Edição 295 | 01 Junho 2009

Consumo ético. Uma forma de “indulgência” ao “pecado” do consumo

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Graziela Wolfart

Na opinião de Henrique Cortez, não teremos um futuro minimamente aceitável sem uma profunda revisão dos conceitos, fundamentos e modelo da economia. E não faremos esta revisão sem uma clara compreensão de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária

“Vivemos em um planeta finito e com recursos naturais igualmente finitos. No entanto, o nosso modelo econômico é baseado em produção e consumo infinitos. É evidente que este modelo não funciona por muito tempo.” A constatação é de Henrique Cortez, ambientalista e coordenador do Portal EcoDebate. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, Cortez considera que “redesenhar a economia mundial seria um feito inédito e só poderia acontecer com maciço apoio social e realizado coordenadamente por todos os países”. Ou seja, lamenta, “não irá acontecer”. De qualquer forma, continua ele, “precisamos debater estes temas e encontrar as alternativas mais viáveis enquanto ainda temos tempo”. Para ele, “o capitalismo é injusto, ganancioso, especulativo e insustentável por natureza e um ‘novo capitalismo’ também o seria. Precisamos encontrar um novo modelo, uma nova concepção e o capitalismo, qualquer que seja a sua maquiagem, é a resposta errada”. Cortez se declara um ecossocialista e afirma não ter qualquer proximidade com a esquerda reformista, “que propõe um novo capitalismo, o que é uma desonestidade intelectual e uma fraude ideológica. Acredito que o ecossocialismo, sua compreensão de um novo mundo, de uma economia solidária e sustentável, será o caminho para a esquerda superar a crise atual”, conclui.

Henrique Cortez é ambientalista, cientista social formado pela USP, com especialização em gerenciamento de riscos ambientais pela Northwest University, EUA, além de consultor e coordenador do Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br)
 
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Consumo ético e a economia como é constituída atualmente podem se relacionar harmonicamente? O consumo ético exige uma nova economia? Se sim, como seria constituída?

Henrique Cortez – Comumente, associamos o consumo ético a um ato individual de consciência, uma opção pessoal, mas ele também deve ser considerado em suas dimensões econômicas e políticas. Vivemos em um planeta finito e com recursos naturais igualmente finitos. No entanto, o nosso modelo econômico é baseado em produção e consumo infinitos. É evidente que este modelo não funciona por muito tempo. Além de ambientalmente irresponsável, este modelo também é socialmente injusto e economicamente excludente porque apenas atende à sanha consumista de uma fração da população. Dois terços da população mundial estão muito abaixo desta linha de consumo, nada usufruindo, mas arcando com os custos sociais e ambientais da degradação do meio ambiente e do esgotamento dos recursos naturais. A crise alimentar, por exemplo, também deve ser entendida dentro do contexto de consumo. A produção agrícola mundial é, comprovadamente, mais do que suficiente para alimentar toda a população do planeta. Mesmo assim enfrentamos uma inaceitável crise alimentar. Pesquisas indicam que o total da produção mundial de alimentos já seria suficiente para alimentar nove bilhões de pessoas. Portanto, o problema da fome episódica ou crônica não está na falta do que comer, mas nos recursos financeiros para o pleno acesso ao alimento, cada dia mais caro. Redesenhar a economia mundial seria um feito inédito e só poderia acontecer com maciço apoio social e realizado coordenadamente por todos os países. Ou seja, não irá acontecer. De qualquer forma, precisamos debater estes temas e encontrar as alternativas mais viáveis enquanto ainda temos tempo.
 
IHU On-Line - Em que sentido o senhor se declara defensor crítico do consumo ético individual?

Henrique Cortez - O que hoje se convenciona chamar de consumo ético deve ser encarado como conservador em relação à manutenção do modelo consumista. Assim posso consumir irrestritamente, porque me justifico através do consumo ético. É uma forma de “indulgência” ao “pecado” do consumo. O consumo ético só será transformador se ele questionar o modelo consumista, assumindo sua dimensão coletiva e política em relação ao modelo econômico, às formas de produção e ao sistema político de sustentação. É necessário questionar a quem serve este modelo e a quem beneficia.

IHU On-Line - Em que medida o movimento pelo consumo ético questiona a sustentabilidade do planeta, o comércio justo, a solidariedade social, e os direitos do consumidor enquanto direitos de cidadania?

Henrique Cortez - Volto à crítica do consumo ético individual, porque isoladamente nada questionamos, além de nossas escolhas pessoais. É necessária uma atitude politicamente ativa, lúcida e responsável que realmente questione o modelo atual. Não é fácil nem simples, porque serão exigidas profundas transformações, que modificarão as relações de trabalho e consumo. Na realidade, precisamos construir uma nova sociedade, com um novo modelo econômico. Voltando ao tema central, não teremos um futuro minimamente aceitável sem uma profunda revisão dos conceitos, fundamentos e modelo da economia. E não faremos esta revisão sem uma clara compreensão de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária.

IHU On-Line - O senhor pensa que o movimento coletivo pelo consumo ético pode ser visto como uma forma de ação política? Nesse sentido, ele teria poder de provocar transformações no campo da economia?

Henrique Cortez - Nossa compreensão de desenvolvimento é completamente diferente do que aí está. Queremos um desenvolvimento que seja sustentável, economicamente inclusivo, socialmente justo e ambientalmente responsável. Se não for assim, não é sustentável. Aliás, também não é desenvolvimento. Esta compreensão, se coletiva, é política e transformadora. O consumo é um ato político e econômico e, neste sentido, deve ser ético, responsável e sustentável. O consumo só é ético se for sustentável e isto só ocorrerá com uma gigantesca redução do consumo global. O planeta, por exemplo, já soma mais de um bilhão de veículos, das scooters aos megacaminhões. Vamos imaginar, além do consumo de combustíveis e emissão de gases, o que esta frota significa em termos de energia, água, mineração, siderurgia, recursos naturais consumidos etc. Isto é insustentável sob qualquer perspectiva. Então, este novo modelo deve significar uma nova forma de organização, produção e consumo. Se isto tornar-se uma posição firme e clara por parte da sociedade, ocorreriam grandes transformações sociais, políticas, econômicas e ambientais. Assim, talvez, consigamos chegar ao século XXIII.

IHU On-Line - Em que sentido a crise internacional pode ser uma possibilidade de pensarmos em alternativas em relação à nossa cultura do consumo?

Henrique Cortez - A crise pode ser uma grande oportunidade de mudança. Vou usar a questão do consumo insustentável como exemplo. O modelo produção/consumo precisa vender cada vez mais, em escala maior do que o crescimento populacional. Para isso, investe pesadamente no marketing, produzindo uma onda consumista sem paralelos na história. Ao mesmo tempo, todos os produtos devem ficar obsoletos o mais rápido possível, justificando sua substituição, mesmo que desnecessária. O desperdício é incentivado e o consumo desenfreado, endeusado. É evidente que isto demanda cada vez mais recursos naturais e energia, logo, nossa pegada ecológica fica cada vez maior. Vamos imaginar que abolimos a obsolescência, ao mesmo tempo em que, por programas de eficiência energética, reduzimos a energia agregada ao produto. O primeiro impacto seria a redução da demanda de recursos naturais e de energia, mas, ao mesmo tempo, também reduziria a demanda industrial e, com ela, a oferta de empregos na indústria. Menos empregos e produção também reduziriam a arrecadação de tributos, o que poderia enfraquecer toda a rede de proteção social oferecida pelos governos. Com esse argumento, os desenvolvimentistas são ferrenhos defensores do crescimento da produção, do consumo e, evidentemente, da carga tributária. Segundo eles, o resultado seria uma catástrofe econômica em escala global. Mas esta catástrofe não é necessariamente necessária. Uma grande parte deste modelo de desenvolvimento é virtual e meramente especulativo, como ficou demonstrado na atual crise financeira internacional e na crise alimentar. Muitas empresas obtêm mais da metade de seus lucros no mercado financeiro e, para isto, tornam-se grandes investidores nas bolsas de valores, especulando mais do que produzindo.

Enquanto Wall Street, a economia virtual, esteve desconectada de main street, a economia real, o cassino especulativo enriqueceu muita gente, mas agora, com a crise, quando os papéis perderam a gordura especulativa e retornaram ao seu valor real, a conta ficou com o contribuinte. É da essência deste capitalismo especulativo que o lucro seja privado e o prejuízo seja socializado. É isto que está em questão, o que realmente deve ser entendido como desenvolvimento, como deve ser medido e incentivado. É um tema em aberto, com grandes questões e poucas respostas. Também não tenho esta pretensão e nem de longe tenho as respostas. Aliás, acho que ninguém tem. Fica, no entanto, o alerta de que este modelo não irá funcionar por muito tempo, na exata medida em que os recursos naturais se esgotam e que as mudanças climáticas podem colocar a economia e a sociedade diante de uma catástrofe planetária.

IHU On-Line - Diante da crise atual e das discussões em torno da crise do capitalismo, a proposta do consumo ético pode suscitar um debate sobre um possível “novo capitalismo”?

Henrique Cortez - O capitalismo é injusto, ganancioso, especulativo e insustentável por natureza e um “novo capitalismo” também o seria. Precisamos encontrar um novo modelo, uma nova concepção e o capitalismo, qualquer que seja a sua maquiagem, é a resposta errada. Pessoalmente, sou um ecossocialista e não tenho qualquer proximidade com a esquerda reformista que propõe um novo capitalismo, o que é uma desonestidade intelectual e uma fraude ideológica. Acredito que o ecossocialismo, sua compreensão de um novo mundo, de uma economia solidária e sustentável, será o caminho para a esquerda superar a crise atual.

IHU On-Line - Quais seriam as transformações essenciais na base da constituição da nossa sociedade para chegarmos a um consumo ético e realmente coerente?

Henrique Cortez - A primeira mudança será, evidentemente, na educação, que deve, além de ensinar, nos ajudar a compreender e assumir todas as nossas responsabilidades, individuais e sociais. Ninguém nasce intolerante, preconceituoso, racista, homofóbico, supremacista, antissemita, islamofóbico, consumista etc. Estas são atitudes que aprendemos desde o berço, herdadas da intolerância, aberta ou camuflada, de nossos antepassados. Se não tivermos capacidade crítica de compreender nossos próprios preconceitos e superá-los, iremos, certamente, reproduzir o modelo, contaminando o berço de nossos descendentes. Muitos desafios se apresentam neste novo século, com destaque para as mudanças climáticas, aquecimento global, hiperconsumo, esgotamento de recursos naturais, crise alimentar, refugiados ambientais etc. São desafios globais, que devem ser enfrentados por todos indistintamente e, mais do que nunca, precisamos uns dos outros, valorizando o que nos une e desprezando o que nos distancia. Se não nos esforçarmos para sermos melhores do que nossos antepassados, os novos desafios deste século serão muitos maiores e mais poderosos do que todos nós. 

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