Edição 303 | 10 Agosto 2009

Narrar Deus no horizonte do niilismo: a reviviscência do divino

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Márcia Junges | Tradução: Benno Dischinger

Deus humano, demasiado humano, morre e possibilita que haja retorno da transcendência, sem a personalização anterior, acredita Paul Valadier. Relativismo pode ser compreendido como terreno para “exercício esclarecido e responsável de nossas liberdades”

Indubitavelmente, o horizonte do niilismo “mantém certo relativismo dos valores”, assinala o filósofo francês Paul Valadier. “Desde que for mal colocada a ideia de um fundamento objetivo, permanente e estável dos valores, a consequência será que nossos valores sejam flutuantes. Mas, não inexistentes”. E questiona: “Será, então, preciso alarmar-se com um relativismo que pode ser o terreno de um exercício esclarecido e responsável de nossas liberdades?” Nietzsche anuncia a morte daquele Deus “demasiado humano, demasiado voltado ao homem, tendo perdido seu mistério e, por consequência, não crível como Deus”. Sua morte pode, inclusive, permitir uma “reviviscência do divino”. Outro aspecto discutido por Valadier é que, por sua essência, o ser humano não se contenta com dados finitos e limitados, e assim sua busca espiritual pode, em muitos momentos, se tornar em uma “vontade de crença”, e ainda em sectarismo, fundamentalismo e certezas falsificadas. “Tanto mais que o horizonte niilista desestabiliza as certezas adquiridas ou herdadas, e então fragiliza os indivíduos que acabam se agarrando em algo estável e seguro. Logo, no próprio interior do cristianismo a busca de um Deus tranquilizador e ofuscante não está próxima de extinção. Crer que se possa falar em nome da Verdade objetiva continua sendo uma doença típica dessas incertezas”. A respeito da crítica de Nietzsche ao cristianismo, afirma que ela “deve permitir ao cristão, não de se tornar nietzschiano, mas de entender a partir do interior de sua própria fé as advertências que lhe são concedidas para não a trair, desmentir, travestir, tornando-a menos aceitável”.

Valadier é professor de filosofia moral e política nas Faculdades Jesuítas de Paris (Centre Sèvres). É licenciado em Filosofia pela Sorbonne, mestre e doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Lyon. Foi redator da revista Études e é autor de uma vasta bibliografia. Sobre Nietzsche escreveu, entre outros livros, Nietzsche et la critique du christianisme (Paris: Cerf, 1974); Essais sur la modernité, Nietzsche et Marx (Paris: Cerf, 1974); Nietzsche, l’athée de rigueur (Paris: DDB, 1989); e Nietzsche l'intempestif (Paris: Beauchesne, 2000). Foi conferencista no Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos?, com as conferências A moral após o individualismo e O futuro da autonomia do indivíduo, política e niilismo. A esse respeito, confira o artigo O futuro da autonomia do indivíduo, política e niilismo: leitura filosófica e teológica, publicado na coletânea O futuro da autonomia: uma sociedade de indivíduos (Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Leopoldo: Unisinos, 2009). Neste dia 13-08-2009, na Sala 1G119, do Instituto Humanitas Unisiinos – IHU, ele profere a conferência Narrar Deus no horizonte do niilismo, pré-evento do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como é possível narrar Deus no horizonte do niilismo?

Paul Valadier - O horizonte do niilismo, pelo menos quando se segue a reflexão de Nietzsche a esse respeito, é o da perda de um sentido unificador referente ao destino do mundo (“finalidade moral do mundo” ou da história) ou a recusa do conceito de Providência (mundo ordenado à salvação, seja esta uma salvação religiosa ou política). Disso decorre a crítica de um Deus uno, providente, bom e totalmente voltado ao homem, de quem esse Deus garante a salvação ou o cuidado benevolente. Esta crítica de um Deus pessoal conduz a celebrar a tese da morte de Deus: mas, o Deus que morre é o Deus cristão, demasiado humano, demasiado voltado ao homem, tendo perdido seu mistério e, por consequência, não crível como Deus. Esta morte deveria permitir a “reviviscência do divino”, que esse Deus personalizado e demasiado humano desfazia. Quando se aceita este diagnóstico, pode-se admitir, então, que todo discurso sobre Deus que abismaria o sentido do divino por uma concepção demasiado humana e enfraquecida de Deus, entreteria, sem realmente sabê-lo, o niilismo ambiental, isto é, alimentaria a suspeita sobre um Deus demasiado benevolente.

IHU On-Line - Como entender a crescente demanda por transcendência no Ocidente e simultaneamente a morte de Deus anunciada por Nietzsche?

Paul Valadier - Nietzsche permite novamente compreender que o “animal-humano”, como ele diz, não pode não se interrogar sobre si mesmo e sobre o mundo. Ou antes, não importa que sentido haja ou que falta total de sentido, lê-se no final de A genealogia da moral. Essa sede inextinguível está próxima da idéia hegeliana da negatividade, em ação neste ente finito que é o homem. Este jamais pode contentar-se com nenhum dado finito e limitado. Por sua própria essência, ele não pode deixar de se interrogar e então sua dignidade se situa em sua busca do que está além de todo limite e que não se deixa domesticar por nenhuma aproximação possessiva. Disso resulta, em nossos dias, todo tipo de buscas espirituais frequentemente selvagens, ou exploradas por gurus, porque a consumação ou o gozo, por mais importantes que sejam, não podem satisfazer o corpo e o espírito.

IHU On-Line - Ainda persiste o Deus moral obsessivo que Nietzsche combatia, ou a visão de Deus é hoje mais “soft”, fragmentada, enfraquecida?

Paul Valadier - Bem entendido, essa busca espiritual pode se franzir em “vontades de crença”, no sectarismo, no fundamentalismo, em certezas falsificadas. Tanto mais que o horizonte niilista desestabiliza as certezas adquiridas ou herdadas, e então fragiliza os indivíduos que acabam se agarrando em algo estável e seguro. Logo, no próprio interior do cristianismo a busca de um Deus tranquilizador e ofuscante não está próxima de extinção. Crer que se possa falar em nome da Verdade objetiva continua sendo uma doença típica dessas incertezas. E então, não se pode imaginar que essas tendências idolátricas tão ligadas ao próprio homem (ver o Antigo Testamento) vão se enfrentar. Essa seria, aliás, uma das ilusões do homem moderno: crer-se enfim liberado de suas tendências e de seus preconceitos.

IHU On-Line - Em que medida a crítica de Nietzsche ao cristianismo pode “purificá-lo” dos excessos desse Deus obsessivo que é muitas vezes referido na Igreja?

Paul Valadier - A crítica de Nietzsche deve permitir ao cristão, não de se tornar nietzschiano, mas de entender a partir do interior de sua própria fé as advertências que lhe são concedidas para não a trair, desmentir, travestir, tornando-a menos aceitável. O que queremos quando nós queremos, ou desejamos crer num Deus bom? Pergunta que é preciso se fazer permanentemente, bem como em todas as nossas relações sociais: temos nós uma atitude de escravo dependente, ou de nobreza capaz de distinção?

IHU On-Line - Em que medida podemos relacionar a morte de Deus e o niilismo com o relativismo atual dos valores e como este relativismo influencia na ação do sujeito e em sua autonomia?

Paul Valadier - É claro, enfim, que o horizonte do niilismo mantém certo relativismo dos valores. Desde que for mal colocada a ideia de um fundamento objetivo, permanente e estável dos valores, a consequência será que nossos valores sejam flutuantes. Mas, não inexistentes. Entendemos sempre que precisamos querer a justiça, a solidariedade, o perdão, antes que a injustiça, o individualismo ou a vingança. Mas, por que gestos concretos passam estas exigências? Não sendo a resposta dada por antecipação, cabe a nossas liberdades discernir o que exige a situação dada em favor de uma resposta sensata, porém totalmente provisória. Será, então, preciso alarmar-se com um relativismo que pode ser o terreno de um exercício esclarecido e responsável de nossas liberdades?

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