Edição 294 | 25 Mai 2009

Platão e a ação política dos filósofos

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Márcia Junges

Os escritos de Platão representam para o pensamento ocidental “uma virada definitiva”, pois ajudaram a compor grande parte do vocabulário filosófico em voga. A ação política dos filósofos hoje pode ser pensada através da tarefa que Platão atribui ao filósofo-político

O pensamento ocidental é diretamente tributário à obra de Platão. Prova disso é o uso, até hoje corrente, do vocabulário filosófico criado pelo filósofo grego, menciona o Prof. Dr. Marcelo Perine. Segundo o pesquisador, os escritos platônicos são “uma virada definitiva, ou um ponto de não retorno”. A ação política do filósofo em nossos dias pode ser pensada através da tarefa que Platão atribui ao filósofo-político. “Compete, portanto, ao filósofo, pensar a ação como forma de influenciar a atividade própria do político”, disse Perine na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. “O pensador da ação pode não ter eficácia no imediato. Entretanto, só o pensamento da ação é capaz de compreender que a paixão política é incapaz e compreender suas próprias razões. Pensar a ação é conferir às paixões senso das proporções. O político que conseguir isso será também filósofo. O filósofo, porém, não precisará sentir-se frustrado se não for político por profissão. Afinal, a realidade compreendida não é mais a mesma de antes da compreensão.”

Perine debate, ainda, a atualidade de A República, escrito da maturidade de Platão, considerado sua obra-prima. Em seu ponto de vista, essa é uma das obras que conseguem realizar a façanha de “apreender o tempo no conceito”, como disse Hegel. A influência da concepção socrática de alma, que foi ampliada por Platão e elaborada pelos grandes teólogos dos primeiros séculos do cristianismo, e as doutrinas não escritas de Platão são outros assuntos dessa entrevista. “A existência de um ensinamento oral de Platão, que não pode ser negada por nenhum estudioso sério da obra platônica, não representa nenhuma ameaça à obra escrita”, afirmou.

Coordenador da Comissão da área de Filosofia e Teologia da CAPES, Perine é graduado em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, e em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É mestre e doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), na Itália, com a tese Filosofia e violência. Um estudo sobre o sentido e a intenção da filosofia de Eric Weil (São Paulo: Edições Loyola, 1987). Fez pós-doutorado na Università Vita Salute San Raffaele, na Itália. De sua produção intelectual, citamos as obras Um conflito de humanismos (Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2001), escrito em parceria com Henrique Cláudio de Lima Vaz, Platão. A República (São Paulo: Scipione, 2002) e Quatro lições sobre a ética de Aristóteles (São Paulo: Edições Loyola, 2006). Leciona na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), no Departamento de Filosofia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Sob quais aspectos A República continua uma obra atual?

Marcelo Perine - Uma obra de filosofia conserva atualidade quando é capaz de realizar aquela operação que Hegel chamava de “apreensão do tempo no conceito”, ou seja, quando é capaz de arrancar o presente do seu caráter efêmero para situá-lo no âmbito da compreensão do seu sentido. A República, de Platão, é uma dessas obras que conseguiram essa façanha. Ao perguntar pela justiça e ao buscar a resposta tanto na interioridade do ser humano ou, se quisermos, na sua alma, como nas estruturas da vida em comum, Platão situa o tratamento da questão num âmbito de compreensão que permanece para sempre como fonte de inspiração para todos os que se disponham a buscar, como ele buscou no século IV a.C., uma resposta para a pergunta pela justiça.

IHU On-Line - Qual é a importância dessa obra no corpus platônico e na história da filosofia?

Marcelo Perine - A República é, muito provavelmente, a obra-prima de Platão e, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes de toda a literatura filosófica da tradição ocidental. A obra levou cerca de vinte anos para ser concluída (entre 390 e 370 a.C.), e parece que Platão a retocou até o final de sua vida. A obra situa-se entre os assim chamados escritos da maturidade de Platão, junto com o Fédon, o Parmênides, o Fedro, o Banquete e o Teeteto. No corpus platônico, a obra tem um lugar central e importantíssimo, seja pelo tema – a definição filosófica da justiça –, seja por alguns de seus conteúdos, como a questão da estrutura da alma humana, a questão da definição do Bem ou a das formas de governo, seja ainda pelos ensaios de aplicação do que virá a ser conhecido como o caminho longo ou a dialética.

IHU On-Line - Quais são as maiores contribuições do pensamento enciclopédico de Platão para o florescimento do pensamento ocidental?

Marcelo Perine - Para o pensamento ocidental, a obra de Platão representa uma virada definitiva ou um ponto de não retorno, a começar pelo fato de ter sido ele o primeiro responsável pela formação de grande parte do vocabulário filosófico que ainda hoje utilizamos para filosofar. Independentemente da adequação do adjetivo enciclopédico aplicado ao pensamento de Platão, o que posso dizer é que as grandes questões da ética, da política, da ontologia, da epistemologia, da cosmologia e até mesmo da teologia floresceram no pensamento de Platão de um modo que permanecem até hoje como referência para os estudiosos da história da filosofia e para os verdadeiros filósofos de todos os tempos.

IHU On-Line - Recuperando um tópico de outra entrevista que nos concedeu ( ), poderia dar mais detalhes sobre por que afirma que a cosmologia de Platão pode ser a chave para a compreensão de muitos problemas epistemológicos, ontológicos, éticos, políticos e teológicos?

Marcelo Perine - Naquela entrevista, afirmei que as ideias cosmológicas estão presentes na obra de Platão desde os chamados escritos da juventude, mas a cosmologia propriamente dita é uma elaboração tardia, que deve ser considerada como um ponto de culminância de toda a sua filosofia, para o qual convergem todos os grandes temas que polarizaram a sua imensa obra ao longo da sua elaboração. Assim, é possível pensar que muitos problemas epistemológicos, ontológicos, éticos, políticos e teológicos encontram uma chave de compreensão na cosmologia platônica. Mesmo sem querer reduzir ou submeter o pensamento de Platão à ideia moderna (hegeliana!) de sistema, o fato é que a análise cuidadosa do conjunto da obra de Platão revela uma profunda coerência e, mais ainda, uma “estrutura de socorro” (como a definiu Thomas A. Szlezák ), pela qual os textos de diferentes épocas se iluminam mutuamente e se socorrem em vista da compreensão do seu sentido, nem sempre evidente ao leitor que não tenha a visão do conjunto. Considerando que a cosmologia é de elaboração tardia no pensamento de Platão, é normal que nela sejam repensados os grandes problemas que exigiram a atenção de Platão ao longo de sua vida. Assim, por exemplo, a doutrina da alma, elaborada sistematicamente pela primeira vez em A República, é retomada no tardio Timeu no quadro de uma compreensão cosmológica.

IHU On-Line - Repensar a cosmologia platônica à luz do século XXI pode ser um elemento que faça o ser humano rever sua conduta em termos éticos e também ecológicos? Por quê?

Marcelo Perine - Retomo, mais uma vez, à referida entrevista à IHU On-Line, na qual afirmei, a propósito do mito cosmológico do Político, onde se encontram muitos elementos da cosmologia platônica, que o drama cósmico simboliza o drama humano, de modo que o universo é um modelo de ordem que os seres humanos devem imitar. E nesse sentido – ético – a “imitação e o seguimento” do universo pelos humanos, como é afirmado no final do mito, tem um caráter normativo e não apenas descritivo. Se no universo o caos absoluto, simbolizado pelas consequências devastadoras da inversão do movimento celeste, é apenas um estado hipotético, na medida em que a Inteligência (nous) continuamente governa a necessidade (ananke) na maior parte do tempo, na vida humana a completa desordem realmente existe e pode se generalizar, de modo que depende dos seres humanos fazer com que nous governe, ou seja submetido a ananke. Como diz uma estudiosa dessas questões, Gabriela Roxana Carone,  no seu livro recentemente traduzido por Edições Loyola, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas (2008), o universo é o que os seres humanos e a polis devem ser. Nesse sentido, a atitude de respeito pela natureza encontra na cosmologia de Platão uma grande fonte de inspiração. É certo que não é preciso recorrer à cosmologia de Platão para fundamentar uma atitude de respeito pela natureza, mas é inegável que a cosmologia platônica oferece uma série de elementos importantes que dão o que pensar, especialmente no momento em que a própria ciência moderna revela solidariedades até então insuspeitas, para o bem e para o mal, entre a vida humana e a natureza como um todo. A ideia central da cosmologia platônica – o homem como parte da natureza – parece simples, mas é plena de consequências.

IHU On-Line - Quais seriam as implicações para a dialética e para a ética da cosmologia platônica e a estrutura metafísico-numérica da realidade?

Marcelo Perine - Esta pergunta toca no ponto central de um projeto de pesquisa que estou desenvolvendo no momento. É evidente que não poderei respondê-la de modo satisfatório agora e, talvez, nem mesmo ao final da pesquisa. De todo modo, o que posso dizer neste momento é que a pesquisa tem como focos principais dois diálogos tardios de Platão, o Filebo e o Timeu, lidos segundo os cânones interpretativos da Escola Platônica de Tübingen-Milão. A ideia de fundo da pesquisa é que a doutrina dos Princípios, que rege a cosmologia de Platão, é determinante para a compreensão da realidade pelo método da composição e da divisão (dialética) e para a concepção do bem da vida humana (ética). No momento, estou concentrado no estudo do Filebo, que, segundo os cânones da Escola de Tübingen-Milão, é um diálogo que não levanta particulares problemas interpretativos, pois desde o comentário de Porfírio, como nos atesta Simplício, o diálogo foi posto em estreita relação com as lições orais de Platão Sobre o Bem e com o ensinamento platônico das doutrinas não escritas. A leitura do Filebo segundo os cânones da Escola de Tübingen-Milão revela que o diálogo pode ser compreendido a partir de três eixos temáticos: 1) o da estrutura bipolar da realidade, que se explica com base nas metaideias de Limite e Ilimite, conexas com a problemática do Uno e dos Muitos; 2) o da ampliação dessa temática em nível cosmológico, antropológico e ontológico, que desemboca na teoria do Demiurgo, e, 3) o da temática da definição do Bem e da determinação da escala de valores cujo vértice é a Medida.

Interpretação do Timeu

Como afirma Maurizio Migliori,  no seu magistral comentário ao Filebo, “Platão, nos diálogos dialéticos, e depois no Filebo, nos oferece uma manifestação nítida, uma verificação do seu sistema, como é testemunhado pelo conjunto dos diálogos e das fontes doxográficas, e não, como muitos pensam, uma correção ou até mesmo uma renúncia a uma concepção precedente. Na realidade, Platão manifesta o quadro da complexidade lógica do seu sistema que, com base em algumas indicações metodológicas estáveis, individua e verifica os mecanismos constitutivos da realidade em todos os níveis”.

Quanto à interpretação do Timeu, podemos distinguir dois grandes filões metafísicos. O primeiro centra-se na temática do Demiurgo, que leva a uma série de conclusões largamente antecipadas nos diálogos precedentes, e o segundo é centrado na temática do Princípio material, que no Timeu, pelo menos do ponto de vista cosmológico, é posta em evidência muito mais do que nos outros escritos, e a este segundo filão liga-se a complexa problemática matemática, de maneira mais ampla que em todos os outros escritos. Mas sobre isso não me encontro no momento em condições de antecipar os resultados a que poderei chegar na pesquisa.

IHU On-Line - Nessa mesma entrevista à nossa revista, o senhor afirma que a política do século XXI tem muito a aprender com Platão, sobretudo no cuidado com o meio ambiente. Em tempos de tantas notícias negativas sobre nossos representantes legitimamente eleitos, que outros aspectos poderíamos aprender sobre política com esse filósofo?

Marcelo Perine - Para responder a esta pergunta quero retomar a conclusão de um texto que publiquei na revista Filosofia, da Unisinos , no qual afirmei que a tarefa que Platão atribui ao filósofo-político pode ajudar a pensar a ação política do filósofo em nossos dias. Naquele texto evoquei as palavras de Max Weber,  um dos mais agudos pensadores contemporâneos da política, na famosa conferência A política como profissão: “Quem deseje dedicar-se à política e, principalmente, quem deseje dedicar-se à política em termos de vocação deve tomar consciência desses paradoxos éticos e da responsabilidade quanto àquilo em que ele próprio poderá transformar-se sob pressão daqueles paradoxos. Repito que ele se compromete com potências diabólicas que atuam com toda violência”.  O exercício da política, diz ainda Max Weber, “é um esforço tenaz e enérgico para atravessar grossas vigas de madeira. Tal esforço exige, a um tempo, paixão e senso de proporções” . Ora, é exatamente essa exigência de prender junto paixão e senso das proporções que faz da ciência política o saber do verdadeiro político, que não é senão o filósofo. Já em A República, Platão havia proposto a educação como instrumento para superar a oposição das tendências naturais nas quais se enraízam as diferentes virtudes, assegurando a concórdia entre elas por meio de uma rigorosa hierarquia na alma (Rep., IV, 441 E-442 B). No Político, ele sustenta que a ciência política deve servir-se das auxiliares, que são a ciência militar, a ciência jurídica e a retórica como mediações da ação política. Essas ciências são subordinadas à ciência política, porque só esta sabe “que ocasiões são favoráveis ou não para iniciar ou levar adiante os grandes empreendimentos” (305 D). Ora, é esse conhecimento do conveniente, do devido, do oportuno, característica essencial daquela ciência da medida, a meu ver, pode e deve ser exigível do político contemporâneo que pretenda tomar junto paixão e senso das proporções.

Os políticos de hoje não são mais os filósofos da Antiguidade, de modo que, conforme a tese platônica, os filósofos não precisam mais ser reis ou os reis filósofos para que os males cessem de punir os homens. Modernamente falando, o âmbito da ação política dos filósofos é o mesmo que nas sociedades modernas Eric Weil  reservou aos homens de cultura, ou seja, aqueles que são capazes de considerar a discussão política como um diálogo e, assim, buscar o que os políticos efetivamente quiseram dizer com a discussão.  Compete, portanto, ao filósofo, pensar a ação, como forma de influenciar a atividade própria do político.

O diálogo é a forma da ação política do filósofo, porque o diálogo “é a via do pensamento que cria a política no mundo que se pretende razoável e quer, portanto, sê-lo”.  O pensador da ação pode não ter eficácia no imediato. Entretanto, só o pensamento da ação é capaz de compreender que a paixão política é incapaz e compreender suas próprias razões. Pensar a ação é conferir às paixões senso das proporções. O político que conseguir isso será também filósofo. O filósofo, porém, não precisará sentir-se frustrado se não for político por profissão. Afinal, a realidade compreendida não é mais a mesma de antes da compreensão.

IHU On-Line - Alguns estudiosos afirmam que Platão era um cristão antes mesmo de Cristo em função de sua concepção do dualismo, entre mundo das ideias e mundo sensível. Como essa concepção influenciou o pensamento cristão?

Marcelo Perine - Esta questão é tão ampla e complexa, que não quero arriscar-me a respondê-la por falta de competência para tanto. Para não deixar os leitores sem nenhuma indicação a respeito, remeto a uma importante obra de Claudio Moreschini  recentemente publicada, chamada História da filosofia patrística , principalmente os capítulos 6 (Platonismo ocidental) e 7 (Platonismo grego nos séculos IV e V), nos quais os leitores poderão encontrar muitos elementos para uma resposta satisfatória a esta questão.

Entretanto, quero fazer duas observações que considero importantes diante da pergunta. A primeira é que, a meu ver, Platão influenciou muito mais a cultura cristã ocidental pela formulação de uma ideia de alma, do que pelo assim chamado dualismo. Aliás, a questão do dualismo precisaria ser mais bem explicitada para não incorrer em certos preconceitos ou em certos chavões da interpretação manualística, que não correspondem ao pensamento de Platão. Mas não é isso que quero destacar aqui. Quero chamar a atenção para o fato de que a formulação platônica de uma ideia de alma (psykhé), preparada pela reflexão de filósofos anteriores como Heráclito de Éfeso e, mais do que todos, pela pregação de Sócrates, teve uma extraordinária fortuna na tradição cristã ocidental. Sobre isso, publiquei um pequeno artigo em 2004 na Revista Hypnos, intitulado “A herança socrática no conceito cristão de alma”, no qual me inspiro amplamente num exaustivo estudo de um estudioso italiano, Francesco Sarri, Socrate e la nascita del concetto occidentale di anima (Milão 1997). A concepção socrática da alma como interioridade foi absorvida e ampliada na obra de Platão e, por meio dele, foi recebida no interior da elaboração de uma antropologia cristã pelos grandes teólogos dos primeiros séculos do cristianismo.

A segunda observação procede da primeira. Quero me referir aqui ao extraordinário livro de Jan Patocka, Platone e l’Europa (Milão, 1998), cuja tese central é que a Europa, sobretudo a Europa ocidental, nasceu do cuidado da alma (tes psykhés epimeleisthai) e, portanto, se existe algo que se pode chamar de Europa, esse conceito tem fundamentos espirituais. Ora, a ideia socrática de cuidado da alma, que fora antecipada na obra de Demócrito,  encontrou na obra de Platão o canteiro adequado para o seu florescimento e para legar a seus herdeiros. Cito Patocka, “o projeto de uma comunidade na qual o filósofo poderá viver, ou poderá viver o homem que é capaz de pôr em prática o cuidado da alma, e pôr em ação a ideia filosófica, segundo a qual é preciso viver e pensar unicamente a partir do olhar para o que é. A obra dos herdeiros de Sócrates será criar uma comunidade, uma comunidade na qual Sócrates e seus semelhantes não serão forçados a morrer. Em vista disso será necessário percorrer o mundo inteiro, seja necessário um projeto sobre a verdade, um projeto sobre a totalidade do ser. Será preciso, depois, um projeto sobre a comunidade, será preciso examinar a alma humana, ver o que ela pode ser e o que pode se fundar sobre ela” (p. 117)

IHU On-Line - Quais foram as conclusões às quais chegou com a pesquisa empreendida sobre as Doutrinas Não Escritas de Platão?

Marcelo Perine – Se podemos falar de conclusões, eu diria o seguinte: tendo-me dedicado a estudar sistematicamente as contribuições da Escola de Tübingen-Milão, motivado principalmente pela tradução que fiz do grande livro de Giovanni Reale,  Para uma nova interpretação de Platão, cuja primeira edição é de 1997, posso dizer que estou cada vez mais convencido da fecundidade dos cânones hermenêuticos dessa escola para a compreensão da obra de Platão. O que muitos críticos dessa escola não percebem, eventualmente por falta de conhecimento ou, talvez, por algum tipo de preconceito, é que a interpretação de Platão que recorre à tradição indireta só se sustenta porque encontra convincentes confirmações na obra escrita de Platão. A existência de um ensinamento oral de Platão, que não pode ser negada por nenhum estudioso sério da obra platônica, não representa nenhuma ameaça à obra escrita. Na longa tradição do platonismo, só na época moderna, quando se absolutizaram os diálogos como fontes exclusivas para o conhecimento da filosofia platônica, em decorrência das posições de Schleiermacher,  é que foi posta sob suspeita a existência de um ensinamento platônico que corria paralelo aos diálogos. Os estudos de Kramer, Gaiser, Reale, Szlezák, Erler  levaram não a uma desvalorização da obra escrita de Platão, mas à sua relativização. O que está em questão aqui é apenas o seguinte: levar a sério os testemunhos sobre o ensinamento oral de Platão no interior da Academia e considerá-los como passíveis de integração com os diálogos. É claro que isso deve ser feito com muita prudência e com critérios fornecidos pela crítica literária e filológica. Sobre isso, remeto a um texto que publiquei na revista da Universidade Federal de Pelotas, Dissertatio (25, 2007, pp. 11-40), intitulado “A tradição platônica indireta e suas fontes”, no qual faço um balanço dos problemas de crítica das fontes da tradição indireta do platonismo.

IHU On-Line - Em relação à interpretação aristotelizante da filosofia de Platão, por que afirma que ela “não pode ser despachada com base no pressuposto de que o testemunho oferecido por Aristóteles na Metafísica não corresponde à filosofia de Platão”? Quais são as maiores críticas à tradição platônica indireta?

Marcelo Perine - Talvez as críticas mais fortes à tradição indireta do platonismo provenham dos adeptos das posições de Harold Cherniss,  particularmente em suas obras Aristotle’s Criticism of Plato and the Academy (1944) e The Riddle of the Early Academy (1945). A obra de Cherniss, com todo respeito devido a um grande estudioso da filosofia antiga, deve ela mesma ser submetida a uma crítica, que reconheça o seu valor e os seus limites. Esse trabalho foi feito por estudiosos como Thomas Szlezák, na conhecida obra de 1985, Platão e a Escritura da Filosofia. Análise de estrutura dos diálogos da juventude e da maturidade à luz de um novo paradigma hermenêutico, cuja tradução será em breve publicada por Edições Loyola, e, antes dele, John N. Findlay,  com sua obra de 1974, Plato. The Written and Unwritten Doctrines. A análise exaustiva dos testemunhos de Aristóteles começou a ser feita por Léon Robin, na obra de 1908, La théorie platonicienne des idées et des nombres d’après Aristote. Étude historique et critique. Esta obra de Robin abriu o caminho para a reconsideração da credibilidade dos testemunhos aristotélicos sobre a doutrina platônica das ideias e dos números e suas relações com a doutrina dos princípios.

Seria impossível falar aqui, de maneira abreviada, quais são as maiores críticas à tradição platônica indireta. Para ter uma ideia das questões em debate, remeto os leitores à ampla literatura já publicada no Brasil a respeito, como o grande livro de Giovanni Reale (Para uma nova interpretação de Platão) já citado, e ao opúsculo de um estudioso da Universidade de Milão, Franco Trabattoni,  intitulado Oralidade e escrita em Platão , que faz severas críticas e restrições à interpretação de Platão com recurso à tradição indireta.

Mas quero concluir com uma citação de um grande estudioso de Platão, talvez um dos maiores do século XX, Hans-Georg Gadamer,  a respeito do estado atual da questão: “O problema geral da interpretação platônica, tal como se nos apresenta hoje, funda-se sobre a obscura relação existente entre a obra dialógica e a doutrina de Platão que só conhecemos por uma tradição indireta” (Gesammelte Werke, Bd. 6, 1985, p. 244).

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Entrevistas:

* As implicações éticas da cosmologia de Platão. Edição número 194, de 04-09-2006, intitulada A complexidade do cérebro. Bilhões de neurônios e celular gliais.

* Pe. Vaz e o diálogo com a modernidade. Edição número 197, de 25-09-2006, intitulada A política em tempos de niilismo ético.

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