Edição 302 | 03 Agosto 2009

IHU Repórter - Felipe Ruiz Coelho

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Greyce Vargas, Graziela Wolfart e Patricia Fachin

Nesta edição que antecede o dia dos pais, a IHU On-Line conversou com o motorista da Unisinos Felipe Ruiz Coelho, 31 anos, que há quatro trabalha na universidade. Ele, sem dúvidas, tem muito para comemorar nesta data, ao lado da filha Luiza, que nasceu com problemas de saúde. Diante de tantos desafios nos últimos meses, com um sorriso no rosto e muita esperança, ele garante que essa lição lhe “deu mais amor à vida e vontade de viver e aproveitar cada dia que passa”. Sobre o dia dos pais, comemorado ao lado de seu presente mais precioso, Luiza, ele planeja: “Vai ser maravilhoso. Minha filha estando bem e em casa não tem presente melhor”. Confira esta trajetória de vida na entrevista a seguir.

Histórico – Eu nasci em São Leopoldo mesmo. Perdi meus pais cedo. Quando minha mãe morreu, eu tinha 11 anos. E meu pai veio a falecer quando eu tinha 20 anos. Eu sempre quis ser motorista de caminhão, meu pai foi contra, mas mesmo assim eu tirei minha carteira de motorista e fui ser caminhoneiro. Viajei por sete anos e, quando abriu a vaga aqui na Unisinos, eu vim para cá e parei de viajar. Continuei como motorista. Não tinha ninguém na família que era caminhoneiro, mas tinha um vizinho meu que era motorista de caminhão. Ele chegava de viagem, e eu ficava admirando o caminhão. Eu sempre fui bem de vida, mas eu tinha que ser motorista de caminhão. No colégio, eu sempre desenhava caminhões. Hoje, já não gosto tanto de caminhão, mas quando era pequeno gostava muito. Hoje, moro no bairro São João Batista, em São Leopoldo.

A vida de caminhoneiro – Ser motorista de caminhão hoje é um trabalho muito desgastante e tem um dia a dia muito sofrido. Tudo cresceu, a tecnologia evoluiu, mas a profissão de motorista de caminhão ficou meio defasada. Não se dá mais valor ao motorista em si, à pessoa. Se hoje uma empresa pega cem currículos, não se importa com quem são essas pessoas, não querem saber sua trajetória, quem foi ou quem é. Se querem cem motoristas, vão pegar aqueles cem currículos e deu. Nisso entram os maus exemplos que vemos naqueles acidentes, nas tragédias. Isso desvaloriza a classe, vai desgastando nossa imagem. Se o motorista chega a um posto e não abastece ali, não pode dormir no seu pátio. O motorista de caminhão também não tem muito acesso a banheiros limpos. As empresas estipulam horários absurdos para cumprir, não importa se ele dorme ou não. Elas só querem saber que ele tem de carregar e descarregar tal dia. E se ele não for, tem um monte de gente que vai no seu lugar. Então, eu não ficava em casa, não tinha Natal, não tinha final de ano, não tinha aniversário, feriado, não tinha noite, não tinha dia...

O início – Aos 18 anos tirei minha carteira e no outro mês peguei uma carreta e fui para o Rio Grande do Norte. Em São Leopoldo, eu fui o primeiro a tirar uma carteira “E” com 18 anos. Eu cheguei ao Detran e falei que queria tirar essa carteira e riram. Minha carteira tinha uma restrição de que eu não podia dirigir ônibus, nem carga perigosa. Eu já fiquei preso com as cargas, os policiais me atacavam e diziam que eu não podia dirigir. Depois me liberavam. E foi assim. Trabalhei quatro anos numa transportadora de Canoas. Sai e consegui um emprego com um amigo, dono de uma empresa particular. Trabalhei lá até haver vaga na Unisinos.

Mudança – Quando comecei a trabalhar na Unisinos, consegui parar de viajar. Mudou completamente a minha vida, minha rotina, que era fora daqui. Eu viajava pelo Brasil inteiro. No primeiro final de semana livre, eu não sabia o que fazer em casa, porque nunca tive esse tempo sobrando. Tive que me reestruturar totalmente, até financeiramente. Foi preciso fazer tudo de novo, com uma nova jornada. Estou na Unisinos há quatro anos. Trabalhei três anos na Dalkia. Quando a Unisinos terceirizou o setor, eu entrei e trabalhei com o caminhão, fazendo todo o transporte interno. Estou dentro do câmpus há sete anos, mas sou funcionário da Unisinos há quatro. Aqui temos uma escala de serviço. Todos os dias, antes de ir embora, recebemos a escala do outro dia. É sempre bem corrido, mas não sofremos pressão da universidade. Recebemos a orientação de andar dentro das leis de trânsito. Mesmo que atrase um serviço, não importa qual a razão, não temos que fazer loucura no trânsito, temos de manter o padrão da universidade. Às vezes, somos os primeiros da instituição a receber uma pessoa, então temos que transportá-la tranquilamente, sem assustar. Temos de tratar todo mundo bem.

Família – Tenho um irmão mais velho. A perda da minha mãe foi numa época em que toda criança precisa da mãe. Eu tinha 11 anos. Tive que aprender a viver sozinho. Morei com uma tia por um tempo, depois voltei a morar com meu pai. Tive que seguir, mas foi difícil para mim, que era uma criança. Quando perdi meu pai, já estava viajando como caminhoneiro. Foi uma perda grande também. Como perdi minha mãe cedo, tive que ir aprendendo a lidar com essa dor, com as perdas. Hoje não tenho mais ninguém assim, nem avós. Meu irmão mora em Rio Grande e nos vemos pouco. Quando minha filha estava no hospital, nós nos vimos, mas geralmente nos vemos uma vez por ano, no fim do ano.

Ser pai – Sou casado e tenho uma filha de seis meses. Eu sempre quis ser pai, pois sempre gostei de criança. Minha filha foi um caso especial e à parte. Ela nasceu e logo apareceram problemas. Ela tinha má formação cardíaca e no esôfago. Ficou cinco meses no hospital, passou por duas cirurgias de correção. Foi uma coisa não esperada, nunca pensamos que isso aconteceria com a gente. Ela, hoje, está bem, já saiu do hospital, está fazendo tratamento ainda, mas está melhor. Os problemas já foram resolvidos, o problema cardíaco foi corrigido e foi feita a desobstrução do esôfago. Ela não está 100%, mas é uma criança normal.

Os últimos seis meses – Nós passamos dentro de um hospital os primeiros seis meses dela. Não é fácil presenciar isso. Às vezes, as pessoas nem imaginam o que é estar dentro de um hospital, só ouvem as noticias, mas não sabem o que é viver dentro de um lugar assim. Largar um filho de três meses num bloco cirúrgico, com riscos de ele não voltar, não é fácil. Convivemos, desde que minha filha nasceu, com pais que foram embora sem os filhos. E nós ficávamos. Algumas vezes, vinha alguma notícia dizendo que o filho daquele casal não tinha resistido. É uma história que ninguém gostaria de passar, mas graças a Deus nunca tivemos uma notícia que não nos agradasse.

Aprendizados – Temos que fazer as coisas com carinho. Eu não esperava que isso fosse acontecer comigo (doença da filha), pois tenho muitos amigos, não sou uma pessoa ruim. A gente sempre pensa que só acontece com os outros e, quando algo assim acontece, aprendemos a dar valor à vida. Durante muitos finais de semana, ficávamos na janela do hospital, vendo o dia bonito e pensávamos que tínhamos que dar valor à nossa vida. Às vezes, as pessoas estão em casa, têm os filhos saudáveis e ficam esbravejando com eles ou ficam maltratando e não sabem o valor que tem poder pegar seu filho e ir para casa. Muitas pessoas não sabem o que é isso. Nossa filha veio para casa, mas demorou um pouco. Essa lição nos deu mais amor à vida e vontade de viver e aproveitar cada dia que passa.

Dia dos pais – Vai ser maravilhoso esse dia dos pais. Minha filha estando bem e em casa não tem presente melhor e maior. É uma satisfação estar com ela em casa.

Casamento – Vai fazer oito anos que sou casado. Sou bem casado, graças a Deus. A filhota veio só agora, então atualmente, o que a gente mais gosta de fazer é ficar em roda dela. Ela foi uma criança bem desejada por nós. Então, a nossa vida é ela.

Lazer – Eu gosto de andar a cavalo e laçar cavalo em rodeios. Tenho um cavalo que fica numa chácara aqui mesmo em São Leopoldo, mas não vou lá com frequência, porque estou ocupado com o nenê. Ela faz muitos exames, tem que ir ao médico, à fisioterapia. Eu não tenho tanto tempo, mas sempre que posso, eu vou lá, no sítio.

Adorador de cavalos – Eu não sei quando aprendi a gostar de cavalos. Agora, há pouco tempo, aprendi o significado do meu nome e me surpreendi. Felipe significa adorador de cavalos. Eu nunca dei bola para essas coisas, mas descobri que para mim deu certo. Desde pequeno o meu animal de estimação preferido é o cavalo. O meu se chama Outono das Três Estâncias.

Religião – Eu acredito em Deus, tenho muita fé n’Ele, mas não sigo uma religião.

Certo e errado – Hoje está difícil de criar um filho, mas a gente tem de mostrar-lhe o que é certo e errado. É melhor poder andar com a cabeça erguida do que andar se escondendo dos outros. As pessoas têm de ser honestas e boas para os demais.

Unisinos – Para mim, é uma ótima empresa. Ela me apoiou na fase que estou passando. Quando eu precisei faltar para ir ao hospital, a universidade foi bem acessível e humana.

Vida – A vida foi dada para todo o ser humano para ser vivida, então temos de saber aproveitá-la.

Sonho – Meu sonho é ter bastante saúde para poder criar minha filha. Aliás, que minha família toda sempre tenha muita saúde. Tenho sonhos materiais, como ter um carro bom e ser bem sucedido, mas eles não têm muita importância.

Política – Acho que a atual política é uma vergonha, infelizmente. É uma pena que o Brasil, um país tão rico, sofra tanto. Ele sobrevive, apesar de tanta roubalheira. É tão rico que consegue se manter, mas é vergonhoso.

Música – Eu escuto música gaúcha. Já tive hábito de ir a CTG, mas hoje não vou.

IHU – É um lugar que mostra as coisas humanas para as pessoas. Ele abre seus horizontes e faz um trabalho que abre caminhos.

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