyce Vargas

O legado varguista se conserva principalmente em assuntos que remetem ao campo do trabalho e às questões sindicais, assegura a historiadora Ângela Maria de Castro Gomes

A próxima segunda-feira, 24 de agosto, marca os 55 anos da morte do ex-presidente do Brasil, Getúlio Vargas. Em 1954, ele se consagrou na história política brasileira com um tiro no coração, que veio acompanhado de uma carta-testamento, um dos documentos históricos mais conhecidos no país. Nesse dia, a Era Vargas “acabou”, mas o legado varguista permaneceu ao longo dos anos, gerando inclusive duas mudanças importantes no que diz respeito à questão da organização sindical, conforme a historiadora Ângela Maria de Castro Gomes, em entrevista concedida, por telefone, à IHU On-Line. Uma delas, complementa, é a liberdade das organizações sindicais em relação ao governo; a outra é marcada pelo surgimento de instituições de cúpula independentes da estrutura de organização via profissões.

Especialista em história do Brasil e pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Ângela Maria analisa a trajetória do governo getulista e acentua que, embora muitas de suas iniciativas permaneçam, as políticas desempenhadas por Lula não representam uma continuidade desse modelo. Ela explica que as transformações do presente são decorrentes de um diálogo com o passado, o que não é a conservação de uma linha política. “O passado e as tradições se materializam em instituições, em valores, comportamentos. Justamente por isso o passado não é “algo” que está “atrás” de nós, e sim junto conosco; ele faz parte do presente, das formas de pensar da atualidade, explica. E reitera: “Isso não significa uma continuação simplista, uma permanência, e sim uma forma de se transformar que é muito mais frequente na história do Brasil e do mundo”.

Ângela Maria de Castro Gomes é graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre e doutora em Ciência Política pelo IUPERJ da Sociedade Brasileira de Instrução (SBI). Sua tese leva o nome de A invenção do trabalhismo (1987). Atualmente, é professora titular de História do Brasil da UFF e pesquisadora e professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. De sua vasta produção bibliográfica, citamos Vargas e a crise dos anos 50 (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994); História e historiadores: a política cultural do Estado Novo (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996); A República no Brasil (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002) e Ministério do Trabalho: uma história vivida e contada (Rio de Janeiro: CPDOC, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Passados pouco mais de 50 anos da morte de Getúlio Vargas, quais foram as principais marcas deixadas pela Era Vargas?

Ângela Maria de Castro Gomes – A Era Vargas marcou um modelo de presidencialismo no Brasil, no qual o Presidente da República no Brasil passou a desempenhar um papel muito especial, sendo identificado pela população de uma maneira bastante fácil e direta. A partir do governo de Getúlio, foi construída uma prática de comunicação e a “possibilidade de aproximação” da população com o presidente. Isso ocorre não só no período do Estado Novo, mas, e talvez com implicações mais importantes para a população, no período do segundo governo, quando ele foi eleito.

Outro ponto importante é o fato de Vargas ter sido um Presidente da República ligado às políticas sociais (educação, saúde etc) e à área do trabalho, em especial. Ele era reconhecido como alguém que interpelava a população através do bordão, trabalhadores do Brasil, mas que também implementava um conjunto importante de leis na área da política social do trabalho, que permanece até hoje, como um legado importante desse período. Esses são os pontos mais fortes que eu destacaria, pensando na Era Vargas como um todo. 

IHU On-Line - Vargas era de fato refratário ao capital internacional ou se trata de um mito que se criou ao longo da história?

Ângela Maria de Castro Gomes – Digamos que nem tanto e nem tampouco. É importante observar que, no primeiro período da Era Vargas, estávamos vivendo num contexto internacional, no qual emergiram muitos nacionalismos. Ao mesmo tempo, esse foi um período em que a Europa foi conturbada pela Segunda Guerra Mundial. Temos de entender que essa questão de nacionalismo, inclusive pensando em termos de parcerias econômicas, são impactadas pelo momento histórico: inicialmente pela crise de 1929 e depois pelo contexto que precedeu a Segunda Guerra Mundial. Então, o discurso nacionalista, internacionalmente, era algo que fazia extremo sentido nesse período.

Desde o Estado Novo e também durante o segundo governo Vargas, há um diálogo maior entre Brasil e EUA, embora, após 1945, já sob o clima da Guerra Fria. Com Juscelino Kubitschek, desenvolveram-se mais as parcerias internacionais, a vinda de capitais internacionais; mas aí a situação política e econômica é radicalmente distinta da dos anos 1940. Então, é preciso observar até que ponto um discurso mais nacionalista está articulado a um contexto de dificuldades internacionais, inclusive de estabelecimento de políticas bilaterais. Os anos 50 favoreceram maiores diálogos, mas também trouxeram novas tensões, em especial com os EUA. 

A ideia de Vargas ser refratário ao capital internacional não é um mito, mas temos de entender o momento em que sua política está se afirmando e sendo compartilhadas. Elas fazem sentido, sobretudo nos anos 30 e 40, lembrando que, com o início da guerra, muda inteiramente o alinhamento do Brasil com os EUA, bastando lembrar das bases do nordeste, de Volta Redonda etc.

IHU On-Line - Como a senhora explica o suicídio do ex-presidente?

Ângela Maria de Castro Gomes – A morte de Vargas envolve, sem dúvida, um cálculo político. Não é um suicídio impensado, muito pelo contrário. Como é sabido, Vargas, em outros momentos de sua vida, já havia imaginado a morte como alternativa política. Evidentemente, esse cálculo tem um custo altíssimo e definitivo, mas ele o bancou em uma situação entendida como limite. O ex-presidente era um homem de longa carreira política, que veio do período da Primeira República e atravessou, portanto, toda a primeira metade do século XX.

Em sua primeira deposição (1945), ele saiu do poder pela força de uma mudança política internacional e igualmente por uma articulação de forças entre civis e militares no Brasil. Mas saiu de “cabeça em pé” e até com sua popularidade em alta. O Estado Novo caiu, mas Getúlio não deixou a presidência desprestigiado e, principalmente para ele mesmo, não saiu com seu nome maculado.

Retirou-se porque se findaram as condições para a sua manutenção no governo. Além do mais, a coalizão antigetulista foi suficientemente forte, temendo sua continuidade no poder. Em 1954, a situação foi diferente. Ele não perderia somente o lugar de Presidente da República, mas também seu próprio nome, o valor de sua carreira e de suas políticas desenvolvidas ao longo do tempo. Vargas não queria sair do cargo dessa forma e inverteu o jogo quando se matou. Para ele, a morte era um sacrifício suficientemente grande para produzir uma inflexão no equilíbrio de forças políticas daquele momento. Isso aconteceu, mas ele não estava vivo para ver. Os que ficaram avaliaram até que ponto sua ação teve impactos no sentido de transformar o momento político, mas ele não, obviamente. É como ele mesmo escreve: “Saio da vida para entrar na história”. A vida era o preço para ele permanecer e se engrandecer na história.

IHU On-Line - A Era Vargas iniciou no Brasil o que se chamou de ‘modernização conservadora’?

Ângela Maria de Castro Gomes – Essa categoria tem sido usada recorrentemente desde os anos 70. A modernização conservadora representa um processo de modernização que se entende como não produzindo grandes rupturas. Ou seja, um processo que está acoplado a permanências de características no que diz respeito a aspectos fundamentais da economia, da sociedade etc.

Mas é preciso pensar que processos de modernização são, geralmente, muito mais de “modernização conservadora”, do que de “modernização revolucionária”. São muito raros os processos que produzem grandes rupturas; e, mesmo nesses casos, elas não são tão absolutas/radicais, como já se acreditou. Nunca se começa nada do zero. O passado e as tradições comuns de um grupo social se materializam em instituições, em valores, em comportamentos. Justamente por isso, esse passado faz parte do presente, faz parte das formas de se lidar com o presente e de se projetar o futuro. Isso não significa que há uma continuação simplista, uma permanência em linha direta entre passado e presente. O que há são formas de se transformar que precisam sempre dialogar com o que existe em termos materiais e de crenças; é muito mais isso que ocorre na história e na história do Brasil.  

Então, essa ideia de que é possível fazer transformações, modernizações sem vínculos com o passado, sem conservar sempre alguns aspectos, é insustentável teórica e empiricamente. Muitos estudos mostram que não se pode romper diretamente com tudo. Por isso, esse conceito de modernização conservadora não é ruim, mas também não traduz um processo incomum, não é algo que ocorre só no Brasil (visto muitas vezes como indicando uma insuficiência/falta), muito ao contrário.

A historiografia dos anos 90 e da primeira década do século XXI entende que processos de modernização são quase sempre “conservadores”. Mesmo aqueles que não são considerados classicamente “conservadores”, não são tão radicais assim e também dialogam com o “passado”. Até a França revolucionária prestou seus tributos à força das tradições do Antigo Regime. Então, devemos olhar esse conceito, entendendo o momento em que ele foi conformado, suas grandes contribuições e também sua trajetória, em função das mudanças da historiografia das últimas décadas.

IHU On-Line - O governo Lula representa a continuidade de um modelo varguista?

Ângela Maria de Castro Gomes – Não gosto de pensar dessa maneira. O mundo mudou muito nos últimos anos, considerando o processo de globalização, os contextos políticos nacionais e internacionais, inteiramente diferentes. O governo Lula não poderia continuar, mesmo que quisesse, a implementar o modelo de Vargas, que data dos anos 1930.

Eu já mencionei que as mudanças nunca se fazem sem um diálogo com o passado. Então, também imaginar a possibilidade de governos que não dialogam com as políticas que os precederam, que conformaram instituições existentes, é impossível. O governo Lula não é um coelhinho saído da cartola; ele tem a ver com o passado, com a história política do Brasil. O segundo mandato do presidente Lula está interligado com o primeiro, que está relacionado com o governo anterior de FHC, não porque esteja continuando este governo, mas, por exemplo, porque existem políticas que devem ser do Estado e não de governos. Certamente há sempre linhas de continuidade e descontinuidade, mas isso vai depender das condições de cada governo: das alianças partidárias, da distribuição de forças no legislativo, do contexto político e econômico internacional etc. Há escolhas e há constrangimentos.

Da mesma forma, não se pode pensar no primeiro governo Vargas sem considerar a crise de 29 e a segunda Guerra Mundial; analisar os anos 50 sem considerar a Guerra Fria; não é possível se debruçar sobre o governo Lula sem considerar a globalização, a atual crise econômica internacional etc. É mais proveitoso trabalhar, refletindo que governos são sempre tributários de algo que lhes precedeu. Não porque eles repitam ou continuem mecanicamente nada, mas porque têm que se haver com as referências e diretrizes existentes, mudando-as mais ou menos, conforme projetos e possibilidades.

Petrobras

A Petrobras, por exemplo, não é a mesma da década de 70. Ela mudou muito, mas continua sendo uma empresa pública de grande valor simbólico. A Petrobras mexe com o imaginário político nacionalista dos brasileiros de forma muito forte ainda hoje. Ela se transformou em aspectos radicais, mas continua um símbolo e, nesse sentido, mantém um legado que vem de Vargas. FHC falou, no seu discurso de posse, que a Era Vargas acabou. Em um sentido preciso, de fato, ela terminou quando Vargas se matou. Mas, do ponto de vista de seu legado não há como se decretar que ele acabou, porque não há controles desse tipo. Isso requer muito tempo e mudanças.

IHU On-Line - Quais são as continuidades e principais releituras, hoje, da Era Vargas?

Ângela Maria de Castro Gomes – As continuidades são fáceis de detectar. Vamos trabalhar com a ideia de um legado, ou seja, como alguma coisa que fica justamente porque está sendo permanentemente mudada. Isso pode parecer um paradoxo, mas é justamente porque os legados deixados por um governo, um período etc. sofrem mudanças é que permanecem. Nos assuntos que remetem ao campo do trabalho, e às questões sindicais, o legado varguista permaneceu, ou seja, ele durou porque foi se transformando através do tempo.  

IHU On-Line - Era comum, nos anos 80, os cursos de formação sindical criticarem duramente o modelo de sindicalismo deixado por Vargas. Entretanto, a estrutura sindical permanece praticamente intacta. A senhora acha que o movimento sindical está revendo o significado da Era Vargas?

Ângela Maria de Castro Gomes – Penso que, ao longo do tempo, houve duas mudanças importantes nesse modelo. Uma que diz respeito à conquista da liberdade das organizações sindicais, na medida em que elas deixaram de precisar do reconhecimento do Ministério do Trabalho, ou seja, de ter a tutela de uma instituição governamental. Essa é uma grande transformação que vem basicamente dos anos 80, com a Constituição de 88. Outra ocorre quando se permite a organização de instituições de cúpula, independente da estrutura de organização via profissões. Isso também representa uma transformação muito grande no modelo corporativista varguista. Entretanto, permanecem pontos ainda bastante duros e criticados, mas, a despeito disso, estão mantidos. Talvez, o exemplo mais paradigmático disso seja o imposto sindical – que não tem esse nome –, mas que evidentemente tem a ver com o fato de que os trabalhadores ainda têm descontado um dia de seu salário, independente de serem ou não sindicalizados ou associados voluntariamente a um sindicato. Essa - não por acaso - é uma questão complicada, mas sempre na hora de se resolver, adiada. Não por acaso, envolve um volume de recursos imenso e garantido para as organizações sindicais.

IHU On-Line - O PT nasceu em oposição ao passado de Vargas, mas, ao que tudo indica, vem se aproximando desse modelo de governo. A senhora concorda? 

Ângela Maria de Castro Gomes – O PT construiu um discurso para ele mesmo e para os outros – muito compreensível, aliás –, demarcando uma identidade radicalmente diferente de tudo o que lhe antecedia. Queria se definir como um ponto zero. Esse tipo de estratégia discursiva não é incomum. Ela é um esforço para se afirmar como novo e ganhar adeptos. Mas o discurso não se afina necessariamente com um conjunto de práticas, que essa organização política teve e tem. Então, basicamente, se pensarmos o PT como um partido de trabalhadores, ele tem muito a ver com o PTB, que era um partido dos trabalhadores, mas nos anos 1940. Isso não quer dizer que eles sejam iguais ou mesmo muito parecidos. Mas também não são tão radicalmente diferentes. O PT, por exemplo, manteve boa parte das características do modelo de sindicalismo corporativo varguista.  Devemos trabalhar com esses dois lados da moeda, com o das mudanças e também das permanências, evitando comparações entre o que é diferente, o que acaba trazendo mais problemas que esclarecimentos.

Leia mais...

>> Sobre Vargas, a IHU On-Line já dedicou duas edições. Elas estão disponíveis no sítio do IHU.

• A Era Vargas em questão 1954-2004. Edição número 111, de 16-08-2004;

• Getúlio. Edição número 112, de 23-08-2004.

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