Edição 289 | 13 Abril 2009

“A midiatização produz mais incompletudes do que as completudes pretendidas, e é bom que seja assim”

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Graziela Wolfart

Antonio Fausto Neto acredita que a midiatização produzirá impactos muito interessantes também nos ambientes acadêmicos, os quais vão se preparar com outros equipamentos teóricos e analíticos para dar conta de suas manifestações

Na visão do professor Antonio Fausto Neto, a midiatização pode ser conceituada como “a emergência e o desenvolvimento de fenômenos técnicos transformados em meios, que se instauram intensa e aceleradamente na sociedade, alterando os atuais processos socio-técnico-discursivos de produção, circulação e de recepção de mensagens”. Fausto Neto considera que a midiatização “produz mutações na própria ambiência, nos processos, produtos e interações entre os indivíduos, na organização e nas instituições sociais”. E resume: “Trata-se de ascendência de uma determina realidade que se expande e se interioriza sobre a própria experiência humana, tendo como referência a própria existência da cultura e da lógica midiáticas”. Essas e outras declarações ele fez na entrevista que concedeu para a IHU On-Line por e-mail.

Antonio Fausto Neto é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. Possui graduação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), mestrado em Comunicação, pela Universidade de Brasília (UnB), doutorado em Sciences de La Comunication et de L'information, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, da França, e pós-doutorado, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é também consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e professor colaborador da Universidade de Santa Cruz do Sul. É autor de vários livros, entre os quais citamos Desmontagens de sentidos - Leituras de discursos midiáticos (João Pessoa - PB: Ed. Universitária UFPB, 2001), e co-organizador de Midiatização e processos sociais na América Latina (São Paulo: Paulus, 2008).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - De que forma o senhor conceitua “midiatização”?

Antonio Fausto Neto - Trata-se da emergência e do desenvolvimento de fenômenos técnicos transformados em meios, que se instauram intensa e aceleradamente na sociedade, alterando os atuais processos socio-técnico-discursivos de produção, circulação e de recepção de mensagens. Produz mutações na própria ambiência, nos processos, produtos e interações entre os indivíduos, na organização e nas instituições sociais. Grosso modo, trata-se de ascendência de uma determina realidade que se expande e se interioriza sobre a própria experiência humana, tendo como referência a própria existência da cultura e da lógica midiáticas.

IHU On-Line - E o que entende por “analítica da midiatização”?

Antonio Fausto Neto - Este conceito foi utilizado num determinado contexto no qual procuramos dar sequência à observação empírica sobre as manifestações da midiatização, no caso, as práticas discursivas midiáticas. Segundo nossa hipótese, o que caracteriza, hoje, o funcionamento das mídias é um determinado modelo de enunciar realidades e que se define como uma espécie de “ato analítico”, que é centrado em suas próprias operações, como possibilidade de produzir inteligibilidade sobre o real. Trata-se de um dispositivo interpretativo próprio que enfatiza mais as suas operações que realiza para construir leituras do mundo, do que levar em conta as ressonâncias de outras práticas de sentido. Analítica, neste sentido, porque se mostra, e se faz, através de um “programa de leitura”, cuja enunciação se faz a partir de uma forma de dizer que se engendra nas fronteiras do próprio sistema das mídias. Interessante é que “franjas” desta analítica ultrapassam as fronteiras do próprio campo que o engendra, na medida em que incidências de suas manifestações se disseminam nas diferentes práticas sociais, necessariamente não midiáticas, como as de natureza religiosa, política, educativa, associativa, familiar etc.

IHU On-Line - Como pensa que esse fenômeno repercute sobre as práticas acadêmicas desenvolvidas nas universidades e nos PPGS de ensino e de pesquisa da comunicação midiática? E como ele é estudado e analisado nesses ambientes?

Antonio Fausto Neto - Por se tratar de um fenômeno em processualidade, ele se torna um tema “emergente” no ambiente acadêmico, especialmente nos programas de pós-graduação, alguns mais jovens e que já nascem com áreas de concentração e linhas de pesquisas definidas segundo determinadas peculiaridades. Neles, os estudos comunicacionais migram de influências articuladas com a tradição de modelos de ciências sociais, observando-se a existência de processos analíticos e observacionais já cristalizados e que se voltam mais para “dar razão” às teorias, propriamente ditas, do que se examinar, de outra forma, fenômenos tão complexos, e cujos registros são, em muitas situações, apenas incipientes. Mas devemos agregar a este aspecto o fato de que a midiatização irrompe com celeridade há pouco tempo, no nosso planeta e mesmo em países mais avançados. Os estudos e a pesquisa acadêmica enfrentam seus primeiros movimentos. Isso significa dizer que a midiatização produzirá impactos muito interessantes também nos ambientes acadêmicos, os quais vão se preparar com outros equipamentos teóricos e analíticos para dar conta de suas manifestações. Isso nos parece muito bom, pois o ensino universitário terá de organizar seus currículos e programas de pesquisas a partir de demandas muito particulares, como, por exemplo, aquelas das quais serão portadores os próprios jovens, enquanto atores que estarão vivendo a midiatização na própria pele.

IHU On-Line - De que maneira a crescente autonomia do campo das mídias impõe transformações nos “contratos” e nos vínculos entre estruturas de produção e recepção de discursos midiáticos?

Antonio Fausto Neto - Como dissemos em outros textos, a midiatização também engendra seus próprios limites. O fato de vivermos sob a égide do conexismo faz com se origine um certo descentramento de “lugares de fala”. E o que se observa é o fato da portabilidade tecnológica produzir dois efeitos complexos. Ou traz o receptor para o centro dos processos produtivos midiáticos, ou faz migrar para novas buscas de meios e de protocolos de consumo, abandonando velhos pactos de fidelização com antigas mídias. Ou seja, coloca-se uma reformulação radical nos processos de interação, entre os meios e seus consumidores. Os primeiros diante da iminência de “processos de solidão” buscam reconstituir os contatos com seus usuários segundo novos contratos que misturam motivações comerciais e estratégias de leituras. Os segundos, os leitores, são chamados a se “educar” para as mídias na medida em que para neles estar precisam ter um conhecimento, ainda que “espasmódicos” dos seus processos produtivos. Portanto, a autonomia é relativa, na medida em que produtores e receptores de mensagens se encontram hoje mais em “zonas de transformação de discursos” do que necessariamente “reclusos” em suas próprias fronteiras como até então entendíamos emissores e receptores de mensagens.

IHU On-Line - Como a midiatização pode gerar novas formas de cooperação entre as políticas acadêmicas e as políticas de ciências e de tecnologia focadas na área de comunicação?

Antonio Fausto Neto - Alguns aspectos devem ser comentados: o fato de vivermos hoje em uma nova “plataforma de sentidos” que desloca para o problema da circulação de mensagens a eficácia do processo comunicacional torna indissolúvel o laço social que se forma a partir deste fenômeno. Diria até que os protocolos através dos quais se estabelecem as políticas de campos sociais - como as relações entre o campo científico e outros campos - se engendram tomando como referência postulados da midiatização, aspecto que sejam a hibridação de competências rituais, postulados, lógicas de discursos. Mais e mais vemos cientistas falando de temas “opacos” - ou complexos - na tribuna das mídias, sem necessariamente se colocarem como “vulgarizadores científicos”, mas “socializados” pelas lógicas dos processos midiáticos. Agora mesmo, estou trabalhando as relações entre a “vida em laboratórios” e a “vida midiática” examinando as relações entre cientistas e comunicólogos, tomando como referência instituições para quem esta problemática se apresenta. Questões muito valiosas aparecem aí e que são típicas dos tempos em que estamos vivendo, e que não poderiam aparecer mesmo quando se inventou a história do “jornalismo cientifico”.

IHU On-Line - O senhor acredita que a midiatização aponta um avanço e uma possibilidade de construção de novas estratégias para a produção do conhecimento?

Antonio Fausto Neto - A pergunta situa bem, pois fala em novas estratégias e não em uma estratégia central. Isso me faz pensar na multiplicidade de revistas editadas por núcleos editoriais que desdobram diferentes disciplinas em conteúdos. Não se trata de uma motivação apenas comercial face à natureza dos mercados emergentes. Trata-se de um problema que faz uma tensão e que diz respeito à existência de um ambiente progressivamente interdiscurso. A isso é o que chamo viver em “zonas de transformações”, na medida em que a enunciação parece não ter mais origem e fim, mas que se desdobra em camadas de falas, discursos, pareceres, dissolvendo competências de campos. Perguntar-se-ia não só como se pronuncia a ciência, mas como ela hoje produz efeitos de sua coerência e de sua consistência em meio a “ordens de discursos” que roubam, dentre outras coisas, a autoralidade, a protagonização do próprio discurso cientifico? Esta é uma questão que serve como um grande “caldo de cultura” para a produção de currículos, de estudos e protocolos de cooperação da pesquisa; das mutações da vida laboratorial etc.

IHU On-Line - Quais as principais transformações no âmbito do jornalismo a partir do fenômeno da passagem da “sociedade dos meios” para a “sociedade midiatizada”? O que muda no discurso jornalístico?

Antonio Fausto Neto - Muitas mutações e que talvez não possam ser abordadas neste espaço de uma entrevista, mas acho que duas ou três observações, parecem vitais: o modelo de auto-reflexividade do jornalismo que desloca o jornalista de sua curiosidade pelo mundo, centrando-o nas propriedades dos seus próprios ambientes; o enfraquecimento do seu “poder de enunciar” na medida em que tais processos produtivos passam cada vez mais para as mãos de muitos; a solicitação de novos objetos a serem enfrentados, enquanto reflexão sobre práticas jornalísticas nos próprios ambientes de trabalho, mas também nos próprios ambientes de formação, como é o caso da universidade.

IHU On-Line - Em que sentido a midiatização fomenta mudanças de uma “enunciação representacional” para uma “enunciação de auto-referenciação” midiática? Quais as consequências sociais deste processo?

Antonio Fausto Neto - Recupero a alcunha de um autor norte americano, Nicolas Negroponte,  para quem este mundo no qual cada um edita suas próprias notícias estaria criando não apenas processos de enquadramentos interpretativos muitos peculiares, mas também uma espécie de “eu diário”. Queria dizer, dentre outras coisas, que a autonomia que a mídia e nós mesmos gozamos, para mover-nos visando construir nossas inteligibilidades faz com que reduzamos a compreensão do mundo às nossas próprias auto-referências. Significa a perda da “pugna com a diferença” e a emergência da sociedade da desatenção.

IHU On-Line - Como o senhor aplica o processo de midiatização ao cenário religioso brasileiro?

Antonio Fausto Neto - Talvez o Brasil seja o país no qual mais o campo religioso tem permeado suas práticas pela presença de operações de mídia. Este fato tem a ver com vários fatores intrínsecos à vida das instituições, mas, sobretudo, o fato do exercício da vida religiosa se organizar em torno de algo que chamamos um novo e complexo mercado discursivo no qual se travam disputas de sentido nas quais a noção de crença é redesenhada a complexos processos de experimentação. Penso que a “economia do sensível” promovida pela emergência de linguagens, técnicas e operações midiáticas, favorece uma nova “cultura do contato” e que se expande até mesmo nos rituais onde o contato estaria a serviço do “contrato”, este enquanto ofertador das condições sobre as quais organizávamos nossas possibilidades de crer. Hoje, crer não requer abstração, na medida em que a vida midiática une de formas totalmente novas o profano e o sagrado.

IHU On-Line - Qual a força da influência da midiatização no sentido de transformação da vida das pessoas, principalmente quando envolve crença e pertença religiosa?

Antonio Fausto Neto - Não há respostas consensuais, na medida em que as diferentes lógicas com que os indivíduos sinalizam suas relações com estes fenômenos apontam para processos heterogêneos através dos quais se lida com estas complexidades. Sem dúvida que processos de afetações se passam, lado a lado, nas interações reunindo praticas religiosas e fiéis. São fenômenos que apontam para as tais “zonas de transformações” que me faz pensar numa espécie de enunciação que se expande. Por isso, acho que, a despeito dos protocolos de leitura da mídia e sobre os quais organizamos nosso modo de contar o mundo serem eficazes e produzirem sentidos (embora não saibamos quais, necessariamente), engrossamos, mesmo com ônus (como a indiferença e a desatenção gerada por estes processos), outros processos complexos de produção de sentido, com que fazemos valer nossa existência e o nosso modo de compreender. A midiatização produz mais incompletudes do que as completudes pretendidas, e é bom que seja assim. 

Leia mais...

Antonio Fausto Neto já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Elas estão disponíveis na nossa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu)

- Descentramento do lugar do jornalismo – Edição nº 254, de 14-04-2008, intitulada Mídia livre? A democratização da comunicação.

- As relações entre mídia e política no espaço público – Edição nº 202, de 30-10-2006, intitulada Mídia e política.

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