Edição 295 | 01 Junho 2009

Não cedas do teu desejo: é preciso sustentarmos o que falamos com voz própria

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Márcia Junges

Temática lacaniana sobre o significado da fala, sua função e possibilidade hoje é tema do Colóquio Internacional A ética da Psicanálise. O filósofo e psicanalista Mario Fleigexamina as proposições do evento e pontua: “A ética da psicanálise corresponde a uma ética do desejo”

"Compreendemos que a fórmula proposta por Lacan, ‘não cedas de teu desejo’, significa não abrir mão daquilo que se enuncia na fala que endereçamos ao outro, ou seja, sustentarmos o que falamos com voz própria”, afirma o filósofo e psicanalista Mario Fleig explicando o tema do Colóquio Internacional A ética da psicanálise: Lacan estaria justificado em dizer “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur ton désir?]. A entrevista, exclusiva, foi concedida por e-mail à IHU On-Line. De acordo com Fleig, alguns dos questionamentos que estarão em pauta em 14 e 15 de agosto de 2009, quando acontece o evento, no Auditório Mondercil Paulo de Moraes, sede do Ministério Público, em Porto Alegre, são: O que significa falar? Qual é a função da fala? Para que serve falar? Será que hoje ainda conseguimos efetivamente falar?

Ele acentua, também, que a “a ética da psicanálise corresponde a uma ética do desejo”. Mas alerta: “A ética do desejo não coincide com um imperativo de tudo gozar, mas sim com o confronto do sujeito com o julgamento de seu compromisso com seu dizer e seu agir”. O Colóquio é uma promoção da Association Lacanienne Internationale – ALI, Escola de Estudos Psicanalíticos – EEP, do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, do Laboratório de Filosofia e Psicanálise, do PPG Filosofia – Unisinos, do GT Filosofia e Psicanálise, Região Sul, da ANPOF e do Laboratório de Psicopatologia Fundamental - Faculdade de Direito –Fundação Escola Superior do Ministério Público - ESMP.

Mario Fleig é professor do curso de pós-graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia, pela UFRGS, doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e pós-doutor  em Ética e Psicanálise, pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que consiste o Colóquio “A ética da psicanálise: Lacan estaria justificado em dizer ‘não cedas de teu desejo’? [ne cède pas sur ton désir]?"”

Mario Fleig - O colóquio internacional sobre “A ética da psicanálise” tem como objetivo principal discutir a pertinência e a fundamentação de uma ética a partir da descoberta freudiana das determinações inconscientes de nossos pensamentos, palavras e atos. Freud  forneceu, a partir de seu trabalho clínico, as indicações decisivas para uma ética que levasse em conta a verdade emergente na particularidade de cada sujeito e as determinações inconscientes do dever-ser. Tal modo de colocar a dimensão ética do ser humano situava-se para além dos pressupostos metafísicos e religiosos tradicionais. Lacan  retomou as pistas deixadas por Freud e se propôs a elaborá-las, dedicando para isso um ano de trabalho em seu seminário, que teve como título precisamente “a ética da psicanálise”. O elemento principal que Freud introduz no campo ético, que não comparecia na ética das virtudes de Aristóteles  e nem na ética do sujeito autônomo de Kant,  é a questão do desejo. Sabemos que Spinoza  já havia reservado ao desejo um lugar central em sua ética. Deste modo, a ética da psicanálise corresponde a uma ética do desejo.

Neste Colóquio Internacional, queremos questionar o que significa, fundamenta a ética a partir do desejo, e para isso precisamos voltar aos enunciados de Freud e de Lacan e às discussões que ambos teceram com a tradição ocidental em três frentes: as discussões com os filósofos, com as tradições religiosas e com as tragédias antigas e modernas.

Confusão entre gozo e desejo

Um ponto inicial precisa ser ressaltado: a ética da psicanálise proposta por Freud e Lacan reconhece que a distância entre o gozo e o desejo somente se sustenta pela referência à Lei. Deste modo, o apagamento da Lei e do lugar de onde ela é operada resultaria em uma confusão entre o gozo e o desejo que seria determinante da ilusão de que não haveria limite para a vontade de tudo usufruir. A recusa de tal perspectiva transparece no posicionamento radical de Freud de não ceder nas palavras, pois se assim o fizermos estaremos em seguida cedendo nas coisas. Em outras palavras, a ética do desejo não coincide com um imperativo de tudo gozar, mas sim com o confronto do sujeito com o julgamento de seu compromisso com seu dizer e seu agir.

Freud relata uma experiência decisiva quanto à questão do juízo moral: certa feita estava a andar por uma rua em companhia de seu amado pai e eis que são abordados por indivíduos que os afrontam e ordenam que deixem o passeio livre. Não bastando isso, tomam o chapéu de seu pai e o jogam na lama, insultando-o. Frente a esta cena atroz, o menino fica na expectativa do que fará seu pai. Este abandona o passeio, apanha seu chapéu enxovalhado e de cabeça baixa, sem nada dizer, segue seu caminho. O jovem Freud fica perplexo: não sabe se seu pai é um covarde ou um grande homem. Só lhe resta a alternativa de suspender seu juízo moral sobre o ato de seu amado pai. Este é um traço fundamental da ética do psicanalista: suspender o juízo sobre o ato de seu analisante, e assim pode tomar uma posição de imparcialidade que viabilize ouvir sem restrição o que este tem a dizer. O resultado de tal posição, assim mostra o trabalho clínico cotidiano, viabiliza que o sujeito possa efetivamente tirar as consequências do que significa se entregar ao ato de falar para um outro que suporta ouvi-lo. O que emerge de tal exercício é a dimensão da verdade que até então se mantinha emudecida.

Economia do desejo

É interessante observar que, após ter trabalhado arduamente durante um ano inteiro (1959-1960) em torno da conceituação do que seja uma ética da psicanálise, Lacan se declarou descontente com o resultado obtido, relançando o problema para os próprios psicanalistas. Contudo, se a descoberta de Freud é a do inconsciente, da verdade sexual que o habita e do valor da fala que anima o sintoma quanto a essa verdade, o trabalho de Lacan foi, entre outros, em referir esse inconsciente às estruturas próprias da linguagem, de promover essa descoberta à dignidade de uma ética quanto à economia do desejo.  Em seu seminário de 5 de maio de 1965 – Problemas cruciais para a psicanálise –, ele diz que “Ser psicanalista é uma posição responsável, a mais responsável de todas, pois que ele é aquele a quem está confiada a operação de uma conversão ética radical, aquela que introduz o sujeito na ordem do desejo”.

Compreendemos então que a fórmula proposta por Lacan, “não cedas de teu desejo”, significa não abrir mão daquilo que se enuncia na fala que endereçamos ao outro, ou seja, sustentarmos o que falamos com voz própria. A importância da função da fala articulada no campo da linguagem não é uma descoberta psicanalítica. Bem pelo contrário, encontramos, por exemplo, na tradição judaico-cristã, a convocação do fiel pelo chamado que lhe é dirigido pela divindade e frente ao qual há uma vacilação e tentação de recuo. Jonas, por exemplo, nada queria saber deste chamado ou vocação e somente após uma fracassada tentativa de fuga pôde se retomar e responder à altura. Também poderíamos lembrar a tergiversação de Moisés, que alegou toda sorte de incapacidades para se furtar ao chamado, mas sem sucesso. Aristóteles, para nos referirmos a uma das grandes matrizes éticas do Ocidente, não cessa de fazer indicações sobre a relação intrínseca entre o logos e a ética. Isso para nos introduzir na perspectiva da ética da psicanálise: a ética encontra na fala e na sua função seus elementos definidores. Mais do que isso, a psicanálise como tal nada mais é do que uma experiência de fala. Lembremos que Aristóteles, ao se perguntar o que poderia definir o ser humano, respondeu que era um ser vivo capaz de logos, e que era isso que tornava apto para habitar a polis, ou seja, viver junto com outros. Será então que nos damos conta do que significa falar?

Assim poderíamos caracterizar o tema deste Colóquio sobre a ética da psicanálise: o que significa falar? Qual é a função da fala? Para que serve falar? Será que hoje ainda conseguimos efetivamente falar?

IHU On-Line - Qual será a metodologia do Colóquio?

Mario Fleig - A proposta é de realizar um “colóquio”, no sentido desencadear uma discussão em torno de uma questão controversa que surgiu em conversas anteriores entre os proponentes do mesmo. Assim, o colóquio é desencadeado por seus proponentes, que convidam interlocutores para ampliar o debate em um espaço público. O termo “colóquio”, em sua etimologia, aponta para a fala com outro. No caso, a fala com o outro sobre um assunto considerado relevante: seria possível convocar os seres humanos para a responsabilidade de um novo convívio entre os homens, no qual cada sujeito possa estar engajado. Dentro destes pressupostos, o Colóquio se desenvolverá em torno de oito mesas de discussão, em dois dias de trabalho, animados por exposições seguidas de debates.

IHU On-Line - Por que o evento irá acontecer em Porto Alegre?

Mario Fleig - A grande Porto Alegre foi escolhida em função da receptividade do tema proposto, que faz eco tanto ao Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos?, promovido pelo IHU, quanto ao seminário proferido por Charles Melman, “Como alguém se torna paranóico? - De Schreber a nossos dias”, ambos em 2007. Encontramos interesse por parte do Ministério Público, que então abriu suas portas para acolher o Colóquio em suas dependências, precipitando assim a escolha de Porto Alegre como sede do evento.

IHU On-Line - Por que foi estabelecida uma parceria com o IHU?

Mario Fleig - O IHU, desde sua fundação, tem sustentado uma perspectiva sensível aos temas cruciais de nosso tempo. A temática da ética sustentada por Lacan não se coaduna com a posição de redução do convívio humano a pura horizontalidade. Pelo contrário, Lacan faz referência a uma degenerescência catastrófica resultante da evaporação do lugar de exceção, antes ocupado pela figura do rei ou pelo pai do sistema patriarcal. O declínio do pai não pode ser confundido com a dissolução do lugar do pai ou da autoridade, que repõe a dissimetria entre os iguais e aquele que sustenta a autoridade. Em outras palavras, a perspectiva da ética da psicanálise não deixa de reconhecer a importância do lugar de exceção que sustenta o exercício da autoridade, lugar este que poderia ser denominado de transcendente ou vertical. Acreditamos que a afirmação da instância da Lei que emana do lugar de exceção constitui o ponto de concordância que permite a parceria entre as instituições que propõem o Colóquio sobre a ética da psicanálise.

IHU On-Line - Quem é Charles Melman?  Qual é sua trajetória intelectual e sua relação com Lacan?

Mario Fleig - Charles Melman, psiquiatra e psicanalista, é o mais importante aluno de Lacan, destacando-se por ter assumido então a direção do ensino da psicanálise na École freudienne de Paris. Após a dissolução desta, ele propõe a fundação da Associação freudiana, que atualmente se chama Associação Lacaniana, e se destaca pela transmissão da psicanálise em confronto com os desafios e impasses de nosso tempo. Assim, Melman tem incentivado a inovação no campo do trabalho clínico e no diálogo do psicanalista com os assuntos urgentes da vida cotidiana e da vida política nos cenários locais e no cenário internacional. Por exemplo, frentes aos impasses de convívio entre as três grandes tradições monoteístas que caracterizam o Ocidente, o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, ele tem sustentado espaços de diálogo que visam retomar a história comum destas tradições e abrir formas de reconhecimento diferentes das que tomam conta da cena internacional em direção a conflitos mortíferos.

Assim, Melman, além de ser um reconhecido psicanalista que não abre mão de seu trabalho clínico cotidiano, tem uma contribuição conceitual que abarca tanto a análise dos efeitos subjetivos das mutações do discurso social quanto propõe uma elucidação dos fatos sociais à luz do que seus analisantes lhe ensinam. Suas contribuições relevantes vão desde seus estudos sobre a clínica das psicoses, da histeria, da neurose obsessiva, das perversões, até sua caracterização do que denominou de neo-sujeito que especifica uma nova economia psíquica, tendo como correlato novas formas clínicas. Denominou este neo-sujeito de “o homem sem gravidade”, cuja economia psíquica corresponde ao modelo da economia neoliberal contemporânea.

IHU On-Line - Quais são as principais contribuições de Melman à psicanálise?

Mario Fleig - Além das publicações de seus seminários e intervenções, Melman tem promovido um intenso trabalho coletivo que resulta em revistas (por exemplo, La Celibataire, Revue Lacanienne), promoção de congressos, colóquio e jornadas, e, em especial, a publicação da transcrição de todos os seminários de Lacan.

O conjunto da obra de Melman reflete a promoção de uma leitura atenta do legado de Lacan e Freud, confrontando constantemente os conceitos com a prática clínica e assim extraindo deste legado os suportes necessários para pensar os desafios de nossos tempos. O que transparece nos textos de Melman, assim como em suas falas, é a recusa da repetição de fórmulas prontas e solidificadas. Ele não cessa de convocar seus interlocutores para as questões que não dominamos e não temos respostas. 

IHU On-Line - Que sentido tem a frase “não cedas de teu desejo”? (ne cède pas sur ton désir)? Como podemos compreendê-la corretamente?

Mario Fleig - Freud conclui sua obra capital, A interpretação dos sonhos, afirmando que o desejo é indestrutível. Contudo, o fato de que o desejo não possa ser destruído não implica que não que não se possa abandoná-lo, não levá-lo a sério, contemporizar, desistir dele. A convocação de Lacan para que o sujeito não ceda de seu desejo tem, então, o sentido de que a lassidão moral, o pecado na expressão da teologia moral, seria o sujeito abrir mão daquilo que fala em sua fala. Em outras palavras, ceder de seu desejo é desistir do desejo que habita o sujeito. Dizer “seu desejo” não se confunde com “sua vontade”. “Seu desejo” remete ao desejo que vem do Outro endereçado ao sujeito e com o qual cada um tem que se haver. O desejo fala em minha fala para além de minhas aspirações e de minha vontade. A vontade está sob meu comando, o desejo me pede muito mais do que minha vontade quer. O desejo me pede sempre o impossível e por isso nada o esgota. Contudo, o desejo não se confunde com o imperativo categórico de Kant, apesar de que ambos pedem o impossível. Também o imperativo sadeano pede o impossível, e nem por isso se confunde com o desejo, visto que pede o gozo sem limite no qual o sujeito se oferece aos deuses obscuros. Contudo, o leitor certamente ainda ficou sem entender bem o que significa “não cedas do teu desejo”. Isso então poderá se constituir em um desafio, que é o mesmo que tomou a nós que estamos propondo este Colóquio.

Leia mais...

>> Confira outras entrevistas concedidas por Mario Fleig.

Entrevistas:

* As modificações da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. IHU On-Line número 150, de 08-08-2005;

* Freud e a descoberta do mal-estar do sujeito na civilização. IHU On-Line número 179, de 08-05-2006;

* O declínio da responsabilidade. IHU On-Line número 185, de 19-06-2006;

* O delírio de autonomia e a dissolução dos fundamentos da moral. IHU On-Line número 220, de 21-05-2007;

* “Querer fazer o mal parece algo inerente à condição humana”. IHU On-Line número 265, de 21-07-2008;

Saiba mais...

>> Confira a programação completa do Colóquio Internacional A ética da psicanálise: Lacan estaria justificado em dizer “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur ton désir]?, no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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