Edição 299 | 06 Julho 2009

Povos indígenas: inspiração para um modelo social alternativo

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Graziela Wolfart

Para Ponciano Acosta, os principais inimigos dos povos indígenas são os grandes capitais e interesses econômicos, que buscam se apropriar dos territórios e recursos naturais comunitários e os governos que avalizam estas políticas

Coordenador da Equipe Nacional de Pastoral Aborígene (Endepa), na Argentina, o padre Ponciano Acosta fala, na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, sobre a situação dos povos indígenas na Argentina que, segundo ele, é crítica. Segundo ele, no país, permanece vigente “um modelo de exclusão política, social, econômica e cultural dos povos indígenas”. “A violação dos direitos humanos, tanto coletivos como individuais, dos povos originários e seus membros, é uma realidade em nosso país”, define. Na opinião de Ponciano, “as principais lutas e os desafios centrais dos povos indígenas na atualidade estão focalizados na recuperação dos territórios ancestrais como centro de sua vida comunitária e o direito ao controle dos recursos naturais”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a situação dos povos indígenas na Argentina atualmente?

Ponciano Acosta - A situação dos povos indígenas hoje na Argentina é crítica. Mesmo que tenha havido um importante avanço a nível normativo, isto ainda não se traduziu na vida das comunidades, permanecendo vigente um modelo de exclusão política, social, econômica e cultural dos povos indígenas que até agora não foi removido. Evidencia-se uma ausência absoluta de políticas públicas que revertam a situação de discriminação e injustiça na qual se encontram os povos indígenas, que sofrem pela inaplicabilidade do direito vigente. As diferenças culturais são marcadas e o discurso oficial vertical não aceita o diálogo nem propostas alternativas que contemplem e reconheçam a identidade, a cosmovisão e as formas tradicionais dos povos originários. A violação dos direitos humanos, tanto coletivos como individuais, dos povos originários e seus membros, é uma realidade em nosso país.

IHU On-Line - Quais as principais lutas e os maiores desafios dos povos indígenas?

Ponciano Acosta - As principais lutas e os desafios centrais dos povos indígenas na atualidade estão focalizados na recuperação dos territórios ancestrais como centro de sua vida comunitária e o direito ao controle dos recursos naturais. Lembremos que as comunidades indígenas mantêm uma relação íntima com a terra e que toda a estrutura social comunitária se assenta sobre esta particular cosmovisão. A propriedade sobre a terra não tende a assegurar meios de produção ou acumular bens senão a garantir sua própria existência como comunidade com identidade diferenciada. Junto com o direito à terra, aos territórios, os povos indígenas se encontram reclamando pelo efetivo respeito à educação bilíngue e intercultural, identidade e participação em todas as ações que possam afetá-los de alguma maneira. Devemos dizer que os povos originários se encontram de pé, lutando por seus direitos e obtendo numerosas conquistas. Neste processo, está se alcançando cada vez mais um maior nível de organização, formação e articulação, tanto nas comunidades como nos povos originários de toda a América Latina.

IHU On-Line - Qual a opinião geral do povo argentino em relação às lutas e demandas do movimento indígena? O país tem um “rosto indígena”?

Ponciano Acosta - Por enquanto, podemos dizer que só uma parte do povo argentino é sensível às lutas e demandas do movimento indígena. Recordemos que, na Argentina, as comunidades indígenas não alcançam 5% do total da população. O modelo argentino nos falou sempre de uma sociedade forjada “à europeia” ou de “um crisol de raças que saiu dos barcos”, esquecendo intencionalmente o valioso aporte dos povos originários. Isto permanece vigente ainda hoje na mentalidade geral da sociedade argentina, o que mantém aparelhado um sistema perverso de discriminação e marginalização sistemática.

IHU On-Line - Como se relacionam o governo argentino e o movimento indígena no país?

Ponciano Acosta - A relação atual é de tensão. O governo argentino não tem dado ainda claras demonstrações de apoio ao movimento indígena e em geral as demandas são dirigidas contra o Estado (tanto Nacional como provinciais). Pelo contrário, o governo se volta a favor dos grandes interesses econômicos empresariais como minerais, florestais etc., atividades que levam a uma maior concentração da riqueza nas mãos de poucos e para cuja maior produção requer territórios livres de comunidades indígenas e famílias campesinas. Os organismos estatais nacionais e provinciais, responsáveis pela aplicação da política dos povos indígenas, se mantêm inalteráveis quanto a sua filosofia e seu atuar a respeito dos mesmos. Antes a inércia se justificava pela falta de recursos orçamentários. Hoje, esse argumento é insustentável e ao lado da ausência antes expressada, se levantam políticas públicas baseadas na dádiva e no clientelismo político.
 
IHU On-Line - Como aparecem os povos indígenas na Constituição Nacional Argentina? Ela favorece as lutas dos indígenas do país?

Ponciano Acosta - A Constituição Nacional, logo depois de sua reforma, em 1994, incorpora em seu texto o artigo 75, inciso 17, que significa uma verdadeira revolução em matéria de direitos indígenas. Ele reconhece a pré-existência dos povos indígenas com relação ao Estado Argentino e, em consequência, garante direitos comunitários, tais como identidade, participação, terra, gestão de recursos naturais, educação bilíngue e intercultural. Isso significa dizer que o marco constitucional é propício para uma verdadeira reivindicação dos povos originários. Lamentavelmente, não podemos dizer que acontece o mesmo na prática: os funcionários públicos não respeitam o espírito nem o mandato da Constituição e não fazem efetivo o reconhecimento dos direitos indígenas. Por outro lado, a legislação de hierarquia inferior (código civil etc.) ainda não se adequou, o que gera sérias dificuldades para o reconhecimento pleno dos direitos comunitários.

IHU On-Line - Quem são os principais amigos e os principais inimigos dos povos indígenas na América Latina hoje?

Ponciano Acosta - Os principais amigos dos povos indígenas na América Latina, hoje, são as próprias redes de articulação e intercâmbio indígena que tem se fortalecido nos últimos anos. A Igreja Católica os acompanha também nos diversos países com uma Pastoral Aborígene respeitosa da identidade, espiritualidade, cosmovisão e valores próprios. Outras igrejas estão envolvidas no acompanhamento com uma tônica similar. Existem Ongs comprometidas especificamente com a luta indígena ou, em geral, com os direitos humanos. Nos últimos anos, alguns organismos internacionais vêm intervindo em causas comunitárias e denunciando publicamente as políticas de extermínio dos povos indígenas. Entre estes, podemos citar a Comissão e Corte Interamericana, a OIT, através de seus informes e o relator dos direitos indígenas da ONU.

Como principais inimigos, poderíamos citar os grandes capitais e interesses econômicos, que buscam se apropriar dos territórios e recursos naturais comunitários e os governos que avalizam estas políticas. O território das comunidades, ainda mais aquelas que têm conseguido obter a titularização, encontra-se em perigo por não estar assegurado efetivamente o controle de seus recursos naturais. Mesmo que nos últimos anos se tenha verificado alguns progressos em relação à titularização de terras comunitárias, também houve uma explosão das autorizações de desmontes, aproveitamentos florestais ou mineiros que põem em risco o equilíbrio comunitário. Existe, além disso, uma grave preocupação pela contaminação ambiental ocasionada por tais atividades, realizadas sem sérios estudos de impacto ambiental ou audiências participativas.

IHU On-Line - Qual o papel da Endepa em relação ao movimento indígena na Argentina e na América Latina?

Ponciano Acosta – A Endepa, como organismo da Igreja Católica Argentina, está completando 25 anos de trabalho articulado. Em todo este tempo, vemos que, pouco a pouco, o protagonismo indígena crescente nos desafia a continuar repensando a metodologia de trabalho. Por isso, cada vez mais nossa ação é de acompanhamento e de valorização. Cremos que muito se tem colaborado em favor da causa indígena. Hoje, continua sendo imperioso sensibilizar a sociedade sobre a problemática dos povos indígenas, mas também é preciso resgatar todos os valores que eles conservam e que servem de inspiração para um modelo social alternativo.

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