Edição 304 | 17 Agosto 2009

O “Ponto Omega” da evolução: Cristo ressuscitado

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Graziela Wolfart, Gilda Carvalho e Eliana Yunes

Para Pedro Guimarães Ferreira, Teilhard permanecerá como um “clássico” pela amplidão de sua visão, pela ambição do seu escopo

“A visão de Teilhard tem uma linguagem que procura ser científica, mas suas teses não chegam a ser de ciências naturais no seu sentido usual. A cosmovisão de Teilhard é teológica, no sentido de que é direcionada para Deus, mais ainda, cristã, no sentido de que é direcionada para Cristo. Mas também não chega a ser uma teologia em termos formais”, explica o padre jesuíta Pedro Guimarães Ferreira, professor na PUC-Rio, em entrevista concedida, por e-mail, para a IHU On-Line. Para ele, as ideias de Teilhard de Chardin marcaram de modo definitivo a Igreja do Pós-Concílio Vaticano II. E explica por quê: “Não no sentido de que a maioria das pessoas da Igreja concorde com a cosmovisão de Teilhard, mas no sentido de que a evolução das espécies passou a ser admitida tranquilamente dentro dos umbrais da Igreja e, mais importante, a Igreja passa a ter uma atitude de confiança – e não de desconfiança e muito menos de hostilidade – com relação à ciência”. E ainda sobre a possível influência de Teilhard no Concílio Vaticano II, Pedro Guimarães aponta: “Teilhard inspirou uma atitude de otimismo com relação ao que é material, um otimismo com relação ao mundo em que vivemos”.

Pedro Magalhães Guimarães Ferreira, padre jesuíta, possui graduação e mestrado em Engenharia Elétrica, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, doutorado em Engenharia de Sistemas e Computação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-doutorado pela Brown University e pela University of California - Berkeley.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Teilhard de Chardin foi um homem de qualidades bastante peculiares: como cientista pertencia ao mundo da ciência e da razão, e, também, era um homem de profunda fé, sacerdote jesuíta. Sabemos que seus trabalhos de pesquisa lhe renderam dissabores em relação à Igreja. E, em relação à Academia? Teria ela aceitado com tranquilidade o seu discurso, permeado de alusões a uma dimensão transcendente do ser humano?

Pedro Guimarães Ferreira - Há que distinguir duas atividades de Teilhard:

1. A de cientista, tendo-se tornado famoso em paleontologia e geologia: publicou mais de 150 artigos em periódicos internacionais. Era nessas ciências que ele era julgado como cientista. Nessas duas ciências, ele tinha muito boa reputação, aliás, não teria publicado tanto se seu trabalho não fosse de valor, seus artigos não teriam sido aceitos, sendo que, nessas ciências e nas ciências naturais, de modo geral, há muito pouco espaço para opções ideológicas e/ou religiosas favorecerem mais ou menos um cientista. Nestes artigos não há referência à “dimensão transcendente do ser humano”, como diz a pergunta.

2. A do criador de uma cosmovisão – e foi por essa atividade que ele se tornou famoso para o grande público e para o cristianismo, especialmente o catolicismo. Uma cosmovisão que parte da evolução no seu sentido mais amplo, a que começa com os átomos na formação das moléculas, chega ao aparecimento do “homo sapiens” e se prolonga – e aí está a novidade da sua cosmovisão – na formação da noosfera (que é a sociedade dos homens na medida em que constituem uma unidade), culminando no Ponto Omega, que é o Cristo ressuscitado.

E a Academia, como reagiu a estes textos? Na sua maioria, não reagiu, pois nem tomou conhecimento deles. A visão de Teilhard tem uma linguagem que procura ser científica, mas suas teses não chegam a ser de ciências naturais no seu sentido usual. A cosmovisão de Teilhard é teológica, no sentido de que é direcionada para Deus, mais ainda, cristã, no sentido de que é direcionada para Cristo. Mas também não chega a ser uma teologia em termos formais.

IHU On-Line - Chardin foi contemporâneo de dois dos mais terríveis acontecimentos da humanidade: as duas grandes guerras mundiais.  Qual o impacto dessa experiência em sua vida e obra? 

Pedro Guimarães Ferreira - Teilhard participou da Primeira Guerra Mundial (1914–1918) como soldado, havia sido ordenado padre havia apenas dois anos. E foi naquela guerra, uma guerra de trincheiras, um pouco lenta, que Teilhard teve a sua intuição do “Milieu Divin” (O Meio Divino), que foi o título do seu primeiro livro. Trata-se de uma tomada de consciência forte de que o mundo está “em Deus”, Deus presente não somente em todos, mas em tudo, uma doutrina clássica, mas cuja forte tomada de consciência por parte dele, foi o ponto de partida da sua cosmovisão. Possivelmente ele não teria tido esta intuição caso não estivesse na solidão da guerra – ele e Deus.

A Segunda Guerra Mundial (1939–1945) não teve, aparentemente, qualquer influência sobre Teilhard, a razão sendo que ele passou todo o tempo da guerra na China, nas suas pesquisas de paleontologia e geologia. Efetivamente, por dificuldades com a hierarquia católica por causa da sua cosmovisão, julgada meio panteísta, ele havia sido enviado à China para fazer as pesquisas mencionadas. Já bem conhecido entre seus pares nas duas ciências, antes de ir para a China, ele ficou ainda mais conhecido entre eles, por suas várias descobertas, de modo especial pela descoberta do “homo pequinenses”, ou seja, o “homem de Beijing”, que antigamente, fora da China, a cidade era chamada de “Pequim”.

IHU On-Line - Suas obras mais conhecidas, O fenômeno humano e O meio divino, embora tenham abordagens diferentes – o primeiro pretende apresentar uma cosmovisão estritamente científica, enquanto que o segundo, uma visão espiritual – são fortemente integradas. Seria possível reconhecer, nesses escritos e nessa perspectiva integradora, a influência da prática dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, que, como jesuíta, ele certamente teria na essência de sua própria experiência espiritual?

Pedro Guimarães Ferreira - Em primeiro lugar, permita-me corrigir, ou matizar, a afirmação de que O Fenômeno Humano seja uma “cosmovisão estritamente científica”. Não o é no sentido de ciências naturais. E Teilhard nunca pretendeu que o fosse. Resumamos a cosmovisão de Teilhard: ele observa que, na evolução do Universo, ocorreu a formação de estruturas cada vez mais complexas e “centradas”. E ele afirma que esta é uma lei de evolução do universo, uma primeira afirmação que não é estritamente científica. Ele chama esta lei de complexificação/consciência. A afirmação de que este processo existiu é razoável, mas projetá-la para o futuro e na direção apontada por ele é que não é científico no sentido de ciências da natureza. Sim, porque Teilhard projeta para o futuro esta evolução, prognosticando primeiramente a formação de uma noosfera em que os seres humanos estariam cada vez mais centrados, isto é, cada vez mais unânimes nas suas inteligências e vontades. E extrapola isto ainda mais para o futuro, a evolução atingindo o “Ponto Omega”, que é Jesus Cristo ressuscitado, sendo que o Ponto Omega terá sido o ponto de atração de toda a evolução. É claro que isso não tem nada de científico no sentido das ciências naturais.

Mais ainda, para explicar o mecanismo deste processo, Teilhard introduziu neste texto e o repetiu em vários outros, o conceito de “energia radial”, expressão por oposição ao de “energia tangencial”, que é a energia medida na física e na química. Ora esta “energia radial” nunca foi detectada experimentalmente, nem colocada como hipótese por cientistas, nem antes nem depois. É claro que Teilhard tinha consciência disto. Observe-se que Teilhard não era darwiniano. Para Darwin, a evolução das espécies se faz pelo processo da “seleção natural”. Para Teilhard era pela “energia radial”. E noto também que a “energia radial” foi antecipada num nível menos científico e mais metafísico por ninguém menos que Santo Agostinho (354–430), que propôs as “rationes seminales”, ou seja, “sementes racionais” que seriam as responsáveis pelo evoluir do universo.

Já o “Milieu divin” é, como você diz, uma visão espiritual muito bem integrada com o “Fenômeno Humano” e com todos os seus textos posteriores sobre sua cosmovisão.

Quanto à influência dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio na obra de Teilhard, permita-me fazer uma digressão, com a qual muitos dos meus confrades jesuítas, bem como muitos leigos e leigas ligados aos jesuítas não concordarão. Acho que está havendo um abuso na suposta descoberta de influências dos Exercícios Espirituais. Fala-se, por exemplo, - cada vez menos, ainda bem - de “pedagogia inaciana”, quando Santo Inácio escreveu pouquíssimo a respeito de pedagogia. Se se quiser achar que o “espírito” dos Exercícios Espirituais está presente na “pedagogia inaciana”, eu diria que é o espírito do Evangelho, de Jesus Cristo. Mais ainda, a influência de Santo Inácio na Companhia de Jesus foi sempre muito grande, mas há vários indícios de que São Tomás de Aquino, um dominicano, terá tido influência maior que ele durante varias décadas, inclusive durante os cerca de 100 anos que precederam o Concilio Vaticano II (1962 – 1965).

IHU On-Line - Os inúmeros trabalhos científicos por ele produzidos e publicados demonstram um homem de profunda e profícua atividade profissional. Já se contam mais de cinquenta anos desde sua morte e, de fato, a ciência caminhou nesse período. Qual a relevância de seus estudos para os dias de hoje? Chardin ainda é um autor visitado pelos pesquisadores contemporâneos?

Pedro Guimarães Ferreira - As ciências experimentais são, por sua própria natureza, ingratas com relação àqueles que as fazem. Efetivamente, ninguém precisa ler Isaac Newton  para compreender a mecânica clássica, nem ler Gauss  para compreender matemática; estes dois têm sido reconhecidos como os maiores gigantes das duas disciplinas. De modo que, respondendo à sua pergunta: não, ninguém precisa ler Teilhard para aprender paleontologia ou geologia. As suas contribuições foram importantes, como dito na primeira pergunta, mas já estão nos manuais das duas disciplinas, inclusive já terão sido ultrapassadas em muitos dos seus aspectos. Superadas não no sentido de que estavam erradas, mas no sentido de que terão sido incorporadas em sínteses maiores, assim como Newton foi superado por Einstein. Mas suas obras são e serão ainda visitadas, sim, por historiadores das ciências e por um ou outro “scholar” interessado em alguma possível peculiaridade de seu método de fazer pesquisa ou para saber como foi a gênese de uma ou outra das suas descobertas.

IHU On-Line - Da mesma forma, o pensamento eclesiástico muito se modificou, sobretudo após o Concílio Vaticano II. Como as questões apresentadas por Teilhard de Chardin, sobretudo aquelas que tocam à Teoria da Evolução, são consideradas hoje pela Igreja?

Pedro Guimarães Ferreira - O santo padre João Bosco Penido Burnier SJ,  mártir da caridade ao defender uma mulher que estava sendo torturada há menos de 40 anos, referiu-se, numa conversa comigo, ao Concilio Vaticano II como um “terremoto”. Portanto o “muito se modificou”, que você coloca, parece-me absolutamente certo. Não na doutrina propriamente dita, mas nas ênfases das suas interpretações.

Acho que cabe uma referência à relação entre Teilhard de Chardin e o Concilio Vaticano II para responder à sua pergunta. Teilhard faleceu em 1955, e o Concílio começou em 1962. Até aquele ano, a cosmovisão de Teilhard era mal vista pela autoridade doutrinária da Igreja: considerada suspeita de panteísmo, como já referido antes. Mas, além disso, ainda havia na Igreja uma suspeita quanto à evolução das espécies. Confundia-se muitas vezes o fato da evolução, coisa que já não mais podia ser negada, com a sua explicação dada por Darwin, a seleção natural. Esta seleção natural era vista por muitos como uma forma de materialismo, o que na realidade não é. E assim Teilhard, “acreditando” na evolução (na realidade já naquela época não se tratava mais de acreditar ou não, era algo que se impunha por fatos indiscutíveis, como já dito), era colocado por muitos no baú junto com Darwin.

Mas, a partir de 1963, o Concílio, que tinha sido dominado no seu primeiro ano pelos “conservadores”, passou a ser liderado pelos “liberais”, com forte influência dos episcopados francês, alemão e holandês. E começou então a liberalização das obras de Teilhard, anseio dos mais jovens. E a coisa foi rápida, em pouco tempo, a cosmovisão de Teilhard era devorada por seminaristas, padres jovens e leigos pelo mundo todo. Foi a chamada “vague teilhardiennne”, a onda teilhardiana. Apesar de intensíssima, não durou muito: cerca de 10 anos. Mas marcou de modo definitivo a Igreja do Pós-Concílio. Não no sentido de que a maioria das pessoas da Igreja concorde com a cosmovisão de Teilhard, mas no sentido de que a evolução das espécies passou a ser admitida tranquilamente dentro dos umbrais da Igreja e, mais importante, a Igreja passa a ter uma atitude de confiança – e não de desconfiança e muito menos de hostilidade – com relação à ciência.

Já foi observado também, por não poucos, que Teilhard teve influência não desprezível no Concilio Vaticano II. Não no sentido de que sua cosmovisão tenha sido citada, nem mesmo indiretamente, nos documentos conciliares, estes sendo fundamentalmente bíblicos e patrísticos. Mas no sentido de que Teilhard inspirou uma atitude de otimismo com relação ao que é material, um otimismo com relação ao mundo em que vivemos. Este otimismo fica mais patente num dos mais importantes documentos do Concílio, a Constituição “Gaudium et spes” sobre a Igreja no mundo moderno.

IHU On-Line - Que correlação se pode efetivamente estabelecer entre Teilhard de Chardin e Darwin para conciliar as relações entre fé e ciência?

Pedro Guimarães Ferreira - Darwin, apesar de crente, um anglicano convicto, não pretendeu dar qualquer contribuição ao problema das relações entre fé e ciência. (Darwin perderia a fé com a morte da filha, algo que nada tem a ver com evolução das espécies). Teilhard, na sua cosmovisão, pretendeu precisamente estabelecer uma ponte entre a fé e a ciência. Apesar de se poder – e provavelmente dever – discordar dele em alguns aspectos fundamentais da sua cosmovisão, como já mencionado, não há como negar que se trata de uma visão grandiosa da realidade: um universo que evolui para a formação do ser inteligente, o ser humano, passando a uma unidade de mentes e corações, que ele chama de “noosfera”, e culminando no pólo de atração de todo o processo, o Ponto Omega, que é Jesus Cristo ressuscitado. Há que notar que haveria uma diminuição da força da visão de Teilhard se se achasse que o Ponto Omega seria simplesmente Deus, porque Jesus Cristo, sendo também um ser humano, é parte do universo e é, portanto, um pólo atrativo natural de todo o processo evolutivo. Esta evolução seria regida pelo que ele chama de “lei da complexificação/consciência”, como já foi dito, que é uma ampliação, para o passado e para o futuro, da lei da evolução das espécies. De acordo com Darwin, o mecanismo explicativo da evolução das espécies é a seleção natural, para Teilhard o mecanismo explicativo de toda a evolução – não somente das espécies de seres vivos – é a “energia radial”. Acho que se pode dizer, sem medo de errar, que Teilhard permanecerá como um “clássico” pela amplidão de sua visão, pela ambição do seu escopo. 

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