Edição 292 | 11 Mai 2009

Venezuela e o bolivarianismo. A busca de um modelo socialista

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Patricia Fachin | Tradução Benno Dischinger

Para o pesquisador Adrián Padilla, a Venezuela vive um período de transformações sociais, em busca do socialismo

“O bolivarianismo é o cimento da cultura nacional e da integração latino-americana”, defende Adrián Padilla, pesquisador venezuelano, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. A explicação que vem em seguida é enfática: o bolivarianismo “retoma o fio de nosso acontecer coletivo e recupera a visão histórica de nosso povo, dando-lhe a percepção de um contínuo que enlaça o passado, o presente e o porvir”.

Na entrevista que segue, ele diz que a Venezuela está “no centro da atenção dos povos da América Latina e na mira do olho imperialista”. Sobre as possibilidades entre Venezuela e os EUA, Padilla acredita ser difícil assistir a uma conciliação de fundo entre os países, já que Obama “representa a principal potência econômico-político-militar do capitalismo global, e Chávez é a figura visível de uma proposta político-econômica e sociocultural que pretende libertar-se do poder hegemônico dos Estados Unidos”.

Entretanto, assegura, “corresponde aos movimentos populares e revolucionários desempenhar um papel fundamental na construção de uma nova democracia”. Defensor da proposta integracionista de Hugo Chávez, Padilla diz que a criação de uma moeda regional latino-america pode gerar “maiores possibilidades para a economia e obter elementos comuns que permitam que as transferências comerciais se façam de maneira direta, sem ter de passar pela área do dólar”.

Adrián Padilla Fernández é jornalista, formado pela Universidade Central da Venezuela, além de mestre e doutor em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (USP). Ele é professor do Curso de Comunicação Social da Universidad Nacional Experimental Simón Rodríguez, de Caracas, Venezuela.

IHU On-Line - Qual é a atual situação política e econômica da Venezuela?

Adrián Padilla Fernández - O governo bolivariano – na última década – incrementou significativamente o gasto social, tanto em saúde como em alimentação e educação. Também se ampliou enormemente o acesso aos alimentos subsidiados, desenvolvendo redes públicas de distribuição, como Mercal e a Produção e Distribuição Venezuelana de Alimentos (PDVAL). Além disso, estimulou-se a produção agrícola com a organização e apoio aos produtores do campo (fundamentalmente aos camponeses) e desenvolvimento de empresas estatais agroindustriais.

Por outra parte, cabe destacar que o índice de pobreza diminuiu rapidamente, passando do valor pico de 55,1% em 2003 a estimativas, para 2009, de 26% de pobreza e 7 % de pobreza extrema. As condições de vida da população pobre melhoraram, portanto, significativamente, mais do que aquilo que indica a redução substancial da pobreza, refletida no índice oficial, que mede somente os ingressos monetários efetivos. Também caiu substancialmente o índice de desemprego, que desceu aos 8,3% em junho de 2007, o nível mais baixo em mais de uma década, comparado com 15% em junho de 1999 e com 18,4% em junho de 2003 (na saída da recessão).

O governo bolivariano manejou a indústria petrolífera – a principal fonte de riqueza do país -, ao recuperar o controle de uma zona estratégica conhecida como a “faixa do Orenoco”, a qual é considerada uma das reservas petrolíferas mais importantes do mundo. Os recursos provenientes da exploração petrolífera são destinados ao impulso das políticas sociais e para diversificar a economia com o desenvolvimento da agroindústria, o gado e a pesca, como parte de uma estratégia chamada a “semente petroleira”.

Poderíamos dizer que a situação econômica da Venezuela é de crescimento e desenvolvimento. Este último entendido como um desenvolvimento endógeno que busca a sustentabilidade e a soberania nacional.

Transformações políticas

Do ponto de vista político, vive-se na Venezuela um momento muito significativo, caracterizado pelo que poderíamos chamar a socialização da política. Quer dizer, o político já é assunto não só dos “políticos profissionais”, mas um fato coletivo assumido pelo conjunto da sociedade. Porque, quando a comunicação direta vai além de qualquer tecnologia; quando a discussão política, com claro sentido de classe, toma a esquina, a rua, o bairro; quando a sintonia com uma liderança autêntica é ponto de partida para mobilizações e articulações entre os mais pobres, entre os eternamente excluídos, temos de chegar à conclusão de que aqui se passa algo na perspectiva dos processos das transformações sociais.

Claro que, para analisar, estudar e explicar estes fenômenos sociopolíticos que abrem as portas do século XXI, não podemos nos iludir sobre a complexidade que os envolve. Quer dizer que nossa leitura deve ser multidimensional, lançando o olhar a estes processos a partir de diferentes ângulos e planos, sem esquecer sua natureza dinâmica.

IHU On-Line – Como caracteriza o processo bolivariano?

Adrián Padilla Fernández - Uma das características mais singulares do processo bolivariano é que ele tem se consolidado e avançado em meio das regras do jogo, estabelecidas nas dimensões jurídicas do Estado Moderno e de seu modelo democrático-liberal. Isso apesar de ter surgido de uma iniciativa rebelde (Levante militar de 4 de fevereiro de 1992)  e de um clamor popular (explosão social de 27 de fevereiro de 1989).  Este traço impõe intensas lutas no plano formal, que começaram com a Assembléia Constituinte de 1999 e seu parto da Constituição da República Bolivariana da Venezuela, e logo o referendo revocatório de 2004 – o qual se consolidou com a liderança de Hugo Chávez  -, depois o referendo da reforma constitucional de 2007 – onde foi derrotado o projeto bolivariano – e o último referendum da emenda aos 15 de fevereiro de 2009,  no qual a vitória bolivariana pode ser tomada como um aprofundamento do processo revolucionário.

Por sua parte, os setores que se opõem ao governo bolivariano não acabam articulando nenhuma proposta que tenha a força de contrapor-se à proposta socialista. Até agora, sua força se expressa ao nível dos meios de comunicação, que atuam como verdadeiros partidos políticos.

IHU On-Line – Quais são as políticas sociais do governo Chávez?

Adrián Padilla Fernández - Para atender as urgências sociais marcadas fundamentalmente pela exclusão em áreas como a saúde, a educação e a habitação, entre outras, o governo de Hugo Chávez iniciou em 2003 as Missões Sociais  inspiradas no dever de propor mudanças, romper velhos esquemas do aparato de Estado que impedem avançar e eliminar definitivamente estruturas que foram criadas para um determinado modelo que não se compagina com a visão socialista da Venezuela do século XXI.

As missões foram criadas no marco da crise econômica produzida pela sabotagem petroleira (uma ação da oposição que pretendeu paralisar a indústria petrolífera). Seu desencadeamento foi possível graças ao resgate dos recursos petrolíferos; assim como ao compromisso imediato das maiorias excluídas de assumirem o protagonismo na transformação de suas vidas e da sociedade venezuelana em seu conjunto. Trata-se de um modelo revolucionário de políticas públicas, que conjuga a agilização dos processos estatais com a participação direta do povo em sua gestão. Sua execução é possível graças ao original desdobramento das instituições do Estado até os lugares mais recônditos, por meio da participação direta das comunidades populares e excluídas.

As missões representam o maior esforço público que tenha conhecido a Nação para enfrentar co-responsavelmente as necessidades do povo venezuelano, como meio para garantir sua plena incorporação no desenvolvimento local e nacional.

Um agudo contraste encontramos na área da atenção à saúde, na qual em 1998 havia 1.628 médicos exercendo a atenção primária de uma população de 23,4 milhões de pessoas e hoje há mais de 20 mil médicos para uma população de 27 milhões. Esta missão é conhecida como Bairro Adentro, de assistência médica em vários níveis com seus estudos e medicamentos ao povo.

IHU On-Line – Qual é o conteúdo ideológico de Chávez? Em que sentido isso repercute em seu governo?

Adrián Padilla Fernández - O presidente Hugo Chávez propôs o socialismo como a via de desenvolvimento da revolução bolivariana. Esta proposta obriga necessariamente a um debate nacional sobre que tipo de socialismo se quer para a Venezuela, debate que deve considerar, necessariamente, o exame crítico da experiência socialista mundial. A construção do socialismo é um processo cultivado por longo tempo e nas condições da Revolução Bolivariana implica a convivência por tempo prolongado com o capitalismo, e a competição com ele. A garantia da vitória estará dada na medida em que se forjem a consciência socialista do povo, o caráter socialista do Estado e a capacidade da economia socialista de satisfazer as necessidades materiais e espirituais da população.

A ideologia da Revolução – que superou a prova da prática – seguirá sendo, é claro, o bolivarianismo: ele é o cimento da cultura nacional e da integração latino-americana; retoma o fio de nosso acontecer coletivo e recupera a visão histórica de nosso povo, dando-lhe a percepção de um contínuo que enlaça o passado, o presente e o porvir; enriqueceu-se e se enriquece constantemente com as ideias de redenção que surgiram e vão surgindo do pensamento venezuelano, latino-americano e universal, incluindo como sustentos fundamentais as concepções vivas e necessárias do marxismo crítico e as concepções profundamente humanas do cristianismo originário, expressas em nosso continente na experiência da Teologia da Libertação.

A ação do governo se expressa como rumo, como referente, até onde seja preciso orientar o desenvolvimento das políticas públicas, já que não é nada fácil implementar o socialismo a partir de uma estrutura estatal que foi concebida para responder a outro modelo. Uma das dimensões centrais é cultural, já que se requerem socialistas para impulsionar e desenvolver o socialismo e isso supõe uma luta frontal para desmontar o pensamento hegemônico capitalista, muito presente nas instâncias governamentais.

IHU On-Line – Quais são as perspectivas de reeleições gerais na Venezuela? Chávez tem força para se reeleger?

Adrián Padilla Fernández - Após os resultados do referendo da emenda constitucional do dia 15 de fevereiro deste ano, a postulação indefinida de uma pessoa como candidato aos cargos de eleição popular é um fato legal e, por conseguinte, o presidente Chávez e todos que ocupem esses cargos têm o direito de se postular nos comícios de 2012.

Neste ponto, se apoiam os setores de oposição para desatar suas campanhas midiáticas, afirmando que o presidente Chávez é um ditador ou um “caudilho populista” que quer “perpetuar-se” no poder. Não obstante, para entendê-lo, é necessário ver a experiência da revolução bolivariana como um processo complexo no qual os setores historicamente excluídos se incorporaram ativamente numa democracia participativa e protagonizante que os reivindica e dignifica na medida em que criam uma nova ordem social. Este processo, que é coletivo, tem nestes momentos uma liderança clara e indiscutível representada por Hugo Chávez.

IHU On-Line – O que podemos esperar a partir desse processo?

Adrián Padilla Fernández - Passaram-se duas décadas desde a chegada de Chávez ao poder através de eleições, dando início, com isso, a uma fase importante das lutas do povo venezuelano. O presidente o chama de terceiro ciclo ou fase da revolução bolivariana. Estamos hoje no centro da atenção dos povos da América Latina e na mira do olho imperialista. O compromisso que nos impõe a história é do tamanho das utopias que construímos em nossas centenárias lutas de resistências. Com efeito, em nosso continente corresponde aos movimentos populares e revolucionários desempenhar um papel fundamental na construção de uma nova democracia. Trata-se da estruturação de um tipo de sistema político que rompa com os limites que o capitalismo internacional impõe aos países latino-americanos, de caráter social, que combine desenvolvimento econômico e integração social, que promova a extensão da democracia política a todos os rincões da sociedade.

Imaginamos que continuará sendo um processo de confrontação porque os interesses que estão em jogo são vitais. Estaríamos em presença de uma reconfiguração do Bloco Histórico – no sentido de Gramsci  – e esse processo supõe intensas lutas entre setores que se negam a perder seus privilégios e outros – cada vez mais majoritários –, que vão tomando consciência de seus direitos que tem raízes ancestrais.

IHU On-Line – Como interpreta as propostas de integração de Chávez: Banco do Sul, Gasoduto do Sul, Petrosul? O que motiva Chávez em sua proposta integracionista? É viável a Alba? 

Adrián Padilla Fernández - Esta nova proposta de integração foi apresentada publicamente pelo presidente Hugo Chávez por ocasião da III Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da Associação de Estados do Caribe, celebrada na ilha de Margarita em dezembro de 2001. Traçam-se aí os princípios orientadores de uma integração latino-americana e caribenha, baseada na justiça e na solidariedade entre os povos. Tal como o anuncia seu nome, a Alba  pretende ser um novo amanhecer. Ela se fundamenta na criação de mecanismos para criar vantagens cooperativas entre as nações que permitam compensar as assimetrias existentes entre os países do hemisfério. Também se baseia na criação de Fundos Compensatórios para corrigir as disparidades que colocam em desvantagem as nações débeis frente às principais potências; outorga prioridade à integração latino-americana e à negociação em blocos supra-regionais, buscando identificar não só espaços de interesse comercial, mas também fortalezas e debilidades para construir alianças sociais e culturais.

A noção neoliberal de acesso aos mercados se limita a propor medidas para reduzir as taxas e eliminar as travas ao comércio e à inversão. Assim entendido, o livre comércio só beneficia os países de maior índice de industrialização e desenvolvimento, e não a todos, senão aos seus grandes empresários. Na América Latina, poderão crescer as inversões e as exportações. No entanto, estas se baseiam na indústria maquiladora e na exploração extensiva da força de trabalho, não havendo lugar a dúvidas de que não poderão gerar o efeito multiplicador sobre todos os grupos sociais; não terão um efeito multiplicador nos setores agrícola e industrial, muito menos se poderão gerar empregos de qualidade para derrotar a pobreza e a exclusão social. Por isso, a proposta alternativa da Alba, baseada na solidariedade, trata de ajudar os países mais débeis e de superar as desvantagens que os separa dos países mais poderosos do hemisfério, buscando corrigir essas assimetrias. Com estas características, um processo de integração hemisférica serve realmente as grandes maiorias sempre excluídas.

IHU On-Line - Como percebe a proposta de criar uma moeda própria da América Latina? Isso pode ajudar na integração do continente?

Adrián Padilla Fernández - A utilização de moedas locais para o pagamento das operações de comércio exterior entre a Argentina e o Brasil já é um fato. O Sistema Unitário de Compensação Regional (Sucre), proposta que se discute no seio dos países da Alba, mais o Equador, significa a criação de uma zona monetária, uma Câmara de Compensação de Pagamentos, um fundo de estabilização e de reservas com aportes dos países membros, com o fim de financiar políticas expansivas de demanda para enfrentar a crise e sustentar uma política de inversões para o desenvolvimento de atividades econômicas complementares.

A criação de uma moeda regional latino-americana gera maiores possibilidades para a economia obter elementos comuns que permitam que as transferências comerciais se façam de maneira direta, sem ter que passar pela área do dólar.

IHU On-Line - Quais são as potencialidades e limites da Venezuela no enfrentamento da crise internacional?

Adrián Padilla Fernández - Por um lado, os limites estão dados pelo fato de ser parte da própria estrutura do mercado capitalista que, com suas lógicas e dinâmicas, afeta o desenvolvimento interno dos países. Na Venezuela, embora se façam grandes esforços para diversificar a economia e fortalecer áreas estratégias nas quais não se é auto-suficiente, resta muito caminho a andar. Isso dá uma importante margem de ação a quem se opõe ao projeto de país que se está desenvolvendo para obstaculizá-lo e, ao mesmo tempo, consolidar o modelo tradicional que ainda está vigente, “convivendo” com a proposta de economia social.

Por outro lado, a grande fortaleza da Venezuela continua sendo sua condição de país petroleiro. Aí se destacam projeções como a seguinte: entre 2009 e 2013, a Venezuela executará um plano de inversão que ronda os US$ 225 bilhões, dos quais 125 bilhões correspondem a 88 projetos petrolíferos que serão executados pela estatal venezuelana PDVSA. Dentro do plano de inversões na Faixa do Orenoco, se preveem US$ 45 bilhões em projetos, com a construção da refinaria de Cabruta  e dois complexos de processamento de óleo cru extra-pesado – inversão próxima dos US$ 22 bilhões.

IHU On-Line - Como percebe a relação do governo venezuelano com Obama? Interessa ao país estabelecer relações com os Estados Unidos? Que possibilidades e limites se abrem nesse sentido?

Adrián Padilla Fernández – É preciso ver as relações entre os governos da Venezuela e os Estados Unidos nas múltiplas dimensões que abrangem (diplomática, econômico-comercial, político-ideológica, cultural), que não se reduzem aos líderes que estão à frente de seus governos, mas também aos projetos que eles representam. Por isso, resulta difícil ver uma conciliação de fundo entre Obama, que representa a principal potência econômico-político-militar do capitalismo global, e Chávez, que é a figura visível de uma proposta político-econômica e sociocultural que pretende libertar-se do poder hegemônico dos Estados Unidos.

O presidente Obama contou com o apoio das grandes corporações de seu país na campanha eleitoral, que já começam a pressionar através dos meios de comunicação por seu tom “conciliador” com Chávez. O presidente venezuelano, por sua parte, vem aprofundando cada dia mais seu compromisso com um projeto de sociedade que já adquire caráter internacional. Apesar de ser muito otimista em geral, neste caso não me faço muitas ilusões.

Leia mais...

>> Padilla já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Ela está disponível no sítio do IHU.

Entrevista:

*A reconstrução de um país: a realidade contemporânea da Venezuela. Publicada nas Notícias do Dia, em 25-08-2007.

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