Edição 303 | 10 Agosto 2009

“A ética atual não valoriza o fato de sustentar o desejo”

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Márcia Junges e Graziela Wolfart | Tradução Moisés Sbardelotto

Para o psicanalista e psiquiatra argentino José Zuberman a desvalorização da palavra e o enfraquecimento da função paterna vão situando o sujeito em relação a um êxito que não o situa em relação a seu desejo, ou seja, o êxito diante do público desloca o sujeito de sua relação com o desejo

Um dos participantes do Colóquio Internacional A ética da psicanálise: Lacan estaria justificado em dizer “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur ton désir]?, marcado para 14 e 15 de agosto, em Porto Alegre, o psicanalista e psiquiatra argentino José Zuberman concedeu a entrevista que segue, por e-mail, para a IHU On-Line. Nela, ele escreve que “a psicanálise situa como Soberano Bem a singularidade do desejo do sujeito, e sua ética faz com que se localize como imperativo categórico o fato de defendê-la. Nenhum Bem Universal se situa acima da singularidade do desejo. A família ou qualquer instituição é válida para a psicanálise desde que não se torne obstáculo para o desejo do sujeito. A questão do desejo do sujeito fica priorizada diante do Bem Universal que a instituição representa. Se a instituição serve para o desenvolvimento do sujeito, será válida para ele. Se a instituição sufoca seu desejo, para que defendê-la?”, pergunta. Para Zuberman, “desde Freud, o sintoma é a eficácia de um desejo reprimido que tem um correlato imaginário no corpo e no real da economia de gozo e que questiona o sujeito”. E ele explica na prática: “O paciente que nos consulta hoje chega com um padecer que não é sintoma, que não lhe causa perguntas. Vai ao analista porque já não tolera seu sofrimento. As consultas mudaram muito como eficácia do discurso capitalista no devir de cada sujeito. Hoje, consultam-se dependências, anorexias, bulimias e todo tipo de transtornos que não atingem o estatuto do sintoma como Freud o define”.

Membro da Escola Freudiana de Buenos Aires (EFBA), Zuberman é autor de, entre outros, O ataque epilético no Dostoievski de Freud (Porto Alegre: Cadernos do Recorte, 1995). Em 14-08-2009 proferirá a conferência O lugar do desejo no discurso capitalista, suas consequências éticas para o sujeito e seus efeitos na prática analítica dentro da programação do Colóquio Internacional A ética da psicanálise: Lacan estaria justificado em dizer “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur ton désir]?

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o lugar do desejo no discurso capitalista?

José Zuberman - No discurso do Amo, o agente é o significante do Nome do Pai, o significante fálico. S1→S2, como par ordenado, envolvem a cadeia significante em que se lê o desejo. O desejo é lido naquilo que se diz. O discurso capitalista desloca o par ordenado, assim como os termos do fantasma ($◊a) que, no discurso do Amo, ficam debaixo da barra. Ao se deslocar o par ordenado e os termos do fantasma, que é "sustento de meu desejo", como ensina Lacan, o desejo como tal liquidifica seu lugar.

IHU On-Line – Quais são as consequências éticas do desejo para o sujeito?

José Zuberman - A ética atual não valoriza o fato de sustentar o desejo. Há muito poucos anos, a assinatura de um cheque sem fundos horrorizava a quem se dava conta do fato. Hoje, é celebrado risonhamente como uma "esperteza". As campanhas eleitorais no começo das democracias baseavam-se em discursos de princípios, pelos quais aqueles que os defendiam colocavam em jogo até a vida. Hoje, é habitual dizer "isto" na campanha para fazer "aquilo" no governo, por exemplo. A desvalorização da palavra, o enfraquecimento da função paterna vai situando o sujeito em relação a um êxito que não o situa em relação a seu desejo. O êxito diante do público desloca o sujeito de sua relação com o desejo. O discurso funda o laço social e nele se cotiza o êxito eleitoral, televisivo, econômico, sexual etc., independente do desejo. O discurso capitalista transforma o lugar do objeto A, causa do desejo, em objeto de consumo. É parte do cotidiano que um cônjuge diga ao outro que assim não suporta mais a vida, que é preciso trocar de carro, de tapete ou de televisão, ignorando toda pergunta sobre o que gera o mal-estar ao qual se refere, em que ele se baseia. Sustentar essa pergunta elevaria a questão pela singularidade do desejo que o discurso capitalista ignora e exclui.

IHU On-Line – E quais são os efeitos desse desejo na prática analítica?

José Zuberman - O desejo sustenta a tarefa analisante. O analisante vem com uma pergunta: "Como pode ser que eu gostasse tanto da leitura e agora me canso na frente de um livro?", "Por que eu, que desfrutava tanto a minha vida sexual, hoje mal e mal a sustento para cumprir com a obrigação matrimonial?". Essas perguntas implicam um sintoma. Desde Freud, o sintoma é a eficácia de um desejo reprimido que tem um correlato imaginário no corpo e no real da economia de gozo e que questiona o sujeito. O paciente que nos consulta hoje chega com um padecer que não é sintoma, que não lhe causa perguntas. Vai ao analista porque já não tolera seu sofrimento. As consultas mudaram muito como eficácia do discurso capitalista no devir de cada sujeito. Hoje, consultam-se dependências, anorexias, bulimias e todo tipo de transtornos que não atingem o estatuto do sintoma como Freud o define. E mesmo na análise daqueles que consultam por causa de um sintoma, a "forclusão das coisas de amor", que Lacan situa como eficácia do discurso capitalista, também alcança o amor de transferência que torna possível cada análise. Por isso, hoje é mais difícil sustentar uma análise diante das terapias comportamentais que não interrogam o sujeito.

IHU On-Line – Poderia aprofundar a ideia de Lacan que o senhor comenta na entrevista que nos concedeu, de que a ética da psicanálise é um imperativo categórico na singularidade de cada sujeito?

José Zuberman - O Soberano Bem situa o imperativo categórico kantiano como universal. Assim, o Soberano Bem de cada indivíduo será servir a Igreja, o Partido, a Instituição e fará desse Bem um valor universal. Quem acredita em Deus como valor universal prega esse Bem como válido para todos os humanos; tem o dever de evangelizar para salvar cada semelhante, cada próximo. Quem prega a Revolução também a situa como a redenção de todos os humanos na Terra e a torna válida para convocar a todos para essa luta. A psicanálise situa como Soberano Bem a singularidade do desejo do sujeito, e sua ética faz com que se localize como imperativo categórico o fato de defendê-la. Nenhum Bem Universal se situa acima da singularidade do desejo. A família ou qualquer instituição é válida para a psicanálise desde que não se torne obstáculo para o desejo do sujeito. A questão do desejo do sujeito fica priorizada diante do Bem Universal que a instituição representa. Se a instituição serve para o desenvolvimento do sujeito, será válida para ele. Se a instituição sufoca seu desejo, para que defendê-la?

IHU On-Line – Quais são os limites e possibilidades que o capitalismo oferece ao desenvolvimento da autonomia do sujeito?

José Zuberman - O discurso capitalista estimula a ilusão de autonomia do sujeito. A ilusão de autonomia é do eu, não do sujeito do desejo. O capitalismo pelo qual você me pergunta não é o mesmo do discurso capitalista, que também regeu o laço social nos países do Leste. O capitalismo cria a ilusão de consumo interminável ao mesmo tempo que exclui do consumo uma porcentagem cada vez maior de habitantes do planeta. O capitalismo estimula a ideia de autonomia, do eu, enquanto nos torna mais dependentes de resoluções globalizadas que são tomadas em escritórios tão remotamente distantes de mim e que vão determinando minha vida cotidiana. O discurso capitalista fracassa em sua ilusão de autonomia do eu, porque cada sujeito precisa se encontrar com amor e com o desejo. Um paciente me dizia que, com o Viagra, ele resolve o "pânico cênico" que o habita diante do encontro sexual, mas ele quer se analisar para poder se reencontrar com o que sentia quando não precisava recorrer ao medicamento. O hiperdesenvolvimento da terapêutica farmacológica da dor não impede que apareçam novas dores que convocam à massagem oriental e a outras tantas técnicas corporais as quais respondem àqueles que buscam um contato com outro humano e não o tratamento "autônomo" da dor. Sempre haverá esse lugar de falta naqueles que globalizam, totalizam, ignorando o lugar da palavra, do discurso, em cuja leitura a psicanálise se fundamenta.

IHU On-Line – Nessa mesma entrevista que nos concedeu, o senhor disse que hoje não se constroem mais catedrais, e sim shoppings centers. Como essa mudança de paradigma se reflete em nossa sociedade no âmbito psicanalítico?

José Zuberman - O sujeito histórico medieval acreditava certamente que seu destino se colocava em jogo no Juízo Final, no Céu. Nessa crença, fundamentava sua conduta que o fazia até padecer de fome para contribuir com a construção de sua Igreja. O sujeito contemporâneo tende a acreditar que seu destino já está escrito na bioquímica de sua célula, no seu DNA. Ele se desentende com sua pergunta como sujeito, acreditando que tudo já está geneticamente determinado. Se, como efeito do discurso capitalista, o sujeito se desentende com seu desejo, com sua pergunta, e se, como efeito do discurso capitalista, o objeto, causa de desejo, se torna objeto de consumo, não é incompreensível que o shopping seja sua Catedral. O shopping não é só lugar de consumo, é também lugar de encontro em um espaço com música e ruído que geralmente relega o encontro com o outro para uma situação tão impessoal como o aeroporto.

IHU On-Line – O hiperconsumo seria uma das patologias modernas?

José Zuberman - Totalmente. E a decepção que o novo objeto comprado causa gera mais consumo para recriar a ilusão. Deter-se nessa decepção e interrogá-la pode ser um momento fecundo para o sujeito. Se não puder interrogá-la, ele continua com esse hiperconsumo comprando, às vezes, até aquilo que não sabe nem como usar. Efeito de discurso do qual nenhum dos contemporâneos está livre.

IHU On-Line – O que significa a mudança do discurso do Amo para o discurso capitalista?

José Zuberman - Significa que o S1, o significante do Nome do Pai, não é o agente. Significa que o deslocamento do par ordenado S1-S2 rompe com a cadeia significante, a relação do sujeito com o desejo. No laço social, são relações que desconhecem o semelhante em sua qualidade de vizinho, professor, próximo. É a perda do valor da palavra que faz com que os vínculos se reduzam ao plano especular, com a agressividade que gera, como Lacan havia ensinado bem cedo, e sua sequência de assassinatos em escolas, em universidades ou na família. A vida sexual fica despida do desejo e do amor, como se pode constatar na pormenorizada oferta sexual que qualquer jornal publica. Nas consultas, como dizia antes, já não se consulta por causa dos sintomas, e sim pelos transtornos, padecimentos que são sofridos sem articular perguntas. Parte do trabalho de um analista, hoje, é levar esse paciente à condição de analisante.

IHU On-Line – Por que o discurso capitalista “forclui” as coisas do amor?

José Zuberman - O discurso capitalista quer ser a explicação de tudo. Assim como o racionalismo não quis reconhecer nada que excedesse a razão, nossos contemporâneos levantam um discurso econômico que daria respostas acabadas a toda inquietação e que se reflete tanto na planificação soviética como na neoliberal. A psicanálise não é uma concepção do mundo, não é uma cosmovisão nem uma filosofia que pretende explicar tudo. O analista interroga o saber do Outro. O complexo de castração freudiano já indicava que, para o humano, o "todo" não está ao seu alcance. A castração como operação simbólica, e não como fantasma, situa logicamente a impossibilidade do "todo". Para que o amor seja possível, há sempre algum semelhante em posição de causa, que é preciso que se reconheça como tal. O amor é uma eficácia da castração simbólica que o discurso capitalista ignora. Assim é que a sexualidade aparece tão despida do amor, tão pobremente cotizado em nossa atualidade. O fato de que "as coisas do amor" se forcluam fica evidente no pouco espaço que a nossa sociedade deixa ao luto pelos entes queridos, para as alegrias de nascimentos, casamentos, celebrações diversas que, cada vez mais, são como trâmites ou consumos tipificados, em que qualquer sequência afetiva é desacreditada como mero sentimentalismo.

Leia mais...

>> Confira outra entrevista concedida por José Zuberman à IHU On-Line:

* O parricídio no Dostoiévski de Freud. Uma leitura psicanalítica. IHU On-Line número 298, de 22-06-2009.

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