Edição 302 | 03 Agosto 2009

O Islã: representações de uma Religião Universal

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Patricia Fachin e Moisés Sbardelotto

De acordo com o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, em todos os sistemas religiosos, surgiram ideologias políticas que se pautam numa linguagem religiosa

“As tensões e os conflitos existentes entre muçulmanos e não muçulmanos são derivados de processos políticos”, aponta o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Para ele, discussões teológicas entre as religiões monoteístas não ajudam a resolver as divergências existentes entre elas e irão perdurar por décadas. “Se os processos políticos não forem resolvidos, os conflitos irão continuar”, assegura.

Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Pinto ressalta que a valorização “excessiva das dimensões religiosas dos conflitos do Oriente Médio é uma forma de ocultar os processos políticos sociais que existem”. Para ele, o Islamismo “foi eleito como sendo a alteridade da consciência euro-americana globalizada”. Além disso, enfatiza que religião e política, no caso do Islã, “produzem um discurso sobre a essência do Islamismo, quando o mesmo fenômeno não produz discursos semelhantes sobre o Cristianismo, o Judaísmo ou o Budismo”.

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto é graduado em História e mestre em Antropologia, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Também é doutor em Antropologia, pela Boston University, com a tese Mystical Bodies: Ritual, Experience and the Embodiment of Sufism in Syria (2002). Com experiência em Antropologia da Religião, Síria/Oriente Médio, Curdos/Árabes e Ritual, é docente da UFF.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que aspectos específicos caracterizam o Islamismo? O que o difere de outras religiões monoteístas como o Cristianismo e o Judaísmo?

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O Islamismo é uma das três religiões monoteístas que surgem no Oriente Médio junto com o Cristianismo e o Judaísmo. Como toda religião universal, o Islã defende uma série de crenças e rituais básicos que todo fiel deve conhecer, como, por exemplo, a crença em um Deus único, no Juízo Final, nos anjos e nos profetas. Além disso, existem os cinco pilares da fé islâmica. O primeiro é a aceitação de que só existe um Deus, e Maomé  é seu Profeta; o segundo são as orações diárias; o terceiro é a esmola, ou seja, o dízimo pago para o bem da coletividade. Ainda há o jejum no mês sagrado do Ramadã  e por fim a peregrinação à Meca, o Hajj. Nesse sentido, tal como o Cristianismo e o Judaísmo, é uma religião plural, voltada para toda a humanidade. Logo, o objetivo é apresentar a sua verdade religiosa a todos.

Do ponto de vista muçulmano, a profecia de Maomé restaura a mensagem divina que foi apresentada por outros profetas. Então, os muçulmanos se veem como uma continuação no processo da profecia que inclui todos os profetas anteriores a Maomé, ou seja, Cristo, Moisés e outros do Antigo Testamento. Conforme os muçulmanos foram se expandindo pelo mundo, outras religiões foram sendo incorporadas nessa história sagrada. Assim, Buda é visto como um profeta antecessor de Maomé. O Islamismo compartilha com as demais religiões universais essa tendência expansiva de procurar converter pessoas à fé e essa pluralidade de expressões sociais e culturais.

Em cada sociedade, existem diferentes interpretações e práticas do Islã que dialogam entre si. Certas atividades que, para um muçulmano na Indonésia, são corriqueiras, ganham um caráter completamente estranho para um marroquino. Há ainda divisões sectárias entre xiitas e sunitas. O sufismo é a tradição mística que atravessa essas duas tradições sectárias. Por isso, não é possível falar de um único Islã. Existe uma pluralidade de práticas e crenças religiosas que se pensam como parte dessa comunidade mundial definida como Islã.   

IHU On-Line - O que a divisão existente no Islã entre sunitas e xiitas representa para a comunidade islâmica?

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – Essas são as duas grandes divisões sectárias. Basicamente, os xiitas veem a família do Profeta como seres iluminados que guiam a comunidade dos fiéis enquanto os sunitas acreditam que o Profeta e sua família são seres religiosos, perfeitos, superiores, mas sem nenhum caráter sagrado, e que a comunidade dos fiéis pode ser guiada por líderes escolhidos por ela. Dessa divisão, criam-se diferentes tradições doutrinais, que terão maior ou menor importância, dependendo da época do contexto. Então, por exemplo, no século XVI, com a ascensão da Dinastia Safávida  no Irã, o xiismo se transformou na religião do país, até então majoritariamente sunita. Foi constituído, assim, um império xiita, o Império Persa, e impérios sunitas como os Otomanos e os Mongóis, na Índia. Nesse contexto, as divisões sectárias se relacionam com questões políticas, competições entre os Impérios etc. Mas nada impede, por exemplo, xiitas e sunitas de compartilharem devoções ou práticas religiosas. O Suf, por exemplo, tem devoção à família do Profeta. Os sufistas e xiistas compartilham várias práticas religiosas como a celebração da Ashura, a visitação dos lugares sagrados ligados à família do Profeta.

A vertente religiosa dominante na Arábia Saudita, o Wahhabismo, considera os xiitas hereges. Para os adeptos dessa corrente religiosa, os xiitas devem ser, na melhor das hipóteses, trazidos para a ortodoxia religiosa wahhabita ou serem rejeitados como muçulmanos. Então, cada contexto irá dizer as relevâncias dessas divisões sectárias. No Iraque, por exemplo, antes da queda de Saddam Hussein,  as identidades religiosas tinham uma importância na decisão do casamento, dos relacionamentos. Os xiitas eram bastante discriminados e reprimidos pelo governo de Saddam Hussein, mas, depois da invasão americana, essas identidades foram mobilizadas num contexto de guerra civil. Assim, existem tensões sectárias extremamente altas e a criação de discursos e acusações de ambas as partes. Em outros contextos, entretanto, essas divisões são percebidas como não importantes ou não relevantes. 

IHU On-Line - Com visões religiosas, éticas, políticas e morais distintas é possível pensar em uma ética mundial entre Islamismo, Cristianismo e Judaísmo? Quais são as possibilidades presentes no Islã para que este diálogo seja possível e quais os limites que o impedem ou o obstaculizam?

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O diálogo inter-religioso é possível, e as condições ou limitações não são exclusivas do Islã. O diálogo é muito fácil entre as três religiões, porque elas adoram o mesmo Deus; o que permite estabelecer um consenso, no entanto, também afirmam que a verdade pertence a elas. Então, a questão é definir o que se quer conquistar com o diálogo inter-religioso. O formato do diálogo, por sua vez, é feito da ótica cristão-judaica. Assim, a não inserção dos muçulmanos nessa configuração levou a uma situação em que é preciso mudar o modelo para incluí-los. Ao mesmo tempo, líderes mulçumanos estão engajados no diálogo inter-religioso há décadas. O falecido Mufti (Chefe do Islã Sunita) da Síria, Ahmad Kuftaru, sempre foi engajado no diálogo com outras religiões.

Disputas políticas
O importante é entender que as tensões e os conflitos existentes entre muçulmanos e não muçulmanos são derivados de processos políticos. Eles podem discutir durante décadas questões religiosas, mas, se não resolverem os processos políticos, os conflitos irão continuar. O conflito na Irlanda do Norte não foi “resolvido” com discussões teológicas, e sim com um pacto político. A valorização excessiva das dimensões religiosas dos conflitos do Oriente Médio é uma forma de ocultar os processos políticos e sociais que existem.

IHU On-Line - Considerando que a afirmação da própria identidade é fundamental para o diálogo inter-religioso, que aspectos de sua identidade o Islamismo não pode renunciar no diálogo com outras religiões?

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O Islã não pode renunciar àquilo que outras religiões também não podem renunciar, ou seja, às suas crenças e aos elementos que o definem como uma religião particular. Os cristãos não irão parar de considerar Cristo o Salvador e nem os judeus irão rejeitar a lei mosaica para aceitar Cristo. Os muçulmanos, por sua vez, não irão renegar a profecia de Maomé, mas eles aceitam a de Cristo. O que se quer com o diálogo inter-religioso? O que se pode ter é uma ênfase nos pontos doutrinais como éticos de cada religião e daí construir um universo de respeito. Quando o assunto é Islã, parece que o respeito é esquecido. O Papa Bento XVI fez uma declaração lamentável de que a profecia de Maomé só trouxe violência e destruição. Esses comentários não levam a nada.

IHU On-Line - Há, no Islã, relação entre poder religioso e político? Até que ponto um influencia o outro?

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – A relação entre Islã e política não é diferente da relação entre Cristianismo, Judaísmo ou Budismo e política. Essa ideia de que não existe separação entre política e religião no Islã é uma ficção que alguns orientalistas inventaram e vários fundamentalistas islâmicos adotaram com gosto. Desde o século IX, existe uma separação entre Estado e religião. O Califa governava em nome de Deus, da mesma maneira que todos os monarcas ocidentais governavam em nome Dele. Porém, o representante político muçulmano não podia interferir em questões doutrinais. Esses são assuntos para um grupo de especialistas, os ulama, letrados que tratam da religião.

Claro que, historicamente, existe um acordo entre elite política e religiosa. Então, os demais sempre legitimavam o poder do Califa que reinava. Agora, a ideia de que nunca existiu separação entre religião e política é completamente falsa, empiricamente incorreta na história do Islã. Isso não difere das outras religiões. Tradições religiosas como Cristianismo, Judaísmo e Budismo se aliaram ao poder político para tentar impor suas ortodoxias.

IHU On-Line - No Islã predominam mais aspectos místicos ou políticos?

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – Todo universo religioso tem uma dimensão política. O Papa é um líder político, as Igrejas Protestantes nos EUA têm uma atuação política, Israel se define como um Estado judeu. No entanto, ninguém fala que no Judaísmo ou no Cristianismo se confunda religião com política. Não entendo por que no Islã a dimensão política cause tanta estranheza. Existe uma dimensão política em todas as religiões, porque, entre outras coisas, elas falam de poder e isso tem a ver com a política. Mas a utilização de uma linguagem religiosa para a política também irá depender de aspectos históricos e contextos sociais. No século XX, vimos que, em todos os sistemas religiosos, inclusive no Islã, surgiram ideologias políticas que se pautam numa linguagem religiosa. A Teologia da Libertação,  por exemplo, nada mais é do que uma reformulação do Cristianismo Católico com fins claramente políticos e sociais. No século XX, vimos a ascensão do Islã político, mal definido como fundamentalismo islâmico, com a produção de vários grupos militantes. Eles se enfrentaram com estados autoritários, políticas colonialistas e com o imperialismo americano em vários contextos da modernidade. Isso não caracteriza o Islã como religião, e sim os vários cenários políticos em que ele é pensado.

IHU On-Line - Como a fé do Islã é vista, interpretada internacionalmente?

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O Islã foi eleito como sendo a alteridade da consciência euro-americana globalizada. Então, a fé islâmica é mal-interpretada e analisada. Essa questão de religião e política, no caso do Islã, produz um discurso sobre a essência do Islamismo, quando o mesmo fenômeno não produz discursos semelhantes sobre o Cristianismo, Judaísmo ou Budismo. Isso tem relação com uma questão ideológica da mídia que representa o mundo muçulmano como uma alteridade ameaçadora, o que se liga ao fato de que, no centro do mundo muçulmano, existem áreas de disputas geoestratégicas de políticas coloniais e imperiais no caso do Oriente Médio.

Atitudes extremistas as religiões têm. Claro que os homens-bomba palestinos do Hamas  não ajudam a criar uma imagem positiva do Islã. Mas é significativo que os mesmos discursos generalizantes não são produzidos sobre os colonos israelenses, que são dotados de uma visão judaico-messiânica extremamente violenta - em 1994, um colono judeu foi responsável pela morte de 29 palestinos na Mesquita de Hebrom -, ou sobre os grupos protestantes radicais dos EUA, que há anos praticam atentados e assassinatos contra médicos que trabalham em clínicas de aborto.

É evidente que existem movimentos e atos extremistas feitos em nome do Islã. Agora, a explicação para isso não está em nenhum verso do Alcorão, e sim no contexto social e político que levou interpretações violentas do Islã passarem a fazer sentido para um grupo de pessoas. Da mesma maneira que a explicação para a violência do IRA, na Irlanda, não está no Evangelho São Mateus, no Apocalipse, nem em nada do gênero, mas no contexto político local.

IHU On-Line - Qual é a contribuição do Islã para o desenvolvimento da ética e da paz planetária?

Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O Islã tem uma ética universalista de fraternidade, solidariedade, respeito, de moral no sentido de ter atitudes que levem ao bem comum. Essas são contribuições à civilização e fazem parte de uma herança muito rica produzida por todas as religiões. Assim, a contribuição dele não é nem maior, menor, melhor ou pior que a do Cristianismo, Judaísmo ou Budismo.

É importante nunca pensar em nenhuma dessas tradições religiosas em abstrato. Essas religiões só existem em casos concretos, os quais têm contextos históricos, políticos e culturais que devem ser levados em consideração. Portanto, se as pessoas não compreendem por que em determinado contexto um fato acontece, não é possível falar nada significativo sobre qual é a dinâmica cultural e social do Islã.

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