Edição 289 | 13 Abril 2009

Outros jornalismos, outra comunicação

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Dênis de Moraes

“Os países mais ricos e as elites dominantes são os que verdadeiramente desfrutam dos acessos, usos e vantagens do excesso de estímulos impressos e audiovisuais. Portanto, tanto os usos das tecnologias avançadas quanto a propalada ‘diversidade’ são estratificadas e sob controle, não são para todos”, escreve Dênis de Moraes, em artigo enviado à IHU On-Line. Para ele, é impossível ser indiferentes a distorções, mazelas e interdições praticadas pela mídia. “Os principais órgãos de difusão dizem representar a vontade geral, quando, em verdade, espelham prioridades mercadológicas e conveniências políticas, econômicas e ideológicas dos grupos privados que os controlam. Tudo isso em detrimento do interesse coletivo, que deveria ser o ponto central a ser observado, principalmente por veículos que detêm concessões públicas de licenças de rádio e televisão”.

 

Dênis de Moraes é pós-doutor em Comunicação, pelo Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales (CLACSO), e professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense. Autor, entre outros livros, de Cultura mediática y poder mundial (Bogotá: Norma, 2005), é organizador de Sociedade midiatizada (Rio de Janeiro: Mauad, 2006) e Por uma outra comunicação, (São Paulo: Record, 2003). Está no prelo, para ser lançado ainda este ano, o seu livro A batalha da mídia.

Confira o artigo.

A sociedade atual, indiscutivelmente, está mais informada do que a de 30, 40 anos atrás. Isso se deve a um conjunto de fatores, entre os quais a proeminência das tecnologias, particularmente nos campos da comunicação e da difusão cultural. Sob a égide da digitalização, multiplicaram-se os sistemas, formatos, linguagens e meios de transmissão, distribuição, circulação, exibição e consumo de dados, sons e imagens. Da mesma forma, a oferta de conteúdos cresceu de maneira exponencial. As tecnologias digitais favorecem a convergência de redes e plataformas numa linguagem única, viabilizando a geração de produtos e serviços que abarcam as interfaces multimídias.

A cultura tecnológica consolidou-se nos marcos da globalização capitalista. As economias e os mercados interligaram-se em rede, beneficiados pelas desregulamentações e privatizações neoliberais nas décadas de 1980 e 1990. A aceleração tecnológica sem precedentes dinamizou as engrenagens tecnoprodutivas da economia capitalista, com aumento substancial da rentabilidade em escala global. No plano da comunicação, o paradigma digital favoreceu a expansão dos serviços de informação e entretenimento, atraiu players internacionais para negócios em todos os continentes, intensificou transmissões em tempo real e instituiu outras formas de expressão, conexão, sociabilidade e circularidade informativa, sobretudo através da Internet e de redes infoeletrônicas.

Os globalófilos e os neoliberais convictos ou envergonhados proclamam que a humanidade nunca teve tanta “diversidade cultural”. É uma análise parcial e mistificadora. Temos que avaliar quem controla a variedade de oferta, qual é a natureza ideológica de produtos e programações, que margens de pluralismo se observam nos materiais difundidos, quais os seus condicionantes comerciais e mercadológicos, que modalidades de consulta e participação são facultadas às audiências, entre outros quesitos.

Cultura tecnológica, diversidade e exclusão

O quadro é complexo e intrincado. De um lado, há uma profusão de conteúdos industrializados na proporção exigida por canais multimídias em crescimento contínuo. De outro, há uma perversa concentração das fontes emissoras de tais conteúdos, em sintonia com a meta de ampliar o valor mercantil e os padrões de acumulação e lucratividade dos conglomerados do setor. Se há uma concentração dessas fontes nas mãos de mega-grupos, o que é produzido obedece a uma escala de valores e de visões geralmente restrita às avaliações e conveniências das mesmas fontes controladoras. A “diversidade” apregoada pelos arautos do neoliberalismo está, quase sempre, sob forte controle das fontes de emissão, responsáveis pela mercantilização generalizada da produção simbólica.

Por outro lado, o acesso aos conteúdos é profundamente desigual. Há grave assimetria entre a expansão dos sistemas tecnológicos e a capacidade de inclusão da base da sociedade nos benefícios decorrentes. Os descompassos estendem-se à Internet. Enquanto Estados Unidos e Europa concentram 67% dos usuários, a América Latina, que reúne 8% da população mundial e contribui com 7% do PIB global, conta com pouco mais de 4% do total de internautas.

Os países mais ricos e as elites dominantes são os que verdadeiramente desfrutam dos acessos, usos e vantagens do excesso de estímulos impressos e audiovisuais. Portanto, tanto os usos das tecnologias avançadas quanto a propalada “diversidade” são estratificadas e sob controle, não são para todos. Conforme o Mapa das Desigualdades Digitais, no Brasil os 10% mais ricos usufruem até cinco vezes mais dos benefícios da rede do que os 40% mais pobres da população.  Como se deduz, o universo de usuários, por mais que se contem aos milhões, não corresponde à totalidade social, que é paradoxal, desigual e injusta. Totalidade que revela diferentes capitais educacionais, culturais e socioeconômicos. Então, as consequências negativas de uma sociedade estratificada se projetam no usufruto seletivo e privilegiado de informações, saberes e conhecimentos.

Efeitos e interferências possíveis no campo jornalístico

O cenário que procurei sintetizar acima provoca uma série de efeitos e impactos na práxis jornalística. Costumo dizer que o jornalismo envolve, ao mesmo tempo, a melhor profissão do mundo e uma das profissões mais problemáticas do mundo. Porque, se nenhuma outra profissão tem a profundidade e a variedade de contatos e trocas com a condição humana como o jornalismo, é forçoso reconhecer que a estrutura empresarial que rege o jornalismo de mercado é profundamente verticalizada e avessa a expressões autônomas e participativas por parte dos jornalistas.

Os mecanismos de controle cresceram enormemente nas empresas de mídia, gerando, como efeito colateral, uma sensível diminuição da possibilidade de interferência autoral dos jornalistas nos produtos e mensagens que elaboram. Resultam daí ambivalências e frustrações. Sem dúvida, há desvios nos processos informativos, provocados, em grande medida, pelo modelo autoritário que rege as relações internas das redações, um modelo intensamente controlador das informações e opiniões veiculadas. Mas a impaciência analítica se manifesta quando só se mede a atividade jornalística por equívocos e manipulações. Trata-se, no caso, de achar que só existe um jornalismo, quando existem jornalismos, no plural. As experiências do jornal Brasil de Fato, dos sites Carta Maior e Correio da Cidadania e do Observatório do Direito à Comunicação têm alguma coisa a ver com o jornalismo do grupo O Estado de S. Paulo e das Organizações Globo? Evidente que não. Isso não quer dizer, obviamente, que tudo que se faz no jornalismo do grupo O Estado de São Paulo e das Organizações Globo seja ruim.

O que diferencia Carta Maior, Brasil de Fato, Correio da Cidadania e Observatório do Direito à Comunicação é que eles produzem um outro tipo de jornalismo, mais insubordinado e comprometido com a crítica ao capitalismo, ao neoliberalismo e às elites dominantes - vale dizer, ao modo de produção elitista e excludente que serve de lastro a modelos verticalizados como os da maior parte das empresas de comunicação.

Um jornalismo mais plural

Quando tomamos contato com veículos contra-hegemônicos e alternativos, verificamos múltiplos enfoques e interpretações sobre acontecimentos e questões sociais, políticas, econômicas e culturais. É um tipo de jornalismo mais plural, mais inclusivo, não-mercantilizado e permeável às causas comunitárias e populares. E, no entanto, é jornalismo. E as pessoas que fazem essas publicações são jornalistas. Quem dirige essas redações são jornalistas. Insisto que devemos adotar um raciocínio dialético em relação aos jornalistas e pensar sua práxis de uma maneira abrangente. Os modos de atuação dos jornalistas dentro das corporações podem oscilar, seja por suas posturas, habilidades ou alinhamentos, seja pelas múltiplas experiências vividas, seja por nuanças ideológicas, programáticas e mercadológicas nas diretrizes empresariais. Não podemos esquecer que, entre os jornalistas da grande imprensa, existem aqueles que tentam explorar brechas, fissuras e fendas dentro dos próprios aparatos. Com efeito, é fundamental não reduzir o jornalismo enquanto atividade complexa e plural ao tipo de jornalismo com o qual estamos em desacordo, que é aquele jornalismo sob controle ideológico das classes dominantes, faccioso, e que neutraliza ou silencia as manifestações do contraditório.

A crítica à mídia é decisiva, imperiosa e inadiável. Impossível sermos indiferentes a distorções, mazelas e interdições por ela praticadas. Os principais órgãos de difusão dizem representar a vontade geral, quando, em verdade, espelham prioridades mercadológicas e conveniências políticas, econômicas e ideológicas dos grupos privados que os controlam. Tudo isso em detrimento do interesse coletivo, que deveria ser o ponto central a ser observado, principalmente por veículos que detêm concessões públicas de licenças de rádio e televisão.

Reivindico apenas que tenhamos um olhar abrangente e equilibrado sobre a produção jornalística como um todo. Não percamos de vista que o jornalismo, por definição, é uma atividade que, a despeito de limitações e coerções, tem a ver com a liberdade de expressão e a diversidade, estando em contato privilegiado com a condição humana, a partir de uma relação febril com a realidade social. O fascínio pelo jornalismo está, a meu ver, associado à sua relação com aspirações, vicissitudes e expectativas dos homens concretos, como também à possibilidade de traduzir em textos, sons e imagens os acontecimentos sociais, econômicos, políticos e esportivos, os conflitos humanos, as criações culturais, o entretenimento, os fatos da vida cotidiana etc.

Devemos manter o espírito crítico aceso em relação aos desvios e manipulações cometidas pelos veículos de massa, mas não podemos esquecer que existem outros jornalismos. E quando me refiro a outros jornalismos não estou me referindo apenas ao jornalismo contra-hegemônico em sentido estrito; existem vários outros jornalismos: comunitário, sindical, estudantil... Há revistas e jornais alternativos, sites, portais, rádios e TVs comunitárias, universitárias e educativas, agências de notícias independentes, ONGs, coletivos de produção independente, o jornalismo dos movimentos sociais. Há uma pluralidade que tem que ser contemplada na análise, e nós não podemos confundir os vários jornalismos diante de nós com o jornalismo problemático da grande mídia.

Tecnicismo x formação humanística

É essencial procurar interferir nos múltiplos cenários que envolvem a atividade jornalística. A começar pela formação dos novos jornalistas, tentando superar insuficiências no ensino de jornalismo. Com frequência preocupante, há uma valorização excessiva do tecnicismo em detrimento de uma formação mais humanística. Sem falar no desaparelhamento tecnológico da maioria das universidades numa era de comunicação multimídia, fenômeno que afeta, sobretudo, as universidades públicas – muitas delas não dispõem de orçamentos, equipamentos e condições de trabalho condizentes com as atuais exigências de qualificação.

É urgente modificar as legislações de comunicação no Brasil, alterando o regime de concessões de licenças de rádio e televisão. Tal providência se impõe tanto para coibir o clientelismo político e abrir oportunidades a canais comunitários e a uma comunicação pública não-governamental quanto para ampliar os mecanismos democráticos de controle social sobre as empresas concessionárias. Melhorar a qualidade de programação da televisão aberta também passa pela contenção da obsessão mercantil das emissoras. Investimentos em meios não mercantilizados podem fortalecer veículos alternativos, comunitários e populares, bem como a produção cultural independente e crítica.

Apesar dos obstáculos, há chances de evoluirmos para exercícios mais instigantes do jornalismo, aproveitando ferramentas e ecossistemas digitais e desenvolvendo formas colaborativas e descentralizadas de produção informativa e cultural, especialmente através do trabalho em rede e de ações compartilhadas. Em busca de outros jornalismos possíveis, devemos reunir projetos convergentes e mobilizar energias criativas e consciências interpeladoras para fazer reviver a inquietação diante de um mundo reificado. Pois foi esta inquietação que motivou tantos de nós, quando jovens, a escolher o jornalismo não apenas como profissão, mas também como destino histórico para nossos espíritos indomáveis.

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