Edição 295 | 01 Junho 2009

Microgestão e produção de saberes no trabalho associado

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Graziela Wolfart

No caso estudado por Vera Schmitz, o trabalhador, na microgestão da atividade de trabalho, exercita um determinado nível de autogestão, com forte marca na singularidade. Além disso, a microgestão potencializa a produção e mobilização dos saberes do trabalho, o que é central para aprofundar o entendimento e o exercício da autonomia no trabalho associado 

Na última edição do evento IHU Ideias, promovido pelo IHU no dia 28-05-2009, a Profa. Dra. Vera Regina Schmitz, colaboradora do Instituto Humanitas Unisinos, proferiu a palestra “Microgestão e produção de saberes no trabalho associado. Um estudo da Cooperativa de Produção Cristo Rei Ltda”. O tema foi desenvolvido pela professora Vera em sua tese de doutorado em Educação, recentemente defendida na Unisinos. Vera, que também é professora das Ciências da Comunicação da Unisinos, respondeu as questões que seguem à IHU On-Line, por e-mail, comentando aspectos do assunto desenvolvido no evento.

A tese teve como objeto de estudo a (auto)gestão e os saberes produzidos pelos trabalhadores em situação de trabalho associado, sob a perspectiva da ergologia, com vistas a contribuir com a consolidação destes campos de conhecimento na economia solidária. Na pesquisa, Vera realizou um estudo de caso na Cooperativa de Produção Cristo Rei Ltda – COOPEREI, uma cooperativa autogestionária originada da antiga indústria metalúrgica Carlos Augusto Meyer S/A - Alumínio Econômico, de São Leopoldo/RS.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line - Como você caracteriza a (auto)gestão realizada pelos trabalhadores em situação de trabalho associado? O que pode ser entendido por microgestão neste contexto?

Vera Schmitz - Segundo a ergologia, a gestão implica em escolhas e decisões, e ambos os processos orientam-se pela aprendizagem construída historicamente, com base em inúmeras experiências que o homem toma ao longo da sua vida. A autogestão não se dá por decreto e/ou aplicação e não se resume a uma forma de gestão, detectando-se, então, o próprio limite do movimento histórico da autogestão, que teve e tem dificuldades de realização. Considera-se que, no trabalho associado, cada empreendimento econômico solidário tem sua história singular, que continua sendo tecida diariamente pelas escolhas que o trabalhador, individual e coletivamente, toma, e que, ao mesmo tempo, sustentam-se em variáveis que são externas a ele.

Ainda referente a sua pergunta, é importante caracterizar ergologia, entendida como um dispositivo teórico-metodológico criado pelo filósofo Yves Schwartz,  que tem como base e ponto de partida os estudos da atividade humana. Reconhecida como uma disciplina de pensamento, a ergologia estuda o trabalho em sua microdimensão, a partir da distância  apontada pela ergonomia, entre o trabalho prescrito e o trabalho efetivamente realizado. Segundo Schwartz, é nesta distância que acontece a microgestão no trabalho. Ainda, a ergologia identifica a atividade como debate de normas e configura-se como um projeto de intervenção sobre as situações de trabalho, com a intenção de transformá-las. Busca nas diferentes ciências - tais como na linguagem, na psicologia, na antropologia, na filosofia, ou seja, na pluridisciplinaridade – sua compreensão e amparo para entender o que a atividade humana pode oferecer como fonte de experiência e de sentido da vida.

Salienta-se a potencialidade que a ergologia tem para trabalhar a ação do sujeito nas iniciativas de trabalho associado. Isso implica assumir que o trabalho é sempre história em construção, e a ergologia ajuda a compreender o processo histórico, incorporando-o ao cotidiano. Externaliza a singularidade do sujeito que, ao formalizar a experiência, colocando-a em palavras, torna-a possível de ser comunicada e apreendida.

No caso estudado, percebeu-se que o trabalhador, na microgestão da atividade de trabalho, exercita um determinado nível de autogestão, com forte marca na singularidade, e algumas articulações estabelecidas com o ideário da autogestão coletiva em todos os outros níveis.  Por sua vez, destaca-se que a microgestão, que é sempre singular, potencializa a produção e mobilização dos saberes do trabalho. Esta é uma questão central para aprofundar o entendimento e o exercício da autonomia no trabalho associado. 

IHU On-Line - Quais são os saberes produzidos por eles, a partir do estudo realizado por você da Cooperativa de Produção Cristo Rei Ltda - COOPEREI?

Vera Schmitz - O referencial da ergologia, que se compõe e dialoga com outras disciplinas, potencializa o reconhecimento dos saberes produzidos em situação de trabalho, pois foca a iniciativa do trabalhador, normas existentes e dadas na própria atividade de trabalho, que são quase invisíveis e não colocadas em discurso pelo trabalhador.  

Em relação à explicitação de um inventário de saberes, que poderiam ser considerados gerais e de certa forma universais para o exercício da autogestão, a COOPEREI nos deixa como “luzes” o idealismo, a seriedade como empreendimento de Economia Solidária e o reconhecimento de que está inserido num contexto muito maior; a dedicação na fabricação de um produto bem feito para ser vendido; a superação do preconceito com o trabalho do idoso; a solidariedade percebida na maioria dos textos das entrevistas realizadas e nos momentos de observação direta, quando da realização das visitas de campo. Alguns elementos ainda são frágeis, como o exercício da autogestão, assim como é frágil, em alguns momentos, a cooperação interna, entre setores, indicando um trabalho individualizado, fruto da cultura do trabalho que existia na empresa anterior, na qual o trabalho era pensado e realizado de forma heterogestionária.

IHU On-Line - Como entender a microgestão sob a perspectiva da ergologia? Qual a contribuição deste conceito para essa área do conhecimento, principalmente se relacionarmos saberes, educação popular e ergologia?

Vera Schmitz - O trabalho humano está sujeito a muitas variabilidades. O trabalho real, como aquele efetivamente realizado pelo trabalhador, nunca retrata o que foi previamente pensado e antecipado, fixado por regras e orientado por objetivos como prescrição do trabalho pelos administradores. Ao realizá-lo, o trabalhador vê-se diante de várias situações: dificuldade de previsão, panes, diferenças de ritmos, cansaço, efeitos da idade, entre outras, e, então, age em situação, alterando as prescrições. Um dos grandes legados da abordagem ergológica é a aproximação dos conceitos ao local do vivido, buscando aderência  e, nesse sentido, apreender as configurações de saberes e dos valores gerados no “aqui e agora”. 

O diálogo e desenvolvimento de pesquisas, levando em consideração a autogestão, a ergologia e a educação, proporcionam uma ampliação do campo de pesquisa, estudos e intervenção social sobre trabalho e educação. Além disso, a ergologia permite que se conheça, talvez de forma mais complexa, as relações entre concepção e execução no exercício da atividade de trabalho. Destaca-se, aqui, que esta contribuição é muito importante para o movimento da Economia Solidária e da autogestão, que tem na sua base a discussão de outra economia, fudamentada, entre outros aspectos, no trabalho associado. 

Nos avanços da pesquisa de Yves Schwartz, ele apresenta o dispositivo teórico-metodológico, a três polos, que possibilita o desenvolvimento de pesquisa pluridisciplinar sobre a atividade de trabalho e, consequentemente, neste caso, sobre a produção de saberes do trabalho associado, permitindo a aproximação dos conceitos ao local do vivido, buscando aderência. Este dispositivo é formado pelo polo dos conceitos, que comporta os saberes disciplinares ou acadêmicos; pelo polo dos saberes da experiência, gerados na atividade de trabalho; e pelo polo das exigências éticas e epistemológicas, que enxerga no outro alguém com quem irá aprender, potencializando conhecer o trabalho associado. No interior deste dispositivo, os conceitos e os saberes da experiência são questionados mutuamente, entre o primeiro e o segundo polos, num processo dialético. Destaca-se que os princípios deste dispositivo dialogam com os fundamentos da educação popular, favorecendo, assim, um trabalho de pesquisa-formação com um viés emancipatório.  

IHU On-Line - Em que medida podemos identificar a proposta da economia solidária nas ações de gestão do trabalho associado?

Vera Schmitz - Evidencia-se que a ergologia coloca em discussão alguns elementos presentes na educação, na administração e em outras ciências humanas e sociais, pois considera o trabalhador como um ser que cria e recria, e não um trabalhador que não possui espaço para gerir o seu trabalho, a não ser aquele que a empresa lhe delega. Na sua experiência de trabalho, o trabalhador produz e acumula muito conhecimento, passível de ser legitimado por iniciativas, envolvendo movimentos sociais e outros atores da sociedade. E ainda, em relação à Economia Solidária, destaca-se sua proposta política e econômica, que busca superar modelos opressores vigentes nos espaços de trabalho de produção ou de serviços. Entretanto, na distância existente entre o prescrito e o realizado há a microgestão, portanto há um espaço de liberdade de escolhas do trabalhador.

IHU On-Line - De forma geral, como você caracteriza a situação de trabalho e as contradições de uma cooperativa de produção? Quais os desafios e limites que podem ser apontados?

Vera Schmitz - Neste exemplo de pesquisa, o trabalhador tem capacidade de trabalho, conhecimento sobre a atividade que desenvolve realizando, portanto, a microgestão de seu trabalho. Aparentemente, pelos depoimentos recolhidos, as normas e valores relacionados à autogestão coletiva da fábrica não aparecem de forma significativa para os trabalhadores, não implicando alguma alteração relevante, ou pelo menos um “debate interno” nas formas de realizar a microgestão do trabalho. Isto é, estabelece-se uma distância, ou talvez uma contradição, entre a positividade revelada de iniciativa e renormalização da relação de cada trabalhador com a sua máquina e sua tarefa e a gestão coletiva que potencialmente teria um espaço aberto para iniciativa e renormalização. Tal constatação abre espaço para se pensar na hipótese de que o desvelamento, para o coletivo de trabalhadores, da capacidade de iniciativa singular – de gestão e de produção de saberes construídos na experiência; ambos centrais para a existência e sobrevivência da cooperativa -, pode contribuir para o repensar dos processos mais amplos de gestão e da produção da cooperativa.

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