Edição 294 | 25 Mai 2009

“A obra platônica, na sua totalidade, é fundante do pensamento ocidental”

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Márcia Junges

Diálogos são “lembrete” de que presença de Deus invade tudo, e obra de Platão é marcada pela ânsia da transcendência, assinala José Trindade Santos. A maior lição do pensador é que temos capacidade de reconhecer e recuperar a matriz original que nos aproxima de Deus

Talvez o primeiro objetivo de Platão, nos diálogos, “seja tentar explicar à Humanidade como o mundo e a vida foram criados por Deus para poderem ser o que são e como são hoje”, reflete o José Trindade Santos, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. “A presença de Deus dá-se na experiência do Mundo, permeada pela consciência da unidade da Vida”, acrescentou. Tradutor de Platão do original para a língua portuguesa, o pesquisador português acentua que preservar a autenticidade e espontaneidade da expressão platônica é um dos desafios desse trabalho. “Esboçar a interpretação da obra num ‘Comentário’ inicial, incluindo nele substanciais referências à bibliografia secundária” é outro requisito. Pensador extremamente atual, Platão faz parte da linhagem de autores gregos que “cunharam a terminologia filosófica e científica a partir do discurso corrente”. Seus questionamentos continuam vivos e seminais. Na opinião de José Trindade, é preciso ler Platão para poder rejeitá-lo. “As suas grandes descobertas, os erros e parcialidades a que deu origem, os desvios que suscitou, estão presentes nas opções com que a sociedade atual se confronta”.

José Trindade Santos é professor na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisador no centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Portugal (CFUL). Graduado, doutor e livre-docente em Filosofia pela Universidade de Lisboa, é mestre em Filosofia, pela Universidade Nova de Lisboa. Sua tese intitulou-se O paradigma identitativo na concepção platónica de saber (1989). De sua produção bibliográfica, destacamos: Saber e formas: estudo de filosofia no Êutifron, de Platão (Lisboa: Presença, 1987), Platão, Fédon, introdução e comentário (Queluz: Alda, 1998) e Para ler Platão (São Paulo: Loyola, 2008). Organizou, entre outros, Anamnese e saber (Lisboa: INCM, 1999) e Do saber ao conhecimento: estudos sobre o Teeteto (Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005). Com Juvino Maia Jr. (USP, UFPB) traduziu, a partir do original grego, a Carta VII, de Platão (Rio de Janeiro: EdiPuc, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são os principais desafios em se traduzir Platão para o português?

José Trindade Santos - Entre muitos, refiro apenas aquele que me parece mais difícil de vencer. Platão escreveu em grego, no séc. V a. C., há 25 séculos. Um tradutor leva muitos anos a conhecer “por dentro” o vocabulário e a sintaxe platônicas, e mais ainda a dominar o estilo em que foram escritos os diálogos. É-lhe exigida uma enorme competência filológica, literária e cultural, que leva anos a adquirir e uma vida a aperfeiçoar.

Mas Platão não é só um escritor; é também um filósofo. Sobre ele, a tradição iniciada por Aristóteles tem, desde a Antiguidade, produzido comentários e críticas, determinantes da interpretação da sua obra. É impossível “conhecer Platão” sem ter tido um prolongado contato com essa tradição. Todavia, o alargamento da “bibliografia platônica” a universidades de todo o mundo, que a fez atingir dimensões inimagináveis há cinquenta anos, tornou hoje impossível esse conhecimento.

Aqui nasce o desafio. Como é que o tradutor pode compatibilizar a sua competência filológica com a exigência de conhecimento da produção filosófica, à qual terá tido acesso casual? Ou então, como é que o professor de Filosofia, admitindo que conhece a bibliografia platônica, pode ganhar competência como tradutor?

A única solução em que posso pensar é a da colaboração de um com o outro, trabalhando em equipe. Passada a época heróica em que um único tradutor estendia a sua atividade pela totalidade da obra platônica (penso, por exemplo, no trabalho de Carlos Alberto Nunes ), parece-me ter chegado o momento de promover a cooperação de estudiosos com competências e formações complementares na produção sistemática de novas traduções e interpretações dos diálogos.

IHU On-Line - Que peculiaridades do diálogo Sofista foram aclaradas/reveladas a partir desse trabalho?

José Trindade Santos - O sofista é uma obra seminal para uma porção de disciplinas filosóficas. Naturalmente, cada uma delas verte a linguagem correntemente usada por um grego na terminologia técnica que lhe é própria. Supondo que o diálogo dificilmente captará a atenção do homem comum, o tradutor tem de trabalhar para um leitor ideal. Mas, quem? Um profissional como ele? Um professor (de que nível)? Um aluno não iniciado? Um estudioso de alguma disciplina específica (Ontologia, Lógica, Epistemologia, Filosofia da Linguagem; um historiador da filosofia)? Um curioso?
Como nenhuma destas opções é melhor que as outras, o tradutor é obrigado a fazer compromissos, cônscio de que não poderá satisfazer ninguém; nem a si mesmo. Sabendo que os leitores do diálogo são sobretudo estudantes e professores, duas preocupações principais devem nortear o trabalho de tradução:

1. Preservar a autenticidade e espontaneidade da expressão platônica. Um exemplo pontual: embora o problema da ”referência” desempenhe uma função fulcral no diálogo, “referir” traduz um verbo grego que não tem esse sentido técnico. Que fazer então, preservar o original ou adaptar à terminologia corrente? Uma outra possibilidade será preferir a tradução técnica, indicando em nota o sentido literal do verbo grego);

2. Esboçar a interpretação da obra num “Comentário” inicial, incluindo nele substanciais referências à bibliografia secundária.

IHU On-Line - Que obras platônicas considera como fundantes do pensamento filosófico ocidental?

José Trindade Santos - Para mim, a obra platônica, na sua totalidade, é fundante do pensamento ocidental. A grande maioria dos leitores fixa-se num grupo de diálogos, em dois ou três, talvez num apenas, sem adentrar o corpo da obra, como se ela não existisse. Vai entretanto recebendo, através dos divulgadores, o influxo do platonismo.

Por isso se dirá que Platão não atinge apenas os que o leem, animando a criação cultural por intermédio dos seus comentadores. Ele está presente no ato de pensar, por ter sido o primeiro a prestar atenção àquilo a que hoje se chama “pensamento”. Está também presente na Língua da Ciência, da Arte e da Cultura. É impossível esquecer que os gregos foram os únicos que cunharam a terminologia filosófica e científica a partir do discurso corrente; todas as outras Línguas limitaram-se a copiar essa terminologia, que traduziram dos originais gregos.

Platão e Aristóteles estruturaram os dois primeiros modelos cognitivos que o Ocidente conheceu, e em torno dos quais ainda hoje oscila. A eles se deve ainda a definição das primeiras regras a que obedece o debate dialético.

Platão desenvolveu e aplicou concepções que influenciaram as obras de todos os outros pensadores. Foi, por exemplo, o primeiro filósofo da educação. Apesar de ninguém hoje aceitar as suas teorias sobre ensino e aprendizagem, todos partem da estrutura conceitual definida por ele.

Contudo, embora Platão continue vivo praticamente em todos os setores da criação cultural, é na Escola que ele floresce, como resultado do contato continuado de gerações de estudiosos com a sua obra e da pesquisa que ainda hoje alimenta, em todo o mundo.

Escolarizar Platão envolve o risco de limitar o estudo da sua obra ao conjunto de “matérias” sobre as quais os estudantes são avaliados. Esse efeito é inevitável e, embora não possa ser combatido, deve ser compensado. A pesquisa, assumida coletivamente no espaço da universidade, é a melhor forma de preservar a obra platônica da “apostilação” a que vem sendo submetida há milênios.

IHU On-Line - Qual é a atualidade de sua filosofia em termos éticos e políticos?

José Trindade Santos - Platão e Aristóteles são referências obrigatórias de todo o trabalho de pesquisa em Ética e Política, hoje e em todos os tempos. É necessário ler Platão para o poder rejeitar. As suas grandes descobertas, os erros e parcialidades a que deu origem, os desvios que suscitou, estão presentes nas opções com que a sociedade atual se confronta.

Um exemplo. No Livro I de A República, Platão cria uma personagem, “Trasímaco”, que critica a ingenuidade de Sócrates,  propondo uma concepção realista da vida política, inspiradora do positivismo jurídico. Hobbes  leu A República e concordou com Trasímaco, aproveitando a lição de Tucídides,  que traduziu. Contudo, embora Maquiavel  não deva ter lido Platão, também nele Trasímaco está presente. O exemplo mostra como, por reação, Platão inspira aqueles que o não leram mas receberam o influxo do seu pensamento.

No domínio da Ética, os diálogos platônicos constituem o programa sobre o qual assenta toda a concepção autonômica da ação humana. Os questionamentos platônicos estão mais vivos hoje do que estavam no tempo em que foram feitos: “O que é um homem”? “Como deve agir”? “Em que princípios deve assentar a sua conduta”? Mais do que as respostas dadas, são as perguntas platônicas e a obrigação de lhes responder que ajudam ainda hoje a formar um Homem e cidadão responsável. Ser “platonista” não é o mesmo que ser “platônico”.

IHU On-Line - De que forma as virtudes baseadas na alma (sabedoria, coragem e temperança) se conectam à sua ética e política?

José Trindade Santos - A Ética e a Política platônicas são indissociáveis da sua Epistemologia. Já a sua Antropologia terá ficado encerrada no universo cultural grego (note-se a distância que Aristóteles – que não é grego – toma em relação a ela). Nesse domínio, talvez a ideia mais difícil de captar seja a de que as virtudes (justiça, sabedoria, sensatez, piedade e coragem) são constitutivas da natureza da alma. Todos nascemos com elas, somos o que somos porque elas nos formaram.

Ninguém recebe a virtude de fora, porque ela É aquilo que cada um acontece ser. Podemos enganarmos, errar, persistir no erro – é isso a que se chama “mal” –, mas apenas por ignorância e “esquecimento”. Platão ensina que perdemos o contato com a nossa própria natureza e precisamos reeencontrá-la. A sua maior lição é que há em cada um de nós a capacidade de reconhecer e recuperar a matriz original que nos aproxima de Deus e é comum a toda a Humanidade.

IHU On-Line - Como se dá a presença de Deus nos diálogos platônicos?

José Trindade Santos - A presença de Deus dá-se na experiência do Mundo, permeada pela consciência da unidade da Vida. Os diálogos platônicos são um reflexo, um “lembrete”, de que essa presença invade tudo. Toda a obra de Platão é marcada pela ânsia de transcendência. Talvez o seu primeiro objetivo, nos diálogos, seja tentar explicar à Humanidade como o mundo e a vida foram criados por Deus para poderem ser o que são e como são hoje.

Imagine como seriam o mundo e a vida de um ser que só pudesse enxergar até um centímetro de distância dos olhos. Imagine como esse ser viveria e se integraria no seu mundo. Refletindo sobre este experimento mental, é legítimo concluir que o mundo é como cada um o vê. Platão parte desta constatação. Mas as consequências que acarreta parecem-lhe absurdas porque todo um mundo não pode ser visto de tantas maneiras. Por isso, tenta levar o Homem a aprofundar a compreensão que tem dele. Todos vemos e ouvimos. Mas não veríamos, nem ouviríamos “isto” ou “aquilo”, se não recordássemos, nem pensássemos. Pois, só a memória assegura a fixação da informação recebida, que o pensamento elabora e reconhece como tal. Mais do que como o vemos, o mundo é como o pensamos. Aí se nota uma primeira tensão, entre o que (e como) percebemos e o que pensamos. E logo depois uma segunda, inerente ao ato de pensar: a de que nunca podemos chegar com o pensamento àquilo que É, apesar de nem sequer podermos pensar se não partirmos de dois pressupostos:

1. “algo É”;
2. todo pensamento pensa “o que É”.

O argumento mostra que a mais elementar análise do ato de perceber nos obriga a transcender, primeiro, os dados percebidos, depois, a nossa condição de percipientes, deixando-nos à beira da cadeia de questões que começa com a pergunta acerca da natureza do percebido, enquanto se acha para lá da percepção.

Obsessão de transcendência

Os diálogos são registros de debates acerca de como o mundo tem de ser para poder ser conhecido e de como os humanos são para poderem conhecê-lo. Mas não se limitam a questões cognitivas. Preocupam-se também com o modo como o Homem tem de agir para recuperar a natureza original que faz dele um ser pensante, encerrado num corpo limitado pela percepção sensível.

Esta obsessão de transcendência, embora tenha neste mundo as suas raízes, constantemente arrasta o homem para fora dele, não só para poder aí voltar durante o tempo de vida que é concedido ao seu corpo, mas também para dele se libertar após a morte. É nesse anseio, constante nos diálogos, expresso na máxima “tornar-se semelhante a Deus”, que sinto a presença da divindade.

IHU On-Line - No Timeu, o Demiurgo organizou o mundo sensível a partir do mundo das ideias, não sendo uma criação “ex nihilo”, como faz o Deus judaico-cristão. Como essa concepção influenciou os pensadores/filósofos cristãos?

José Trindade Santos - Para responder a essa pergunta, há que distinguir duas questões. A primeira relaciona-se com a ideia da Criação; a segunda, com a natureza daquilo que foi criado. A teoria platônica da Criação critica a tradição pré-socrática, que atribui a origem do cosmo à ação de um vórtice sobre uma “natureza substancial” (physis), provocando a emergência dos contrários. No Fédon, Sofista, Timeu e Leis X, Platão considera esta concepção irracional, acrítica e ímpia. O seu argumento pode ser esquematizado.

Ou o cosmo É, e sempre foi, ou não. Se É, é perfeito e imutável. Mas não é perfeito e imutável, porque vemos que muda; logo, foi gerado. Contudo, não podendo ser gerado a partir do que não É (quando?, como?, porquê?), torna-se necessário postular um agente exterior, um Criador.

Ultrapassando a questão nuclear acerca do modelo a que obedece a intenção do Criador, passo à segunda questão, acerca de “O” que foi criado. Percebendo o “movimento desordenado” do visível, o Demiurgo decide criar a “Ordem”. Para tanto, cria a alma inteligente e estende-a até definir um círculo movente à volta do visível que constitui o cosmo como um ser vivo.

Para um cristão, este programa é incompreensível por muitas razões. Que sentido tem encarar o mundo como um “ser vivo”? Como pode o visível existir antes da Criação? De que “movimento”, de que “alma”, fala Platão? Trata-se, porém, de um equívoco, resultante dos sentidos atribuídos à tradução dos termos gregos.

Criação da vida é que origina o cosmo

Com a expressão “movimento desordenado”, Platão refere o movimento mecânico dos corpos, destituído de finalidade. A criação da alma introduz a “ordem” no visível, começando a dominá-lo pela causalidade final, característica de toda a vida inteligente. Consequentemente, a vida não “surge” no cosmo; pelo contrário, é a criação da vida que origina o cosmo.

No cosmo, definido pelo círculo da alma cósmica, foram depois criados os deuses imortais e, por eles, moldados os corpos das três espécies de viventes mortais. O cosmo é constituído pela esfera da vida circundante, no interior da qual, ao lado dos viventes, persistem os corpos inanimados, regidos por leis mecânicas.

É estrita a analogia entre o cosmo e o Homem. Criadas as suas almas, são construídos os corpos aos quais dão a vida. Em ambos, a causalidade final, afim do que é vivo, inteligente e bom – a alma –, “persuade” a causalidade mecânica, afim da natureza corpórea.

Os pensadores cristãos adaptaram e enriqueceram esta estrutura racional, integrando-a num contexto aristotélico abrangente, ao mesmo tempo que descartavam as crenças gregas em que se apoia (pré-existência dos corpos, transmigração das almas, deuses imortais distribuídos pelos astros etc.). A plasticidade da concepção platônica de Deus permitiu a adaptação, dado o sentido da transcendência que a anima se achar livre dos dogmas impostos por uma religião constituída.
Note-se, por último, que, enquanto a concepção platônica é uma conjetura argumentada, produto da narrativa plausível, composta por Platão, a Criação ex-nihilo, da tradição judeo-cristã, tem a sua origem na Revelação.

IHU On-Line - É possível dizer que a teoria dos dois mundos fundamentou o dualismo cartesiano? Por quê?

José Trindade Santos - Não. A história é mais complicada. O dualismo platônico, de inspiração eleática, foi concebido para permitir a persistência da identidade inteligível na mudança visível; portanto, em nada será semelhante a uma “teoria de dois mundos”, entre os quais não haverá comunicação.

É, contudo, nesse sentido que Aristóteles o interpreta. Por isso, o rejeita, propondo uma concepção, dita “hilemórfica”, na qual o inteligível é substituído pela forma e o visível pela matéria, combinando-se em cada um dos entes que povoam o mundo, compostos de matéria e forma.

Mas a teoria é inaceitável pela Ciência Moderna. Em particular, a concepção aristotélica de “matéria” – potência de determinação pela forma –, mostra-se insusceptível de tratamento quantitativo. Rejeitando a associação aristotélica do ato à forma e da potência à matéria, Descartes  converte a matéria numa substância constituinte de todas as coisas, cujas propriedades estuda matematicamente.

Portanto, embora a opção cartesiana não critique o dualismo platônico, mas o hilemorfismo aristotélico, nem por isso retorna a Platão, pois explica o funcionamento do mundo físico em termos puramente mecânicos, eliminando da cosmologia moderna o finalismo, traço comum aos dois filósofos clássicos. Por outro lado, a “substância pensante”, em última análise, Deus, é necessária para pôr o mundo em movimento (para lhe dar “um piparote”,  como alega Pascal ), mas é estranho ao seu funcionamento.

IHU On-Line - Como os diálogos de Platão conhecidos como socráticos demonstram a influência do mestre sobre o discípulo?

José Trindade Santos - Do meu ponto de vista, não demonstram. A influência do Sócrates histórico em Platão, apesar de ser atestada pela generalidade das fontes antigas (nomeadamente Aristóteles), é irredutível à filosofia expressa nos diálogos, dado o magistério de Sócrates não se acomodar à criação dialógica.

O “Sócrates” platônico é a personagem literária escolhida por Platão para conduzir os debates nos diálogos. Embora essa estratégia estilística seja mais perceptível nos diálogos chamados “socráticos”, enquanto obras escritas, estes não podem ser comprovadamente atribuídos a um pensamento autêntico do Sócrates histórico. Nem a unidade literária dos diálogos nem a elaborada estrutura argumentativa que lhes confere sentido são compatíveis com a oralidade socrática (como prova a comparação com os fragmentos dos discípulos de Sócrates, em particular, Os memoráveis, de Xenofonte ).

Na penúltima dicotomia do Sofista (227a-230e), sem nomear Sócrates, Platão avalia criticamente a contribuição da personagem por ele criada para o debate dialético. Essa reflexão autobiográfica mostra a consciência crítica do escritor e filósofo Platão dos processos de pesquisa que aplica na composição dos diálogos.

Por outro lado, penso que há nos diálogos um fundo ideológico unitário que atravessa as distinções “periodais”. A concepção hoje mais respeitada sobre a obra “socrática” (de C. H. Kahn ), considera “prolépticos” esses “primeiros diálogos”, desse modo apagando a fronteira que os separa da chamada “teoria das Formas”, fixada na obra da maturidade platônica.

IHU On-Line - Qual é o teor da Carta VII, atribuída a Platão, e o que ela representa dentro de sua filosofia?

José Trindade Santos - Para um historiador, a Carta VII constitui um documento valioso para o conhecimento de um período conturbado da história de Atenas (os meados do séc. IV). Para um filósofo, mesmo que não a atribua à Platão, apresenta um ponto de vista privilegiado sobre a personalidade e a filosofia do Mestre da Academia.

Esse ponto de vista acha-se condensado na chamada “digressão filosófica”, na qual o filósofo, ou alguém que em seu nome escreveu a Carta, mostra possuir um conhecimento profundo do pensamento platônico, discorrendo livremente sobre a natureza da atividade filosófica. Resumo o argumento.

Filosofia por escrito

A filosofia é uma disciplina que, por visar as “questões mais elevadas”, exige a dedicação de toda a vida, sendo, por essa razão, insusceptível de ser fixada num resumo escrito. Mas há outra justificação para a dificuldade de a expressar em palavras, ditas ou escritas.

Aceitando-se que o conhecimento de algo só pode ser obtido mediante a captação da sua natureza, é claro que as capacidades cognitivas da alma humana são limitadas pelos meios aos quais recorre para se aproximar dela. Num primeiro patamar, acham-se a palavra, a imagem e a definição; num segundo, acima deles, o saber, a inteligência e a opinião verdadeira a que a alma chega sobre aquilo que procura conhecer.

Todavia, a despeito da elaboração atingida por este último patamar cognitivo, nem ele nem os outros proporcionam o contacto com a própria coisa, por serem todos eles mutáveis e redutores da sua natureza imutável. Por isso, são facilmente refutados todos quantos tentam responder sobre a natureza das coisas; falam sobre as suas qualidades aparentes, nada dizendo sobre aquilo que são na realidade.

Estes dois motivos – o primeiro externo, o segundo interno – fazem com que a filosofia não se preste a ser exposta por escrito, como as outras disciplinas. Pois o contato íntimo com o conhecido, apesar de ser facilitado pelo penoso trabalho realizado sobre as imagens e os discursos, só brota na alma com a fulgurante e instantânea compreensão da sua natureza.

Transmissão oral

Dada a impossibilidade de se atingir um consenso sobre a autenticidade da composição da Carta VII, por Platão, o intérprete não pode encarar este argumento como um autotestemunho. Mas também não pode ser cego à relação que tem com a filosofia dos diálogos.

A meu ver, nada há na Carta, para além das particularidades estilísticas desculpáveis numa missiva, que destoe do que é dito nos diálogos. A discórdia entre os intérpretes é, portanto, motivada pela diversidade das interpretações que propõem do texto.

Parece-me um exagero fazer retroagir as reservas, apontadas pelo autor da Carta à expressão oral e escrita, bem como à sua divulgação e consumo como filosofia, sobre a composição da obra platônica. A solene declaração de que “nunca haverá obra minha sobre o tema” poderá talvez aplicar-se apenas à lição introdutória dada por Platão a Dionísio.

A dificuldade da pesquisa, as exigências de que se reveste e a elevação do ideal que visa são amplamente confirmadas pela concepção de um saber infalível, sobejamente documentada nos diálogos. Se eles constituíssem meras exortações ao saber e se limitassem a consolar os iniciados pelo insucesso das suas tentativas, seriam bem mais fáceis de ler por todos embora menos interessantes e atuais.

Mesmo quem pense o contrário não poderá provar que os argumentos apresentados constituem prova indireta da existência da “teoria de princípios”, sobre a qual Platão teria discreteado com o tirano de Siracusa.

Rejeito, portanto:
1. qualquer tentativa de usar a Carta para alegar a reserva de Platão sobre o valor da sua produção escrita;
2. que esta reserva constitua indício da existência de uma autêntica filosofia platônica, confinada à transmissão oral.

Parece-me, no entanto, haver boas razões para pesquisar e aprofundar o nosso conhecimento de uma “tradição indireta” do platonismo. É apaixonante a tarefa de explorar doze séculos de filosofia em busca do fio condutor que une a Antiga Academia ao pensamento neoplatônico.

Bastará prestar alguma atenção às obras de filósofos como Plotino  e Agostinho  para compreender que a mensagem legada à Humanidade na obra platônica constitui um “tesouro para sempre”, susceptível de ser lido e entendido de muitas maneiras.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

José Trindade Santos - Sim. Só é possível estudar Platão lendo os diálogos. Para o fazer, é indispensável o leitor dar-se conta de que se acha diante de obras únicas no gênero, que nada têm a ver com tratados de filosofia, nem podem ser lidas como se tivessem. O seu autor não se manifesta nelas, preferindo disseminar-se pela profusão das personagens em que o seu pensamento se metamorfoseia.

Os argumentos e as teses expressas nos diálogos foram seguramente escritos por Platão. Mas não como se representassem o seu pensamento próprio e autêntico; ou não seriam oferecidos em debates, tantas vezes inconclusivos. Se ele quisesse que representassem, por que não o teria ele próprio feito? Bastaria fazer como Agostinho e representar-se como personagem.

Os diálogos não contêm um saber susceptível de ser fixado em doutrinas e absorvido através da leitura repetida, talvez por memorização. Quando muito, despertam a inteligência, preparando-a para debater as questões neles expressas.

Apesar de serem estudados nas escolas e de o seu estudo ser objeto de avaliação, não podem ser reduzidos às fórmulas requeridas por um avaliador numa prova de capacidade. Há lá inteligência, cultura e transcendência demais para serem captadas por exercícios escolares.

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