Edição 289 | 13 Abril 2009

Dispositivos midiáticos e processos sociais: um debate sobre a midiatização

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Graziela Wolfart

Para Jairo Ferreira, a normatividade das instituições está em jogo nos processos de intersecção com os dispositivos de comunicação.

Ao comparar a realidade midiática do Brasil com os demais países latino-americanos, o professor Jairo Ferreira indica como diferença o fato de que “em outras sociedades da América Latina o ‘monopólio da fala’ está mais creditado ao Estado, e, no Brasil, ao mercado discursivo-midiático, sendo esse mesmo mercado um operador e transformador daquilo que chamamos de Estado e da própria sociedade”. Na opinião do professor, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, os discursos midiáticos não se “dobram” a narrativas e argumentações orgânicas das instituições e dos campos sociais. Eles têm como característica central “a mobilização de novas narrativas e argumentações, criando um espaço polêmico, típico de um mercado discursivo não oligopolizado e/ou monopolizado”. E, continua ele, “não fazem isso porque querem, ou têm boas intenções, mas porque isso é a forma de ‘sobrevivência’ da instituição midiática num mercado discursivo competitivo, característico da formação sócio-discursiva brasileira”.

Jairo Ferreira é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. Formado em Jornalismo e em Ciências Econômicas, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é mestre em Sociologia e doutor em Informática na Educação pela mesma instituição, com sanduíche nos Arquivos Jean Piaget e na Unidade de Tecnologias Educacionais da School of Psychology and Education, University of Geneva. Organizou os livros Cenários, teorias e epistemologias da comunicação (Rio de Janeiro: E-papers, 2007), com Eduardo Vizer; Mídias e movimentos sociais: linguagens e coletivos em ação (São Paulo: Paulus, 2007), com Fausto Neto, José Luiz Braga e Pedro Gilberto Gomes, e Midiatização e processos sociais na América Latina (São Paulo: Paulus, 2008). Atua principalmente nos seguintes temas: epistemologia, midiatização, dispositivos, campos das mídias e circulação.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - De forma geral, o que podemos entender por midiatização? O que caracteriza essa nova “ambiência” em que as novas tecnologias se tornam meios de comunicação também?

Jairo Ferreira - Podemos iniciar pelo final da pergunta, ou seja, que processo é este em que “as novas tecnologias se tornam meios de comunicação”. Esse processo vem desde a antiguidade. Para compreendermos a comunicação, os conceitos de técnica e tecnologia devem ser integrados ao de dispositivos. Os dispositivos de comunicação são acoplamentos e operações entre processos de interação social, linguagens, técnicas e tecnologias. Ilustro. Esta revista é um dispositivo. Embora eu tenha respondido a esta entrevista há alguns dias, estamos aqui “falando com o leitor”, portanto, interagindo com ele. Aqui, neste caso de interação, a técnica mobilizada é a entrevista – o roteiro conforme a pauta configurada em outro dispositivo (linha editorial e agenda da IHU On-Line), as formas de desenhar as colunas, os títulos, as fotografias, as letras etc. A linguagem está desenhada pelos códigos escritos, e sua aderência às dimensões interpretativas. Temos então, até aqui, dois pólos explicativos do que consideramos midiatização: os dispositivos de comunicação e midiáticos, e os processos sociais. Os acoplamentos e operações dos dispositivos incidem sobre os processos sociais em geral, incluindo as ações e interações, ao mesmo tempo em que são afetados por estratégias e apropriações constituídas em outras esferas do social.

Os processos de comunicação

O terceiro pólo que mobilizamos para a análise da midiatização são os processos de comunicação, abrangendo, também, as interações e ações comunicativas. Nessa esfera, há um constante processo de reelaboração de valores, normas, enfim, aquilo que, no campo da comunicação, condensamos como produção social de sentido. É, portanto, o lugar focal do problema comunicacional. A diferença está em que, na área da comunicação, quando se estuda a midiatização, esse lugar focal requisita, para ser entendido, uma nova epistemologia, irredutível às ciências sociais clássicas, às ciências da linguagem e mesmo à arte. O problema da midiatização está localizado nessas relações “entre” essas três esferas: primeira, a dos processos sociais (analisados pela sociologia, antropologia, psicologia social, ciência política, economia etc.); segunda, a dos processos de comunicação, onde são fundamentais os conceitos de conversa, ação comunicativa, estratégias, linguagens; terceira, a dos dispositivos. As intersecções entre essas três esferas se referem aos processos em que um determinado pólo atua sobre as relações dos outros dois. Assim, as relações entre processos sociais e processos de comunicação são, cada vez mais, interseccionadas pelos processos acionados sobre os dispositivos midiáticos. O conceito de ambiência é uma contribuição para adotarmos uma posição que compreenda que o “novo” que surge aí é irredutível às suas partes, e não é passível de ser subtraído de suas relações.

IHU On-Line - Quais são os principais focos de estudo dos processos da midiatização?

Jairo Ferreira - A compreensão da midiatização a partir das relações entre processos sociais e dispositivos decorre de discussões já desenvolvidas no campo acadêmico da comunicação. Assim, os processos sociais aparecem no debate do campo acadêmico da comunicação a partir de perspectivas que requisitam as contribuições de teorias sociais de diversas origens (sociologia, a psicologia, a antropologia, filosofia, as teorias do signo etc.). Aqui, o comunicólogo, necessariamente, entra em contato com conhecimentos que estão sendo produzidos em outros campos acadêmicos, que nem sempre tem como ponto de partida o problema comunicacional ou midiático. Os conceitos de indivíduo, sujeito, ator, agente, sociedade, instituição, interações, mercados, valores, condutas, subjetividade, cognição, inconsciente, consciência, ideologia, estrutura, linguagem etc., que mobilizamos, são oriundos dessas reflexões. Essas formulações permitem superar leituras ingênuas sobre os processos sociais. Assim, a comunicação e a “mídia” são entendidas como subordinadas ao problema da distinção das classes, dos capitais, da construção dos sujeitos, dos atores, de suas condições de existência etc. A reflexão teórica e conceitual sobre essas incidências permite ver como os processos sociais e discursivos capturam as relações de comunicação.

A apropriação desses conhecimentos pelo campo acadêmico da comunicação visa um lugar próprio, de reconhecimento diferenciado em termos de vantagens no mercado acadêmico.  Aqui, o fato de que tais apropriações sejam produzidas no âmbito de pesquisas experimentais sobre as “mídias” alimenta um processo de vantagens comparativas, cada vez maiores, relativamente às teorias sociais, da linguagem e filosofia de produzidas em outros campos acadêmicos e disciplinas. Nessas correlações, particularmente importantes no campo acadêmico da comunicação são os estudos de caráter empírico-experimental, em que conceitos e teorias que abordam as relações das “mídias” com a comunicação são diferenciados, agora, em produção, consumo, circulação midiáticas, como lugares específicos de produção de novos processos sociais, ao mesmo tempo em que intersecionados por esses.

O esforço do campo acadêmico da comunicação, no estudo da midiatização, deve ser, em nosso entendimento, superar naturalizações dos nomes “meios”, “mídias”, quando não de termos mais vagos ainda (aparatos, suportes etc.). Nesse sentido, o esforço teórico sobre a midiatização requisita, um conjunto conceitual próprio do campo acadêmico da comunicação sobre o que é termo de origem do conceito de midiatização (ou seja, algo em ação através das “mídias”). O foco que estamos desenvolvendo é o de dispositivos (Ferreira, 2006), sem querer, com ele esgotar outras dimensões em debate (meios, suportes e mídia, inclusive), mas remetendo a elas.

IHU On-Line - O que marca a transformação da “sociedade dos meios” para a “sociedade midiatizada”?

Jairo Ferreira - Para se compreender a sociedade midiatizada, é necessário realizar um movimento epistemológico: parte-se da identificação da autonomia dos fluxos de sentido midiáticos, lugar de onde passa a se observar o “peso explicativo” das condições exógenas (discursos orgânicos e condições de existência das instituições observadas, atores sociais, interações etc.). Esta inversão de objeto corresponde a uma inversão teórica: se desloca o problema de sua constituição a partir das heranças teóricas para questões específicas do campo da comunicação. Sociedade dos meios e sociedade midiatizada, nesse sentido, são conceitos e teorias que correspondem a angulações epistemológicas. Para muitos, a sociedade dos meios continua a existir. Pretende-se, nesse caso, que a mídia esteja subordinada às condições de existência (capitais econômicos, políticos e culturais, por exemplo) e aos discursos orgânicos de poder (hegemonia discursiva de frações ou classes sociais), como pressupostos para a crítica e análise dos fluxos discursivos midiáticos. Já a existência da sociedade midiatizada é correlata à identificação do problema da circulação de sentido produzido na esfera midiática.

IHU On-Line - Pode falar brevemente sobre qual é a tese central do livro Midiatização e processos sociais na América Latina? Em que sentido a midiatização interfere na forma brasileira e latino-americana de se constituir enquanto sociedade? 

Jairo Ferreira - A questão diferencial predominante está relacionada à configuração do mercado discursivo. No caso brasileiro, os fluxos de sentidos originados em uma diversidade de estratégias, capitais e competências discursivas disputam a construção social sem que uma instituição específica possa monopolizar ou oligopolizar os processos de sanções, concessões, regalias, no que se refere ao sentido. São diversas as instituições, e, dentro delas, os atores envolvidos na disputa. Minha percepção é de que nas outras formações sociais discursivas da América Latina há um conjunto de instituições que ainda possui uma força de oligopólio em termos de produção social de sentido. Também na perspectiva dos mercados discursivos são sociedades onde a herança “pré-mercantil” é mais forte. Isso não significa que, no Brasil, os capitais, as competências discursivas e os processos regulatórios na distribuição de acessos, concessões e regalias sejam democráticos, emancipados e cooperativos, mas sim que as “leis do mercado” identificadas pela crítica marxista regulam esse mercado. Mas, ao contrário do que pensa o marxismo clássico, não se trata de uma regulação das condições de existência que predomina, mas de processos próprios à produção de sentido que intervêm. Ou seja, essa interferência e interseção são da sociedade do mercado. É a partir das lógicas dos mercados discursivos que se manifestam as condições de existência de atores e instituições, suas competências discursivas, interferindo nas configurações dos dispositivos de comunicação e midiáticos, em intersecção com os processos de comunicação. A diferença, em outras sociedades da América Latina, estaria em que o “monopólio da fala” está mais creditado ao Estado, e, no Brasil, ao mercado discursivo, sendo esse mesmo mercado um operador e transformador daquilo que chamamos de Estado e da própria sociedade.

IHU On-Line - Que tipo de repercussão e de consequência o fenômeno da midiatização provoca em nossa sociedade, nos atores sociais e nos processos gerais de nosso cotidiano?

Jairo Ferreira - As interferências e intersecções devem ser estudadas experimentalmente, mobilizando-se o método científico moderno. Mas temos algumas “abduções”, a partir dos processos formativos em que temos participado. Por exemplo, identificamos que a questão central para agentes sociais das instituições de segurança pública (policiais civis, militares, guardas municipal), na relação com a mídia, é a interferência desta nos processos técnico-normativos da polícia. Assim, afirmam que todas as normas que aprendem em suas academias são “quebradas” nas interações com a “mídia”; dizem, ainda, que as políticas públicas estão reguladas pelo discurso midiático (definição pela mídia de focos de violência, ações reativas e espetaculares etc.). Generalizando, poderíamos afirmar a hipótese de que a normatividade das instituições está “em jogo” (em crise?) nos processos de intersecção e interferências dos dispositivos midiáticos, em termos de ações e de discursos.

Discursos midiáticos x discursos orgânicos

Os discursos midiáticos não se “dobram” a narrativas e argumentações orgânicas. Têm, como característica central, a mobilização de novas narrativas e argumentações, criando um espaço polêmico, típico de um mercado discursivo não oligopolizado e/ou monopolizado. Não fazem isso porque querem, ou têm boas intenções, mas porque isso é a forma de “sobrevivência” da instituição midiática num mercado discursivo competitivo, característico da formação sócio-discursiva brasileira. Mas, até esse momento, estamos falando de instituições. Essa relação entre discursos midiáticos e discursos orgânicos das instituições, afetando as práticas, ações e interações sociais, deve, em nossa perspectiva, ser observada no sentido de como isso ocorre num plano das interações e ações sociais, especialmente discursivas, mais próximas ao que as ciências sociais estudaram como o nível psicológico. Ou seja, é importante verificar as afetações da mídia sobre as configurações dos indivíduos não apenas em seus papéis sociais, mas, além dessas, e articuladas, em suas mobilizações psicológicas. Esse extravasamento, mobilizações e acoplamentos entre indivíduo psicológico e dispositivos midiáticos parecem centrais hoje, como foco de retomada reflexiva das relações entre processos sociais, de comunicação e “mídia”. 

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