Edição 293 | 18 Mai 2009

Urso Branco: 75% dos presos é de jovens que traficavam drogas

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Márcia Junges

Homens entre 18 e 25 anos, oriundos da periferia, são o grande universo dos encarcerados no Presídio Urso Branco, em Rondônia, revela Paulo Barausse. Grandes traficantes e políticos que roubam verbas públicas estão soltos, compara o sacerdote

Pobres de periferias, jovens, condenados por serem “mulas” ou “formiguinhas”, gírias que designam a contravenção por tráfico de drogas. Esse é o perfil de 75% dos homens que cumprem pena no Presídio Estadual Urso Branco, em Rondônia. De acordo com o padre jesuíta Paulo Barausse, desde 1997 ligado à Pastoral Carcerária, há, ainda, casos de presos que são réus primários, ou que estão lá por terem roubado uma bicicleta, um botijão de gás, e esperam há 8 meses por um julgamento. O grande problema, pondera o sacerdote, é que essas pessoas não têm dinheiro para pagar um advogado, e dependem da Defensoria Pública. Enquanto isso, os grandes traficantes de drogas e os políticos que dilapidam as verbas públicas estão à solta. A verdade é dolorosa: No Brasil, “quem tem dinheiro compra segurança e saúde”. Na entrevista concedida de Rondônia, por e-mail à IHU On-Line, ele fala, também, sobre a importância da Pastoral Carcerária para uma mudança de realidade dentro dos presídios brasileiros: “O simples fato de realizar as visitas semanais pode ajudar muito para evitar que as torturas continuem nos presídios. A Pastoral Carcerária procura cumprir o dever do cristão: ‘estive preso e me visitaste’ (Mt. 25, 36). É muito interessante perceber como as pessoas, os agentes de pastoral vão mudando sua mentalidade à medida que mantêm um contato regular com os presos(as). Acontece uma verdadeira conversão interior”.

Paulo Barausse é natural de Campo Largo, no Paraná. Durante dez anos, foi operário nas fábricas de porcelana e cerâmica em sua cidade natal. É Bacharel em Filosofia, pelo Instituto Santo Inácio (ISI), em Belo Horizonte. Durante a graduação, de 1993 a 1995, trabalhou junto à Pastoral da Mulher Marginalizada, na Arquidiocese de Belo Horizonte. Cursou, ainda, bacharelado em Teologia, também pelo ISI, e colaborou na Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Belo Horizonte nesse período, de 1997 a 1999. Desde fevereiro de 2000, está em Porto Velho, Rondônia, como vigário da Paróquia Santa Luzia, localizada na Zona Sul da cidade, “uma grande periferia”, como ele aponta. Desde 2002, coordena a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a sua experiência e principais vivências junto ao sistema prisional brasileiro? Poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória?

Paulo Barausse - As primeiras experiências e visitas aos presídios  tiveram início no ano de 1997. Estava iniciando o curso de Teologia em Belo Horizonte. Naquele ano, o tema da abordado pela Campanha da Fraternidade era: Fraternidade e os encarcerados.  Nós, estudantes de Teologia, fomos enviados para ajudar na implementação da Pastoral Carcerária na Arquidiocesese de Belo Horizonte. Iniciamos nossas atividades ajudando na formação de agentes pastorais e realizando visitas às cadeias e penitenciárias. As visitas eram semanais. Foram as primeiras experiências, que aos  poucos foram se transformando em convivência, que já dura muitos anos.

IHU On-Line - Como podemos compreender que seja dado tratamento tão diferente da justiça a infratores como Daniel Dantas e quem rouba uma bicicleta, por exemplo? O senhor conhece casos desse tipo de pessoas que continuam presas e sequer foram ouvidas?

Paulo Barausse – Infelizmente, são inúmeros os casos desse tipo com os quais nos deparamos em nossas visitas aos presídios. O grande problema, a grande injustiça, está em que os ricos têm dinheiro para pagar bons advogados, e os pobres não. À medida que uma pessoa assina uma procuração a um advogado, este advogado passa a ser procurador. Como os pobres não têm condições para pagar os honorários do advogado, a família procura um defensor público. Como existem poucos defensores para tantos processos, eles não conseguem acompanhar de perto o andamento dos trâmites. Por isso é que existem muitos benefícios vencidos. Infelizmente, na chacina de 1º de janeiro de 2002, no presídio Urso Branco, dos 27 presos que foram executados 13 eram presos provisórios, que estavam aguardando julgamento. Dois desses presos mortos eram réus primários. Há casos de presos que roubaram uma bicicleta, um botijão de gás, e já estão presos há 8 meses.

IHU On-Line - De que forma a pastoral carcerária está ajudando a escrever uma outra história sobre os presídios brasileiros?

Paulo Barausse - A meu ver, a Pastoral Carcerária tem ajudado muito para que, aos poucos, a sociedade brasileira possa desenvolver uma maior sensibilidade e solidariedade diante de uma realidade tão cruel e desumana. O simples fato de realizar as visitas semanais pode ajudar muito para evitar que as torturas continuem nos presídios. A Pastoral Carcerária procura cumprir o dever do cristão: “estive preso e me visitaste” (Mt. 25, 36).  É muito interessante perceber como as pessoas e os agentes de pastoral vão mudando sua mentalidade à medida que vão mantendo um contato regular com os presos(as). Acontece uma verdadeira conversão interior. Vão tomando consciência de que, apesar  da realidade cruel em que vivem, existem muitos sinais de solidariedade por de trás das grades. Descobrem  neles (as) seres humanos que, mesmo cumprindo sua pena, continuam com sua dignidade de filhos e filhas de Deus. Tudo isto é possível se nossos agentes viverem uma espiritualidade encarnada, com os pés no chão. Possam sempre unir fé e vida, compromisso com a transformação e mudança em nossa sociedade. Ter em mente que “outro mundo é possível”.

IHU On-Line - A quem interessa manter os presos em situação desesperadora como no Presídio Urso Branco?

Paulo Barausse - Respondo fazendo um questionamento: quem são as pessoas que se encontram cumprindo pena dentro do Urso Branco? São jovens, 75% deles com idade entre 18 e 25 anos. Aproximadamente, 70% dessas pessoas foram presas por tráfico de drogas (Art. 12). São jovens pobres de nossas periferias e do interior do Estado. São os “mula”, ou os “formiguinha”, como se fala na gíria. Os grandes traficantes, donos das bocas de fumo, não estão presos, assim como nossos políticos que  roubam verbas públicas. Por outro lado, alguém está se beneficiando - os políticos que são donos de empresas terceirizadas que prestam serviços, aqueles que fornecessem a alimentação. Tudo isto faz compreender que é muito bom ter os presídios lotados, pois essa situação gera dividendos para um grupo de pessoas. Enquanto persistir esta mentalidade, dificilmente conseguiremos dar passos numa cultura de penas alternativas. Com a construção das duas hidrelétricas no Rio Madeira,  estão chegando na cidade várias empresas. Pergunto-me: qual é o compromisso social destas empresas? Será que elas não poderiam colaborar na ressociliazação de alguns(as) presos(as)  que estão à procura de trabalho, pois já receberam seus benefícios e não conseguem emprego?

IHU On-Line - O uso do “gatorade” (água com cocaína para causar parada respiratória) e do kit suicídio (banco e corda) nas cadeias é recente? O Estado é ciente disso?

Paulo Barausse - Em muitos presídios, existem estas técnicas de tortura. Em alguns estados, está se dando passos na capacitação dos seus agentes, possibilitando um maior conhecimento no campo dos Direitos Humanos. A meu ver, o Estado está ciente de tudo isto. Entretanto, impera a impunidade, a conivência, pois dificilmente os agentes do Estado são punidos por tais atos. Muitas vezes, “punir” alguém é transferir o agente de um estabelecimento para o outro. Os processos administrativos são lentos na sua execução. Quase sempre não se tem uma conclusão. Já se passaram quase sete anos da chacina dos 27 presos em Urso Branco, e ninguém foi punido. Recentemente, aconteceu um incêndio na secretaria onde se encontravam os processos, e tudo foi queimado. Até agora não saiu o laudo se o incêndio foi acidental, ou criminoso. Tudo voltou a zero.

IHU On-Line - Existem presos que são “cooptados” pelo Estado para realizar o “trabalho sujo” que este não pode (ou não quer) assumir?

Paulo Barausse - Existem. Aqui em nosso estado até saiu na imprensa. E consta no processo de cassação do governador movido pelo TRE. O governador queria que as testemunhas fossem  à Delegacia para contradizer o depoimento que haviam prestado na Polícia Federal. Ele chegou a contratar um traficante e pistoleiro, Agenor Vitorino, o “Japa”, um velho conhecido da Polícia Federal, cujo trabalho seria o de convencer as testemunhas a prestar depoimento na Polícia Civil, mudando a versão dada à Polícia Federal e ao juiz federal Élcio Arruda. Segundo o próprio Japa, o governador autorizou-o a oferecer emprego no Detran, na Polícia Militar, carro e até mesmo R$ 1 milhão. As famílias “testemunhas”  estão em Brasília e não podem voltar ao nosso estado. Japa se encontra no presídio. E o governador continua no seu cargo. Existem outros casos em que presos que estão no semiaberto e realizam furtos, roubos e dividem com os agentes, funcionários do Estado.

IHU On-Line – Como os presos tratam aqueles que cometeram estupros?

Paulo Barausse - Todos sabemos que o  interdito mais grave que alguém pode cometer é o estupro (Art. 313). As Leis de Execução Penal (LEP) prevê  que os presos devem ser separados conformes os artigos que estão enquadrados. No entanto, por causa da superlotação, falta de vagas, isto não acontece. Um preso pode ter matado dez, 15 pessoas, e isso não é tão grave como aquele cometeu um estupro. O tratamento dado a este preso, seja pelos outros presos, seja pelos funcionários, é de desprezo. Acontece uma grande rejeição. Quando acontecem as rebeliões, os presos que cometeram estupros são usados como “moedas de troca”, ou são os primeiros a ser executados.

Concluindo, posso afirmar que estes longos anos de acompanhamento aos presos foram muito difíceis, de muitos questionamentos. Por outro lado, este é um período de grande aprendizado. Estou convencido que cada vez mais necessitamos de pessoas que enxerguem as árvores, mas também prestem atenção na magia da floresta, que tenham a percepção do todo e da parte.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição