Edição 292 | 11 Mai 2009

As mudanças estão acontecendo na América Latina

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Márcia Junges e Patricia Fachin

Ideologia se preocupa apenas com o presente, e a esquerda latino-americana seguiu esse perfil por mais de 15 anos, revela Silvio Caccia Bava. Brasil, Argentina e México são chave para modelo de integração no continente

A ideologia neoliberal não pensa no futuro, acusa o cientista social Silvio Caccia Bava na entrevista exclusiva que concedeu por telefone à IHU On-Line. Segundo ele, o neoliberalismo administra apenas o presente, e infelizmente a esquerda latino-americana durante mais de 15 anos “entrou nessa”, e não pensou o futuro dos países e do continente como um todo. A atual desmoralização do sistema em função da crise oferece a possibilidade de “se discutir e debater que futuro nós queremos para nosso país e continente”. Contudo, avalia o pesquisador, o capitalismo não irá acabar, mas se transformará em algo que já é chamado de social-democracia global. Sobre as perspectivas que surgem a partir das eleições na Bolívia, Chile e Uruguai este ano, acredita que tudo ficará muito parecido com a situação atual. Analisou, ainda, a preponderância do Brasil, Argentina e México no continente: “são países-chaves para indicar os modelos de integração que podem vir a se desenvolver”.

Caccia Bava é graduado em Ciências Sociais e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) com a dissertação Práticas cotidianas e movimentos sociais: elementos para reconstituição de um objeto de estudo. Pesquisador no Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, em São Paulo, é autor de Programas de renda mínima no Brasil: impactos e potencialidades (São Paulo: Instituto Pólis, 1998) e Participação, representação e novas formas de diálogo público (São Paulo: Instituto Pólis, 2001). É um dos organizadores de Segurança alimentar e nutricional: a contribuição das empresas para a sustentabilidade das iniciativas locais (São Paulo: Instituto Pólis, 2003).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como percebe o quadro político da América Latina? Como os diferentes modelos de governo (progressista, nacionalista e integracionista) se relacionam?

Silvio Caccia Bava - O quadro político da América Latina, considerando os últimos anos, é de mudança. Nós temos 11 presidentes que foram eleitos nesse período, alguns deles reeleitos, e que deslocam as elites do poder, trazendo uma agenda nova, muitas vezes calcada nas demandas da maioria. Em alguns casos, essa maioria é composta por uma maioria étnica, como são os indígenas na região Andina, no Equador e Bolívia. Então, temos um quadro político que felizmente rompeu com a uniformidade calcada no neoliberalismo e que hoje permite à América Latina repensar o seu futuro, o seu projeto de desenvolvimento e as suas formas de integração. Isso é diferente do que ocorria nos anos 1990, quando as regras eram ditadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pela Organização Mundial do Comércio (OMC), enfim, pela força das grandes corporações transnacionais.

Também há uma diversidade entre os modelos de governo no continente. Existe a iniciativa da União das Nações Sul Americanas (Unasul), que é recente e tenta promover uma integração a partir de uma ótica dominantemente brasileira. Existe a Aliança Bolivariana das Américas (Alba), que é uma integração que reúne Venezuela, Bolívia, Cuba, Equador e que traz uma outra perspectiva, quer dizer, não é somente uma integração comercial, de mercados, existe aí um esforço de resolver o déficit acumulado na área de saúde. Cuba, por exemplo, está enviando milhares de médicos para o programa Venezuelano Bairro Adentro. A Unesco  já comprovou a erradicação do analfabetismo com uma proposta realizada na Bolívia e Venezuela, que são esforços contidos nesse marco da integração regional com a complementaridade entre os países, daquilo que eles têm a oferecer para impulsionar uma agenda de melhoria da qualidade de vida, de políticas sociais, de garantia de direitos.

IHU On-Line - Bolívia, Chile e Uruguai terão eleições neste ano. Quais são as perspectivas nesse sentido? Podemos esperar avanços ou mudanças nesses países?

Silvio Caccia Bava – Tenho a impressão de que vai ficar tudo muito parecido com o que está acontecendo atualmente. Na Bolívia, as eleições irão reafirmar essa mobilização ampla social das organizações que são majoritariamente dos povos originários, como eles próprios se identificam, e que nós chamamos de indígenas. O fato de denominar como indígenas já indica uma visão colonialista. Assim, eles recuperam a sua identidade ao se identificarem como povos originários. No Chile, existe uma disputa mais difícil, mas, de qualquer maneira, me parece que o candidato Eduardo Frei,  que já foi presidente do Chile e é candidato pela Concertación,  uma aliança de partidos representada hoje pela presidente Bachelet,  tem boas chances de vencer. Isso significaria também uma continuidade da Concertación no governo, ainda que na sua vertente mais democrata-cristã. O resultado no Uruguai é uma incógnita, quer dizer, nós temos um processo democrático que é dos mais profundos e enraizados na sociedade em toda a América Latina. Acredito inclusive que alguns candidatos vão polarizar as eleições. O senador Mujica,  candidato à presidência, costuma andar de bicicleta, não gosta de automóvel porque acha que polui o ambiente, e é desnecessário utilizá-lo. Então imagine, numa crise da matriz energética e de um modelo de desenvolvimento, esse candidato terá bastante aceitação.

IHU On-Line - Brasil, Argentina e México podem ser considerados os países mais fortes do continente? Que papel eles desempenham no continente?

Silvio Caccia Bava – O papel deles é preponderante. Se somarmos a Argentina, o Brasil e o México, temos uma boa parte do PIB do continente da população. Esses são países-chaves para indicar os modelos de integração que podem vir a se desenvolver no continente. Como percebemos, são países que têm orientações distintas. O México também terá eleições e possivelmente vai aparecer de novo o que aconteceu nas eleições passadas, quando o candidato da oposição, Manuel López Obrador,  venceu as eleições, mas elas foram fraudadas. Então, o seu oponente conservador assumiu a presidência. Isso praticamente rachou ao meio o eleitorado e a cidadania mexicana, que já tem assistido também manifestações de amplas mobilizações sociais e de rejeição ao padrão imposto pelo governo central neoliberal. Falo das últimas revoltas que temos notícia em Oaxaca,  Estado do México, no qual há cerca de dois anos vem acontecendo um processo intensivo de mobilização e organização mais autônomas dos interesses regionais. O mesmo acontece há mais tempo na região de Chiapas com o Movimento Zapatista,  que construiu comunidades autônomas que não aceitam mais a autoridade do governo central e que, inclusive, tem exército para preservar essa possibilidade de uma organização mais democrática, mais calcada nos interesses próprios. Essa região é muito pobre e tem sido explorada pela oligarquia regional.

IHU On-Line - O senhor defende a necessidade de mudanças diante da crise atual e aposta no poder da ação coletiva. Como percebe isso na América Latina? Quais são atuais atores sociais latino-americanos que podem mudar o curso da conjuntura? Como eles podem fazer isso?

Silvio Caccia Bava - Essa conjuntura está atravessada por uma crise que é mundial, e que não é apenas financeira, como às vezes pode parecer. Essa é uma crise do próprio modelo de acumulação, do capitalismo. O capitalismo não irá acaba, mas sim assumir formas diferentes do neoliberalismo de agora. Contudo, já existem setores avançados do empresariado, das grandes corporações, que estão pensando justamente o que colocar no lugar do neoliberalismo. As indicações mais recentes que temos são de uma ideia de uma social-democracia global. O grande empresariado está percebendo que a crise está “pegando pesado” junto à maioria, nas formas de desemprego, pobreza, encolhimento do cobertor de proteção das políticas de saúde, educação e previdência. Essas coisas estão chegando agora e são efeitos da crise que começam a se fazer sentir junto à população. Também estamos começando a assistir protestos e mobilizações. Nessa perspectiva de buscar e legitimar o sistema tal qual é hoje, esse grande empresariado que se reúne na Organização Mundial do Comércio (OMC) para pensar essa alternativa, está pensando em melhorar políticas públicas de cobertura de saúde e educação, na redução ou anulação da dívida externa dos países mais pobres e em mais iniciativas que busquem legitimar, novamente, esse capitalismo tal qual ele é. A ideia é manter esse mesmo modelo, mas acrescentar um conjunto de políticas sociais que façam com que a pressão exercida na sociedade se reduza e uma parte dela fique satisfeita.

IHU On-Line - Os atuais governos latino-americanos aproximam ou afastam os movimentos sociais das lutas?

Silvio Caccia Bava - Essa é uma enorme contradição, porque muitos desses governos se apoiam nos movimentos sociais, já que não tem de onde tirar poder senão deles. Veja como foram aprovadas as constituições do Equador e Bolívia, que são bem recentes. Houve da parte desses setores mobilizados da sociedade, dos grupos de cidadãos que se organizam em defesa de direitos, como os denomino, um cerco ao Congresso. Milhares de pessoas se reuniram à volta dos congressos no momento da votação das constituições para pressionar os parlamentares a aprovarem as Cartas Magnas. Então há, aí, um jogo complementar no qual há representação político partidária que encaminha as proposições, mas, em si, não tem a força para fazer essa mudança, então combina essa iniciativa junto com as entidades, movimentos, federações e redes de cidadania que se mobilizam para garantir que a mudança ocorra.

IHU On-Line – Concorda com a afirmação de que a esquerda latino americana está em crise? Se sim, quais são suas características?

Silvio Caccia Bava - Certamente. Acho difícil haver alguém que diga o contrário. Acontece que o neoliberalismo se colocou com tanta força como doutrina, ideologia hegemônica, numa perspectiva gramsciana, que fez com que não conversássemos, não discutíssemos e não pensássemos mais o futuro. O neoliberalismo não pensa o futuro. Você não encontra um texto sequer, de político ou intelectual que assume postura neoliberal que fale de futuro. Eles tentam administrar o presente e minimizar as pressões para que esse presente venha a mudar. Durante mais de 15 anos, a esquerda latino-americana entrou nessa e não pensou o futuro do país, da América Latina. Se analisarmos o caso do Brasil, veremos que a discussão sobre o modelo de desenvolvimento volta agora, com a crise do neoliberalismo, com a desmoralização da doutrina neoliberal. Antes disso, não se falava em modelos de desenvolvimento, alternativas. Era a lógica do mercado imposta como uma vontade das grandes corporações que regia, e ainda rege, nossa sociedade, organizando valores, formas de sociabilidade, o trabalho, as aspirações de consumo, etc. Agora estamos tendo essa novidade, bastante recente, de que o neoliberalismo está desmoralizado porque gerou essa crise e é responsável por ela. Novamente, existe a possibilidade de se discutir e debater que futuro nós queremos para nosso país e continente.

IHU On-Line - Como percebe a mudança constitucional boliviana e equatoriana?

Silvio Caccia Bava - Cada uma das constituições possui peculiaridades, pois se tratam de países diferentes, atores diferentes, e demandas diversas, embora tenham grande identidade entre si. Estamos falando da vontade das pessoas, de movimentos amplos, organizados a partir de mais de uma década, que armam redes nacionais. Se pensarmos no caso do Equador, há dez anos se formou a Confederação Nacional dos Índios do Equador, a Conaq. Após dez anos, houve uma conquista de projeção política e espaço. Na Bolívia, temos menos conhecimento ainda do quanto foi o esforço de organização anterior, de dez anos atrás, mas lá há também uma tradição. Em 1956, os mineiros da Bolívia e os agricultores se uniram, confrontaram o governo e houve uma guerra. Os índios organizados destruíram o exército regular da Bolívia. Eles ocuparam o palácio, o poder. Entretanto, eles não tinham propostas alternativas, então acabaram escolhendo um presidente que, embora progressista, fazia o mesmo jogo de interesses das grandes corporações. O que é diferente nesses dois países é que eles buscam mais, bem mais do que nós fizemos no Brasil com a Constituição de 1988. Essa Constituição ampliou direitos e espaços de participação e tem um aspecto muito positivo. Mas ela manteve o desenho institucional de como o governo o Estado devem ser, como devem ser as regras de propriedade. Já na Bolívia e Equador, podemos dizer que há uma refundação do Estado. Está sendo criado outro Estado, com outras regras. No caso da Bolívia, com constituição aprovada mais recentemente, fala-se de um Estado plurinacional e pluriétnico para poder abrigar todas as nações dos povos originários, que tem suas próprias regras, instituições e leis e poder respeitar essa diversidade dentro de um Estado nacional mais amplo, que deve ter uma regra comum para todos.

IHU On-Line - O que significa uma refundação e reestruturação do Estado a partir da ação coletiva?

Silvio Caccia Bava - Significa socializar o poder. Deixe-me dar um exemplo. O Estado brasileiro é vertical, centralista e autoritário. Enquanto isso não mudar, nada de muito diferente do que vemos irá acontecer. Nossas políticas sociais são políticas de saúde, educação, assistência social que se organizam desde o nível federal até o município, sem se integrar com outras políticas. Penso que deveria ser o contrário. Deveríamos ter uma gestão pública descentralizada, através da qual em cada território específico o gestor poderia trabalhar com políticas sociais de forma integrada para responder as particularidades desse local. Isso não ocorre hoje. Então, digo que a questão das mudanças tem seus limites conforme são as forças sociais em cada país. Aqui, temos um capitalismo muito forte, uma presença de corporações internacionais muito forte. Isso é expresso no Congresso. O agronegócio tem um terço do Congresso brasileiro. Para um governo que precisa do Congresso para governar, como é que irá acontecer uma reforma agrária se um terço do Congresso é contra essa medida? A composição desse um terço tem a ver com a distribuição do número de parlamentares por Estado. Temos aí uma herança que favorece o coronelismo do Nordeste, que se reflete hoje nesses problemas de imobilismo na transformação social.

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