Edição 302 | 03 Agosto 2009

Sufismo: uma mística que busca o equilíbrio

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Patricia Fachin e Moisés Sbardelotto

Em busca da unidade sem negar a pluralidade, o Sufismo possui uma concepção transcendente das religiões, assinala o especialista em Ciências da Religião Carlos Frederico Barboza de Souza

Para o Sufismo, Deus é Um, Único e Eterno e se encontra em tudo. “Cabe ao sufi percorrer um caminho para que, aos poucos, vá do confessar com os lábios esta unidade, ao reconhecer e tomar consciência dela, até não ver em nada senão o Único”, aponta Carlos Frederico Barbosa de Souza. Por se tratar de uma tradição mística, o Sufismo “possui grande flexibilidade diante das afirmações de fé ou dogmática, pois não se prende às afirmações exteriores de um credo”, explica o pesquisador à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Segundo ele, isso faz com que o Sufismo mantenha “um equilíbrio grande entre uma crença absoluta e, ao mesmo tempo, aberta e flexível”. Com tais características, o Sufismo pode desempenhar um papel importante na construção da paz planetária “com todo seu cabedal de tolerância, sua riqueza na forma de lidar com a diversidade, seu empenho nas buscas mais profundas, almejando superar todo olhar simplista e superficial do mundo”, assegura.

Carlos Frederico Barboza de Souza leciona na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) é mestre e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Sua tese intitulada Religio Cordis: um estudo comparado sobre a concepção de coração em Ibn ´Arabi e João da Cruz (2008) e orientada pelo Prof. Dr. Faustino Teixeira, foi eleita a melhor tese nacional de Teologia e Ciências da Religião deste ano. Como premiação, a pesquisa será publicada pela Editora Paulinas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as singularidades da mística islâmica? O que a difere das demais religiões tradicionais?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Uma primeira observação diz respeito à diversidade presente no Sufismo, pois ele é composto por várias correntes, escolas, grupos que se ligam à espiritualidade de um mestre, cada uma dessas vertentes configurando-se como uma possibilidade única e singular de ser sufi.

O Sufismo é uma das dimensões místicas do Islamismo. Portanto, em relação às demais religiões, ele possui proximidades e distinções, da mesma maneira que o Islã. Numa perspectiva comparativa, a proximidade maior se dá com as chamadas “religiões do livro” ou de herança abraâmica: o Judaísmo e o Cristianismo. Como os seguidores dessas religiões, os que se colocam na via súfica, também são monoteístas, pautam-se pela crença numa revelação consignada em um livro (embora com um entendimento distinto do que é revelação e do processo de como esta ocorre) e possuem um forte caráter ético na vivência religiosa. Ou seja, o encontro com Deus, muitas vezes nomeado de Real, possui implicações concretas de encontro com as outras pessoas, com o cosmo e com uma prática responsável de autoconhecimento e abertura ao outro.

O que difere o Sufismo das demais religiões, numa primeira olhada, é o que também lhe confere uma especificidade dentro do próprio islamismo: sua condição de busca esotérica (pelo menos em boa parte do Sufismo, pois existe também, em alguns países islâmicos, o sufismo popular, caracterizando-se como uma religiosidade popular). Nesse sentido, como todo esoterismo, a via súfica se caracteriza como um caminho interior e que privilegia este jeito de busca com tudo que ele exige: um processo de iniciação, rituais que marcam esta iniciação, a existência de um mestre (sheiq), estágios e práticas interiores, corporais, coletivas etc, a serem cumpridas. E, sobretudo, há o cultivo de um segredo a ser mantido, segredo este diante do que não se deve e não se pode falar, mas, sobretudo, deve ser vivido e experimentado, pois ultrapassa em muito as categorias com as quais se pode explicitar, além de ser um segredo que resguarda a intimidade dos amantes: o Amado e o buscador ou gnóstico.

Em relação à singularidade do Sufismo, pode-se afirmar sua busca pela unidade (tawhid), que é a afirmação de que Deus é Um e Único (wahid). De acordo com a sura corânica de número 112: “Diga: Ele é Deus, Uno, Deus, o Eterno. Não engendrou nem foi engendrado. Não tem pai”. Esta unidade já se encontra presente em tudo. Cabe ao sufi percorrer um caminho para que, aos poucos, vá do confessar com os lábios esta unidade, ao reconhecer e tomar consciência dela, até não ver em nada senão o Único. Pois o Único possui duas dimensões presentes intensamente nele, que, traduzidas em categorias ocidentais, se poderiam denominar de dimensão transcendente e imanente (ou tanzih e tashbih, na denominação sufi árabe), de modo que tudo é Ele/não Ele (hwa/la huwa). Para se alcançar a vivência profunda desta unidade, o gnóstico deve se submeter a um processo de aniquilação de si (fana), para que possa se recuperar numa outra dimensão, agora já transformado e consciente da unidade de tudo (baqa).

IHU On-Line - Em que sentido a mística islâmica pode contribuir para o desenvolvimento da paz e o diálogo com outras religiões?

Carlos Frederico Barboza de Souza – A mística súfica pode contribuir de várias maneiras para o desenvolvimento da paz e do diálogo. Primeiro, se pode falar em vários tipos de diálogos entre religiões: diálogos teológicos, diálogos sobre práticas solidárias em vistas da construção de um mundo melhor (ética) e diálogo sobre a experiência religiosa (mística). Assim sendo, o Sufismo pode colaborar imensamente na perspectiva do diálogo místico, principalmente porque seus rituais e práticas espirituais possuem um caráter de abertura a todo ser humano, pois procura se inscrever no que é essencial na vida e retrata uma busca universal, segundo sua concepção.

De igual maneira, em suas concepções, por se tratar de uma tradição mística, possui uma grande flexibilidade diante das afirmações de fé ou dogmáticas. Ele não se prende às afirmações exteriores de um credo (à letra pura e simplesmente – embora se possa dizer que sejam fiéis totalmente à letra -, porém, com uma hermenêutica particular e extremamente livre do texto), e sim ao processo interior e único com que cada seguidor interpreta, assimila e concretiza essas afirmações. Isso vai lhe propiciar um formato de abertura em relação ao praticante de outras crenças religiosas.

Além do mais, em sua forma de explicitar sua prática e crença, consegue manter um equilíbrio grande entre uma crença absoluta e, ao mesmo tempo, aberta e flexível. Um exemplo disso é sua nomeação de Deus como Real. Esta nomeação surge exatamente para dar conta da impossibilidade de nomear o Indizível. Portanto, sua relação com o Real é forte e absoluta, ao mesmo tempo que aberta às muitas e diversas nomeações e manifestações deste – pois Ele também é diverso–, de modo que Ele pode e deve ser encontrado em manifestações religiosas distintas. Como dizia um sufi do século XIII, Ibn ‘Arabi, se os crentes não aprendem a conhecer o Real nas manifestações dele em outras tradições religiosas e no próprio cosmo, quando chegarem ao Paraíso, e Ele se manifestar de formas distintas às formas que estão acostumados, não O reconhecerão.

Por fim, o Sufismo possui uma concepção da Unidade transcendente das religiões, ou seja, para além de toda a diversidade religiosa, há uma unidade profunda entre elas. O que não quer dizer que para eles todas as religiões sejam iguais e a mesma coisa. Esta afirmação da unidade transcendente deve ser entendida com base na lógica da unidade na pluralidade, pois o Sufismo busca a Unidade, mas sem negar a pluralidade, uma vez que esta também é manifestação da infinita riqueza do Real e não pode, portanto, ser apagada nem abolida em nome da unidade.

IHU On-Line - O senhor acredita que a mística islâmica poderia se fortalecer, enriquecer em contato com outras místicas, como a cristã?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Penso que sim. Toda religião, assim como toda pessoa, pode se enriquecer com o diálogo. O que se pode ter em mente é que todos possuímos limitações em nossa forma de ver o mundo, de experimentá-lo, devido à própria condição humana de ser situado num espaço e tempo. O que alarga nossa possibilidade de vermos além de nós mesmos é a abertura dialogal, que nos permite sermos enriquecidos com as experiências de outros, com seus olhares, baseados em outras perspectivas e pontos de vista. Nesse sentido, pode-se transferir esta lógica para o diálogo entre tradições e práticas religiosas: cada uma capta de forma particular elementos do Real. Se pensarmos que este Real é infinito em suas manifestações e em si mesmo, assim como é dinâmico, em perpétuo movimento, a abertura às captações realizadas por outras tradições e crenças abriria nossa experiência religiosa para outras dimensões que nossa própria tradição não captou. Esta abertura é de uma riqueza intraduzível.

IHU On-Line – Quais são as implicações e possibilidades da mística islâmica para o desenvolvimento de uma ética mundial?

Carlos Frederico Barboza de Souza – A mística islâmica, como o próprio nome diz, está enraizada no Islã, uma religião que nasce da tradição abraâmica, já possuindo em seu seio implicações éticas profundas, presentes desde seus primórdios e retratadas no Corão e na Suna do Profeta, principalmente seu forte caráter igualitário e de cuidado com os mais pobres. Além disso, o Islamismo é uma religião universal, que se compreende como possuidora desse caráter. Portanto, sempre suas reflexões terão caráter universal, o que não quer dizer que ela exclua a diversidade. Aliás, o próprio Corão articula muito bem esta exigência de universalidade, pois se baseia na afirmação da existência única e exclusiva de um Deus, com a exigência da diversidade, uma vez que se compreende como a religião revelada, em seu início, aos árabes e em língua árabe, tendo outros povos também sua própria revelação e profetas válidos.

O Sufismo vai assumir estes valores presentes na tradição islâmica e verá tudo como manifestação divina. Em outras palavras: todo o cosmo, bem como as pessoas, a história e as tradições religiosas e culturais são como um espelho que manifestam, de alguma forma, algumas dimensões das infinitas dimensões do Real. Daí deriva sua grande capacidade de enxergar o Real presente em tudo, também em princípios éticos.

Isso posto, o Sufismo contribuiria para a constituição de uma ética mundial com todo seu cabedal de tolerância, sua riqueza na forma de lidar com a diversidade, seu empenho nas buscas mais profundas, almejando superar todo olhar simplista e superficial do mundo, da história e da vida. Além disso, ao privilegiar e valorizar a dimensão escondida e interior da vivência espiritual sem excluir sua dimensão ritual e exterior, o Sufismo aponta também para a denúncia de toda ortodoxia que mata este tipo de vivência e impede a riqueza da singularidade de cada caminho; é crítico, portanto, por não entender que favoreceria vivências espirituais profundas, a todo formalismo ou “letra sem espírito” que muitas vezes abunda em tantos ambientes e pode gerar intolerância e atitudes violentas.

IHU On-Line - É possível estabelecer o diálogo inter-religioso, mantendo a identidade própria de cada religião?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Não só é possível manter uma postura dialogal com a manutenção da própria identidade como é necessário e uma condição sine qua non, em minha concepção, para um diálogo inter-religioso frutuoso, eficaz e realista. Negar o diálogo é cair numa postura fundamentalista que demoniza o outro e não lhe dá o direito de existir; negar a identidade é cair numa postura relativista que também não percebe a diversidade e não propicia o diálogo, já que o diverso é apagado em nome de uma igualdade abstrata e descontextualizada. Hans Küng chama esse equilíbrio entre a manutenção da alteridade e da identidade de “disposição ao diálogo e firmeza de posição”.  Seu ponto de partida é a busca da verdade, uma vez que a manutenção da identidade religiosa ou a firmeza de posição acerca de uma opção de fé se relacionam necessariamente com a opção pelo que se crê ser verdadeiro e não falso. E há que se reconhecer que esta opção é algo inerente e intrínseco às tradições religiosas. Perder esta busca significa enfraquecer e, em alguns casos matar, a religião e a fé que um fiel pode ter nela. Por isso, para Küng, diálogo não é sinônimo de negação de si mesmo , e a disposição para a sua realização não provoca o abandono da própria identidade. Aliás, supõe-na, pois “ninguém consegue compreender profundamente uma religião se não a afirma ‘a partir de dentro’ com radical seriedade existencial”.  Isso porque a construção de uma verdade religiosa ocorre existencialmente, o que implica relacionar-se com ela de forma absoluta, isto é, a verdade da religião que o crente segue é “a verdade” para ele.

Mas esta crença que possui como característica a afirmação de um absoluto não quer dizer, necessariamente, fechamento à diversidade de crenças e ao diálogo. Para que isso não ocorra, ela deve ser acompanhada da consciência de que da mesma forma que determinada religião constrói sua verdade dessa maneira, ela deve dar o direito às demais religiões para que também o façam. Ainda mais que se deve ter consciência que sua verdade é uma verdade que brota de uma experiência “de dentro”, ou seja, a partir de um compromisso existencial e de fé com essa verdade que se insere em uma tradição particular situada histórica e culturalmente. Portanto, é uma verdade que se sustenta em uma relação com uma confissão de fé, o que quer dizer que não é uma linguagem constatante, com possibilidade de verificação de sua veracidade fora da experiência de fé. Esse tipo de linguagem se origina em um contexto relacional, que diz “algo sobre a relação subjetiva de uma pessoa com outra e sobre a total entrega a outrem”.  Portanto, não implica afirmações para outras religiões, mas circunscreve-se apenas à própria tradição religiosa.

IHU On-Line - Como explicar tantos atos de agressão, fanatismo e xenofobia em nome da religião? Como o Islã vê a violência? Como o Deus islâmico se posiciona diante da violência recebida e praticada?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Primeiro de tudo, a violência é um fenômeno presente na vida humana, na história e nas culturas, conforme pode ser percebido em muitos dados captados por historiadores e cientistas sociais. Além disso, não podermos nos esquecer da reflexão de René Girard  acerca desta temática e sua relação com o sagrado, bem como da elaboração de Freud acerca da presença de elementos agressivos já na criança em seus primeiros anos de vida. Nesse sentido, o fenômeno da violência não ficaria de fora das vivências religiosas. Portanto, frequentemente, vai aparecer em vários textos sagrados, pois estes refletem a humanidade em seus aspectos positivos e negativos, ainda mais se tivermos presente que a violência retratada em textos sagrados, na maioria das vezes, é fruto de uma sociedade não menos violenta que projeta para os textos estas suas vivências e as concepções decorrentes de seu modo de vida. Além do mais, ainda no tocante aos textos sagrados, pode-se pensar que esta concepção de não violência se constrói aos poucos e é uma conquista das sociedades mais recentes (pelo menos quanto à concepção ideal de vida e que não vale para todas as pessoas de um determinado grupo social), embora nas sociedades do passado já se encontrem elementos que apontem ou possam ser lidos nesta ótica. Dessa forma, teologicamente, pode-se falar de uma pedagogia progressiva da não violência que é percebida nas manifestações divinas.

Religião x Violência

Quanto às manifestações de xenofobia, agressividade e violência no mundo de hoje atribuídas a atores religiosos, elas podem ter sua origem em fenômenos como o fundamentalismo, que é uma das facetas da expressão religiosa na modernidade. Nesse caso, aponta-se para uma reação à modernidade secularizante e que impõe um sistema de vida em que o lucro é o maior valor. Num mundo assim, como dizia Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”; a ética é colocada em segundo plano, pois é avaliada em função do lucro e do ganho que gere ou não; também questões referentes ao sentido da vida são esvaziadas, pois somente a lógica da produtividade é que tem sentido; e o desencanto impera, estando a própria vida e o sagrado sujeitos a um processo de “dessacralização”. Além do mais, numa sociedade plural, em que são multiplicadas as opções de vida e que a geração de conhecimento e a circulação de informações são quase infinitas e há um processo sistemático de crítica à tradição que o Ocidente veio forjando há séculos, muita gente se encontra insegura diante de que opções tomar para sua vida. Diante da incapacidade de muitos de se assumirem como construtores de sua história, o caminho que apresenta respostas claras e seguras, mesmo que gere violência e intolerância, se torna atraente.

Conflitos políticos

Porém, outra questão se torna interessante para a reflexão sobre a violência religiosa. Penso que facilmente se atribuem às religiões causas de conflitos, mas se olharmos profundamente as origens de muitos destes, encontraremos situações complicadas do ponto de vista das relações políticas. Basta uma olhada rápida na história recente do Oriente Médio para perceber que toda esta situação tem relação com a queda do Império Turco Otomano no final da Primeira Guerra Mundial. Após esse evento, houve uma partilha desta região por parte das potências da época – sobretudo Inglaterra e França – levando-se em consideração seus interesses geopolíticos e econômicos, sem pôr em questão os interesses da população que habitava esta região. Com isso, dividiram-se clãs e agruparam-se etnias distintas; apoiou-se a criação de estados e houve povos que ficaram sem estados, como os curdos. Fez-se jogo de interesse duplo, ora apoiando árabes, ora apoiando a criação do Estado de Israel. E isso numa região em que não havia conflito religioso explícito. Por que surge o Hamas? O Hezbollah? Qual é a luta de Bin Laden? Se nos detivermos nestes problemas, veremos que possuem causas localizadas e bem precisas nos conflitos regionais em que estes grupos estão inseridos e não em questões prioritariamente religiosas, embora estas também se encontrem presentes. Logo, penso que a origem destes conflitos, em sua maior parte, se encontra numa história de pequenas ou grandes exclusões e discriminações étnicas e sociais perpetuadas na história e que acabam se revestindo de elementos religiosos, pois seus atores são, ao mesmo tempo, religiosos e pessoas que atuam politicamente.

Violência no Islã

Quanto à postura do Islã diante do fenômeno da violência, em seus textos fundadores se podem encontrar dois tipos de concepções: uma que justifica a ação violenta e outra que se direciona no caminho da paz. A título de exemplo, a sura 4:89 faz a seguinte afirmação: “não tomeis, dentre eles, aliados, até que emigrem, no caminho de Allah. E, se voltarem as costas, apanhai-os e matai-os, onde quer que os encontreis”. Porém, também são encontradas muitas outras afirmações que indicam caminhos mais pacíficos. Basta pensarmos que a quase totalidade das suras corânicas se iniciam com a afirmação – muito utilizada no cotidiano de um muçulmano – de que Deus é o Clemente e o Misericordioso.

Em relação ao Islã atual, entretanto, há que se reconhecer a inexistência de uma postura única a respeito da violência. De maneira geral, ela não é aceita e deve-se privilegiar sempre a paz, que também se encontra na mesma raiz árabe da palavra Islam/ Salam (paz). E quando se justifica a guerra ou algum ato violento, este sempre deve ser motivado pela autodefesa: “E combatei, no caminho de Allah, os que vos combatem, e não comeceis a agressão. Por certo, Allah não ama os agressores” (Sura 2:190). Porém, nos dois últimos séculos, mas, sobretudo a partir do século XX, surgirão movimentos no Islamismo que farão outras leituras cuja tendência será uma rigidez maior na interpretação dos textos sagrados e na sua aplicação normativa ao cotidiano, bem como possuirão um caráter que evidenciará uma atuação política resistente ao pensamento e forma de vida ocidentais, buscando resgatar um Islã glorioso do passado e que agora se encontra humilhado pelos problemas socioeconômicos por que passam a maior parte dos países islâmicos. Nesse sentido, refiro-me ao Wahabismo, à Irmandade Muçulmana e à teologia política do paquistanês Mawdudi e do egípcio Sayyd Qutb, que muito influenciarão grupos islâmicos recentes em suas ideologias.

IHU On-Line - O teólogo alemão Hans Küng propõe valores e posturas éticas universais, que devem ser expressas por todos os humanos, independente da orientação espiritual, da religião ou filosofia seguida. Esse compromisso pode e deve, de fato, ser assumido por todas as religiões? Quais as condições e os entraves para o estabelecimento e impedimento desse diálogo?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Claro que pode e deve ser assumido por todas as religiões e também pelos não praticantes de uma religião, agnósticos e ateus. Creio, porém, que há necessidade de compreensões mais abertas das religiões acerca de sua própria autocompreensão e entendimento de suas crenças e verdades fundamentais. E aqui concordo com Juan Antonio Estrada.  Ele aponta para a necessidade de “uma perspectiva ecumênica que abarque uma teologia das religiões contrária às imagens violentas de Deus” . E vai mais além, ao afirmar a necessidade de certo distanciamento racional e crítico à própria tradição religiosa, percebendo o contexto histórico-cultural em que esta nasce e se insere.

Ao mesmo tempo, também se faz necessária uma revisão do conceito de revelação, levando-se à distinção entre a inspiração transcendente e a interpretação da mesma mediada por instrumentos e concepções culturais, pois não há experiências puras da divindade e mesmo uma experiência bem íntima e pessoal dela não poderia ser identificada com a realidade da divindade em si. O que os seres humanos experimentam é sua proximidade ou sua irradiação, e, muitas vezes, de forma obscura. E aqui cabe a distinção que Edward Schillebeeckx  faz – e que não se restringe ao conhecimento religioso, mas se encontra presente em toda atividade científica e produção de conhecimento – entre “referencial real”, que seria a própria realidade da divindade, e “referente disponível ou ideal”, que são as representações e imagens da divindade, que interferem diretamente no agir e pensar do crente. Esse “referente disponível ou ideal” nasce das imagens de Deus construídas historicamente por uma cultura, possibilitando ao crente lidar com o “referencial real” mediado por elas. Assim, elas se transformam em categorias de interpretação do próprio referencial real, apesar de sua inadequação e precariedade para fazê-lo. Portanto, não há uma divindade em si, pelo menos sob o ponto de vista humano, mas apenas uma divindade interpretada, que se manifesta na experiência religiosa e mística mediante uma “imediaticidade mediada”.

Por fim, creio ser importante que se perceba o fator humano presente nas tradições religiosas, evitando-se, assim, a divinização de práticas, instituições, funções e doutrinas. Estas são fruto da criatividade humana, embora possam ser consideradas inspiradas por Deus, pois uma coisa não nega a outra. Fazem sentido num contexto particular em que surgem e, por isso mesmo, precisam ser atualizadas, não absolutizadas em si mesmas e submetidas, em alguns casos, à crítica.

IHU On-Line- A mística islâmica ganha um novo significado na sociedade pós-moderna, pós-metafísica, pós-religiosa? Em que sentido isso ocorre?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Qualquer grupo religioso, juntamente com seus textos e rituais, ganha significado diferenciado nos distintos contextos históricos e geográficos culturais, pois o horizonte de compreensão deste grupo muda de acordo com a realidade em que se situa. Portanto, o Sufismo, embora mantendo uma ligação com uma longa tradição espiritual à qual se vincula, também é capaz de interagir com as realidades espaço-temporais em que se encontra. Nesse sentido, na contemporaneidade, ele não fica isento da influência e do diálogo com a cultura atual, seja ela considerada pós-moderna, pós-metafísica ou pós-religiosa. Em que sentido isso ocorre? Primeiro, dentro da tradição súfica surgirão expressões do Sufismo desvinculadas da tradição islâmica, construídas pelo próprio sujeito que lança mão, à sua maneira, de materiais que a tradição lhe disponibiliza. Da mesma forma, desenvolvem-se expressões intimistas e individualistas desta tradição mística, centradas, muitas vezes, na satisfação dos fiéis que se reúnem em uma ordem ou fraternidade. No entanto, ele não valorizará a institucionalização de sua experiência de modo a criar uma ortodoxia ou a formalizar rituais desvinculados de uma vivência interior que exige um processo iniciático. Além de que, em época de crise ecológica e de desencanto com o mundo, o Sufismo vai desenvolver uma mística com fortes implicações cósmicas, resgatando de seus textos do passado uma teologia não dualista entre matéria e espírito e que valoriza de forma muito rica uma vivência mais harmônica com a natureza, gerando autoconhecimento e maior sensibilidade aos sinais divinos na vida e no cotidiano. Por fim, como caminho místico, numa época em que prevalecem para muita gente atitudes fundamentalistas e intolerantes, o Sufismo apresenta grande equilíbrio entre firmeza de posição e abertura dialogal. E isso sem cair, quando bem orientado, nas soluções superficiais e simplistas para a vida.

IHU On-Line – Quais são as concepções de Deus para Ibn’Arabi e João da Cruz? Que aspectos comuns e diferentes perpassam o pensamento dos dois místicos?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Ibn ‘Arabi  compreende a divindade, em primeiro lugar, como estando além de qualquer possibilidade de compreensão e nomeação. Nesse sentido, “Deus” é a Essência inominável e incognoscível, que existe por Si e para Si, independentemente de qualquer outro ser. Ele a denominará, frequentemente, de Al-Haqq, ou seja, o Real (ou a Verdade, em árabe). Porém, esta Essência inominável e absoluta não é um ser fechado em si mesmo, mas é um ser que escolhe se comunicar por misericórdia aos seus Atributos (Nomes divinos) que querem se atualizar (passar da potência ao ato). Daí que o Real é capaz de criar tudo e todo o criado serve como um espelho que reflete seus atributos. Nesse sentido, para Ibn ‘Arabi, o Real possui duas dimensões: em linguagem ocidental, o mais próximo seria afirmar que Ele é transcendente e imanente ao mesmo tempo, ou, em árabe, é tanzih e tashbih; Ele é todas as coisas e não é nenhuma coisa ao mesmo tempo.

João da Cruz,  em sua obra Subida do Monte Carmelo, livro II capítulo 9,1, também apresenta uma concepção de Deus. Neste tópico ele estabelece uma caracterização geral sobre o ser divino, afirmando que Ele é “infinito, assim ela [a fé] nos propõe infinito; e assim como é Trino e Uno, ela nos propõe Trino e Uno; e assim como Deus é treva para nosso entendimento, assim também a fé semelhantemente nos cega e deslumbra”. Portanto, neste pequeno trecho podem-se perceber três grandes elementos da concepção joãocruciana acerca do Real: infinitude, obscuridade e constituição trinitária.

Ambos se aproximam quando afirmam a divindade como infinita, incognoscível e para além de qualquer possibilidade de compreensão, apreensão e nomeação por parte dos seres humanos. Neste aspecto ambos concordam acerca da pluralidade inerente ao ser divino sem que este perca sua unidade, seja pelos Três da Trindade ou pelos infinitos Nomes divinos. Também estão próximos ao entenderem que o Real de alguma forma se manifesta e deixa suas marcas em tudo que existe, embora se diferenciem na compreensão de como este processo de manifestação ou teofania ocorre.

Amor e misericórdia

Outra proximidade entre a concepção de divindade de ambos diz respeito à compreensão como um ser de amor (João da Cruz) ou de misericórdia (Ibn ‘Arabi). Para ambos, este elemento está presente no Real e por meio dele constitui todo o cosmo e os seres criados, propiciando ao Real uma proximidade de toda a criação, incluindo aí o ser humano, ser convidado a participar da proximidade com a divindade. Portanto, é uma divindade aberta e receptiva, ao mesmo tempo que é também participativa, pois inspira aos que a ela se abrem, propicia experiências intensas, manifesta Sua vontade e desejos, interfere de alguma forma na história, gerando aperfeiçoamento humano/espiritual.

Diferenciam-se na concepção trinitária de Deus presente em João da Cruz, que é impensável em Ibn ‘Arabi, assim como uma mediação crística para a salvação e a revelação plena de Deus. Na lógica do místico muçulmano, os Nomes divinos é que ocupam um lugar grande na intermediação e comunicação entre a divindade e os seres criados, sendo toda a criação concebida como uma manifestação, um reflexo do Real.

IHU On-Line – Qual é para os dois místicos o papel do coração na jornada espiritual?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Para ambos, o papel do coração é muito semelhante, embora possuam algumas diferenças. Assim, o coração vai ser, em primeiro lugar, o elemento central do ser humano, no qual estão contidos seus segredos mais íntimos. Também será a Morada do Real devido à sua condição de ductilidade e maleabilidade, ou seja, o coração é um órgão “capaz de receber toda forma” e assim como o Real é dinâmico, cabe ao coração acolhê-lo devido à sua dinamicidade. É um órgão que “flutua”, capaz de mudanças perpétuas e reviravoltas sem fim, não se prendendo a nada, mas sempre aberto ao novo e ao profundo. E é nesta profundidade que ele se torna um elemento mediador entre o ser humano e o Real, entre a alma e o espírito e a divindade, pois ele opera a conexão entre o mundo espiritual e o mundo corporal, entre o visível e o invisível. Mais ainda, no seu mais profundo centro, ele e o Real se encontram e se identificam, de modo que, como diz Ernesto Cardenal, “no centro de nosso ser não somos nós mesmos, mas Outro. Que nossa identidade é Outro. Que cada um de nós ontologicamente é dois. Que encontrarmos a nós mesmos e concentrarmos em nós mesmos é arrojarmo-nos nos braços de Outro”. 

A centralidade que qualifica o coração também aponta para outra função que ele possui: a capacidade de integrar a diversidade, de conduzir à unidade e no diverso perceber o Um. Por isso, é também o coração uma faculdade de síntese, um evento que propicia o encontro com a Unidade de tudo e com a profundidade de tudo que existe. Nesse sentido, o coração é órgão de conhecimento, pois propicia ao intelecto e à razão acessos que estes não podem ter. Principalmente quando se pensa no conhecimento religioso ou no mundo espiritual, pois “a pessoa que atingiu o coração em seu sentido espiritual é também capaz de ver o coração das coisas, especialmente das formas sagradas, e perceber sua unidade interna”.

E ainda relacionada à sua centralidade, o coração é o órgão que não só acolhe o Real e a espiritualidade na vida humana, mas também é o órgão que a distribui para suas outras dimensões: a corporal, a afetiva, a psíquica etc.

IHU On-Line – O que eles podem ensinar à sociedade contemporânea sobre amor, paz, e diálogo inter-religioso?

Carlos Frederico Barboza de Souza – Podem ensinar muitas coisas. Primeiro, vivenciaram uma experiência muito forte da divindade. Para isso, foram capazes de se abrir a estas experiências transformadoras, bem como ao Real que se manifesta no cosmo e na vida. Portanto, em tudo souberam ler a presença do Real e por tudo se deixaram tocar, percebendo nestes toques a Sua mão. E quem sabe ver em tudo esta Presença e se dispor a por ela ser “desalojado”, também é capaz de mudar de posição diante do outro e do diverso e dialogar com ele, com a vida e com o cotidiano; sabe acolher a diversidade, pois é treinado neste contato forte com a divindade a estar aberto ao que ultrapassa sua própria compreensão, estar aberto a uma verdade maior e ao aprendizado. Aliás, em Ibn ‘Arabi, acolher a diversidade e a pluralidade é condição sine qua non para o encontro com o Real.

Além do mais, os místicos têm algo de “transgressor” no sentido de que não se prendem aos formatos de suas religiões, mas, sem banalizá-los ou abandoná-los, são capazes de transcendê-los, ou seja, das verdades e rituais religiosos, os místicos são capazes de ir além para atingir verdades inefáveis. Com isso, são pessoas que vivem à busca do essencial e superam em muito as aparências e formalismos na vivência religiosa e humana.

Com João da Cruz, podemos aprender as sutilezas da alma humana que se autoengana e se ilude continuamente. Daí a necessidade das purificações, sobretudo para a vivência do amor, pois, como ele diz, muitas atitudes parecidas com o amor, às vezes, são atitudes egoístas e de busca de autopromoção. Portanto, é necessária uma busca de purificação pessoal e comunitária, uma busca de superação de imaturidades e preconceitos.

Com Ibn ‘Arabi, pode-se pensar que tudo manifesta o Real, tudo é Seu reflexo. Mesmo as distintas religiões e credos. Portanto, as religiões também são formas que manifestam as infinitas riquezas do Real e que não podem ser expressas em sua totalidade por nenhuma criatura, nem ser humano, nem religião. Pensamentos como estes sempre apontam para uma necessidade de diálogo, pois este é o caminho para uma complementaridade recíproca entre os seres e as religiões, complementaridade que é um grande caminho para o mútuo aprendizado acerca do Real e da prática do amor, da compaixão e da ternura.

Leia mais...

>> Carlos Frederico Barboza de Souza já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. O material está disponível na página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Entrevistas:

• A mística de Rûmî e o ser humano autônomo contemporâneo. Publicada em Rûmî. O poeta e místico da dança do Amor e da Unidade. Edição 222, de 04-06-2007.

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