Edição 295 | 01 Junho 2009

Desafios da inculturação do cristianismo

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Patricia Fachin

Para o teólogo Degislando Nóbrega de Lima, a inculturação do cristianismo no mundo plural remete a compreensão da evangelização associada à educação contínua de esperança

As questões que fazem parte do debate acerca do pluralismo religioso têm suscitado uma reflexão exaustiva sobre a identidade: “Quem somos? O que propomos? O que nos distingue? Do quê e de quem podemos/devemos nos aproximar? O que temos de corrigir, inserir ou depurar para continuar sendo quem somos ou deveríamos ser?”. A opinião é defendida pelo teólogo e professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Degislando Nóbrega de Lima. Para ele, essas questões “mobilizam de forma subjacente ou explícita o cristianismo atual”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Lima afirma que o desafio para a inculturação do cristianismo num mundo pluralizado, está diretamente ligado à libertação da mensagem cristã “dessa fixação agressiva na recomposição de uma unidade perdida”. E dispara: essa libertação supõe superar “o medo da liberdade alheia, medo pela salvação das maiorias, e o medo de que o Evangelho não baste para tocar, atrair as pessoas”. Para ele, trata-se de levar a sério a “missão como contínuo processo de ir discernindo na história a possibilidade e a exigência da revelação de Deus como revelação do homem ao próprio homem, de modo que a fé cristã não seja nivelada a um suporte técnico entre os tantos já disponíveis no universo da racionalidade instrumental”.

Degislando Nóbrega de Lima possui graduação em Teologia, pelo Centro de Estudos de Filosofia e Teologia do Seminário Imaculada Conceição da Arquidiocese da Paraíba, e doutorado em Teologia da Missão - Westfälische Wilhelms Universität Munster, na Alemanha. Atualmente, é coordenador do curso de pós-graduação da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como vem sendo refletida a interface entre contextos modernos/pós-modernos e o cristianismo no mundo globalizado?

Degislando Nóbrega de Lima - O mundo globalizado introduz um paradoxo complexo: por um lado, através das tecnologias da comunicação, ele nos torna evidente a diversidade, a pluralidade, portanto, as diferenças culturais, religiosas, de gênero etc. e, por outro, dado o peso do mercado e das mercadorias nesse processo, ele fomenta e até postula uma homogeneização das identidades através da promessa de felicidade pelo consumo que, por sua vez, demanda um sujeito a-crítico, infinitamente disponível aos fluxos dos mercados e das mercadorias. Trata-se da tendência de ditar comportamentos dirigindo desejos e aspirações coletivas. Ao primeiro polo desse paradoxo, ou seja, da emergência do outro(a), do diferente, a reflexão sistemática cristã tem respondido com o paradigma da inculturação que implica a superação de todo tipo de etnocentrismo e da perspectiva de conquista e de dominação na relação com o outro cultural, religioso, etc. A Conferência de Santo Domingo plasmou essa perspectiva de uma evangelização inculturada na América Latina. Face à segunda tendência do mundo globalizado, a reflexão cristã vem respondendo com a tematização dos desafios decorrentes do modo de produção do mundo atual: a crise ecológica, a justiça e a ética.

IHU On-Line - Quais são os desafios para uma inculturação do cristianismo em um contexto plural religiosamente e culturalmente?

Degislando Nóbrega de Lima - É importante chamar a atenção para o fato de que o paradigma da inculturação, assim como acontece com outros valores, também pode ser compreendido de maneira pervertida. Isso acontece, por exemplo, quando se toma inculturação como uma tática suave, menos agressiva de conquista. E, infelizmente, isso acontece com frequência porque muitos cristãos identificam a finalidade da evangelização com a recomposição de um mundo supostamente intacto e unânime em torno da fé e da Igreja, ou seja, com a reconstituição da cristandade. Claro que desse apelo emergirá uma disposição missionária focada no quantitativo, portanto, na maximização da conquista e da expansão dos territórios sagrados. O ideal subjacente é alcançar uma correspondência completa entre sociedade e Igreja. Ora, as condições sociais, políticas e culturais que favoreceram essa “correspondência” na cristandade foram há muito superadas e, por isso, temos, ao contrário, um pluralismo cultural que não oferece ao cristianismo os mesmos braços que a cristandade contava (o Estado, por exemplo) tanto para se expandir como para sustentar a unidade, uma coesão de base. Assim, entendo que um grande desafio, para uma inculturação do cristianismo num contexto plural hoje, é libertar a mensagem cristã dessa fixação regressiva na recomposição de uma unidade perdida. Essa libertação supõe superar, como bem frisava o teólogo uruguaio Juan Luis Segundo,  o medo da liberdade alheia, medo pela salvação das maiorias e o medo de que o Evangelho não baste para tocar, atrair as pessoas. Trata-se de levar a sério a necessidade do deslocamento, como imperativo do próprio Evangelho, da missão como conquista para missão como contínuo processo de ir discernindo na história a possibilidade e a exigência da revelação de Deus como revelação do homem ao próprio homem, de modo que a fé cristã não seja nivelada a um suporte técnico entre os tantos já disponíveis no universo da racionalidade instrumental. Daí sua relevância, como tão convictamente declarou o Concílio Vaticano II  na GS  11, na capacidade e, porque não dizer, na arte de iluminar todas as coisas com uma luz nova e, a partir do conhecimento do desígnio de Deus acerca da vocação integral do homem, orientar o espírito para soluções plenamente humanas. Diálogos, portanto, é a palavra correlata, expressão práxica da inculturação no mundo plural. Penso que inculturação do cristianismo no mundo plural remete-nos a compreender a evangelização associada à noção de uma educação contínua da esperança, do futuro aberto de Deus que se enriquece e se atualiza na complexidade dos novos desafios da história.

IHU On-Line - Como o senhor contextualiza o cristianismo no cenário de pluralismo religioso atual?

Degislando Nóbrega de Lima - Essa contextualização é muito difícil de propor devido à complexidade e diversidade das expressões atuais do cristianismo, dos níveis de pertença cristã e das responsabilidades na caminhada das comunidades, grupos, movimentos, magistério da Igreja etc. Como cristão católico, percebo que o cenário do pluralismo religioso tem nos mobilizado a refletir exaustivamente sobre a questão da identidade: quem somos? O que propomos? O que nos distingue? Do quê e de quem podemos/devemos nos aproximar? O que temos de corrigir, inserir ou depurar para continuar sendo quem somos ou deveríamos ser? Penso que essas questões mobilizam de forma subjacente ou explícita o cristianismo atual e que elas recebem respostas diferenciadas, tanto em nível prático como teórico e, às vezes, antagônicas. Essas respostas são, em geral, marcadas por um processo de regionalização articulado, ao mesmo tempo, ao fenômeno da globalização. Daí emerge uma tensão entre a valorização da particularidade dos contextos com o postulado de validade e reconhecimento das expressões de heranças culturais, das demandas de gênero e de minorias e a questão decisiva da possibilidade de manter vínculos reais de unidade e de entendimento entre teologias e práticas cristãs diversas. A questão da identidade cristã no cenário do pluralismo confronta-se, assim, com o desafio da inculturação da fé em cada contexto evitando, no entanto, a absolutização desse contexto para que não seja obstruído o diálogo e a possibilidade de participação ativa, numa rede comunicativa mais ampla. Outro desafio que se impõe é o da relação com as religiões não-cristãs que tem sido respondido no horizonte do “diálogo inter-religioso”. A Conferência de Santo Domingo, ao refletir sobre a pluralidade religiosa da América Latina, afirma ser necessário aprofundar o diálogo com as religiões não cristãs presentes no continente, que foram durante muito tempo ignoradas ou marginalizadas, buscando superar preconceitos e incompreensões. Esse diálogo tem um amplo espaço de intensificação no campo das ações comuns em favor da paz, da promoção e defesa da dignidade humana, bem como em defesa da criação e do equilíbrio ecológico.

IHU On-Line - Qual a analise que o senhor faz da conjuntura atual da Igreja e do Vaticano?

Degislando Nóbrega de Lima - O Concílio Vaticano II que recuperou a perspectiva eclesiológica de communio clesiarum e da Igreja como comunhão, que esclareceu a universalidade da graça de Deus e situou a Igreja como sacramento da salvação, continua em processo de recepção, seja no sentido positivo, seja pela via da resistência e até mesmo da rejeição. O enfoque trinitário que o Vaticano II dá à autocompreensão da Igreja abre perspectivas inovadoras para a constituição da Igreja como comunhão e para a relação com o mundo. Penso que a conjuntura atual da Igreja espelha bem essa tensão, que se apresenta agora sem velamentos, entre a recepção criativa da teologia e, especialmente, do modelo eclesiológico do Vaticano II e o modelo eclesiológico da cristandade que concebe a Igreja como uma sociedade perfeita, autossuficiente. Para muitos(as), esse último modelo seria o mais apropriado para a missão da Igreja num mundo marcado pela crise das certezas, das instituições etc. Penso que essa tensão irá perdurar por muito tempo.

IHU On-Line - Que outros horizontes e desafios o senhor aponta para o cristianismo na pós-modernidade?

Degislando Nóbrega de Lima - Abre-se ao cristianismo a possibilidade de uma acolhida mais constitutiva da kénosis  articulada com a escatologia como dinâmica humano-divina possibilitada graças à experiência de Jesus que introduz o cristão em uma dimensão de ausência-presença como o horizonte de vida e compreensão em que adquire força o dinamismo da fé cristã. A consequência disso na teologia é a emergência de uma outra relação com a verdade da mensagem efetivada nas coordenadas de um modelo hermenêutico de teologia que, nos convida a uma distância da ideia presunçosa de adequação entre sujeito e objeto. Uma teologia hermenêutica contribui para o processo de humanização porque não nega a condição exodal de uma história que seguirá por escrever-se na rememoração de todo o acontecido em Galiléia, no compartilhar o pão, na prática das bem-aventuranças e dos conselhos evangélicos e na abertura aos sinais dos tempos, a um futuro incerto em suas formas específicas, porém lançado ao devir de fraternidade universal compreendida como gratuidade, dom, oferenda, reconciliação. Num mundo pluralista, a relevância e legitimidade do cristianismo e de suas teologias se expressarão no serviço profético, como companheiros na aventura da liberdade responsável compreendida na diversidade de identidades e línguas, animadas pelo Espírito, ressuscitadas pela memória das vítimas, únicos sinais-promessa de um futuro escondido em Deus para sua criação. O que se pede do cristianismo e de sua teologia no mundo de hoje é que fale narrativa e analogicamente de Deus sem seduções de acabamento e de posse, que confie mais no amor que nos foi contado por Jesus Cristo do que no apelo a provas de força que violentam a liberdade.

IHU On-Line - Vive-se uma transformação contínua em termos de trabalho, sustentabilidade, desafios ecológicos, de gênero etc. Como estes impactos influenciam no pensamento antropológico, teológico, ético?

Degislando Nóbrega de Lima - Entendo que essas são as questões que marcam o debate político, econômico e cultural da atualidade e, portanto, devem mobilizar também o pensamento teológico como de fato já vem ocorrendo. Como questões humanas, elas não podem se negligenciadas na reflexão e na práxis cristã. Elas influenciam essa reflexão na medida em que envolvem o destino do planeta, a eficácia da democracia, o papel da ciência e do conhecimento, as relações de poder, o trabalho e o modo de produção e de consumo, o conceito de felicidade e bem estar etc. Há uma constatação bem fundamentada de que a situação não anda muito bem, sobretudo para mais pobres do mundo. A teologia, para ter relevância pública, deve articular as reservas de sentido da fé cristã com essa realidade, não numa perspectiva de oferecer uma ciência do real, mas sim de contribuir de forma crítica com o discernimento dos sinais dos tempos, com o processo de depuração da consciência dos cristãos e da vida religiosa, em geral, dos interesses dos sistemas e mecanismos que produzem injustiça e põem em risco a vida no planeta.

IHU On-Line - Muitas vezes, o fazer teológico e a espiritualidade são apresentados como caminhos separados. Por quê?

Degislando Nóbrega de Lima - Parece-me que aí há o pressuposto equivocado de que o estudo da teologia conduziria a uma perda da fé. Por outro lado, a teologia, na busca de razoabilidade da fé, pode escorregar pelas vias de um racionalismo crasso, o que justificaria o pressuposto mencionado. Mas essa não tem sido a tônica.

IHU On-Line - Teólogos como Ranher lembram a importância da mística para o futuro do cristianismo na sociedade. Existe um desprezo pela mística cristã e uma valorização de outros caminhos místicos? Por quê?

Degislando Nóbrega de Lima - Um fator que certamente contribui para esse “desprezo” vem da performance do cristianismo em determinados momentos da história. Por causa da Inquisição, da relação com os conquistadores etc., muitos veem o cristianismo e, especificamente, a Igreja como uma instituição pesada, castradora da liberdade e do dinamismo emancipatório do sujeito moderno, calcado na estima e afirmação autonomia. Certamente que muitos de nós contribuímos para o fortalecimento dessa impressão ou imagem, reduzindo a mensagem cristã a um elenco de regras e leis. Outro fator que contribui para tal ‘desprezo” vem da tendência muito forte atualmente de uma abertura e valorização da espiritualidade desvinculada da tradição, das instituições. Na conjugação desses fatores, parece muito mais simples e oportuno a muitas pessoas, sobretudo dos segmentos médios da populaçãom, buscar outros caminhos. Há ainda um grande desconhecimento dos místicos cristãos e também poucos espaços de acolhida e acompanhamento mais pessoal a quem busca na Igreja essa aproximação.

IHU On-Line - A crise da modernidade é uma crise do cristianismo?

Degislando Nóbrega de Lima - Não necessariamente. Há até quem defenda que, pelo fato da modernidade secularizada ter reservado à religião uma esfera privada, fora, portanto, do espaço público, sua crise representaria uma inédita oportunidade para a religião, como uma espécie de revanche. Certamente, com a modernidade entra em crise o tipo de representação do cristianismo mais identificada com o expansionismo de uma racionalidade ocidental e as crenças modernas relativas à ciência e à técnica. 

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