Edição 289 | 13 Abril 2009

A interação humana atravessada pela midiatização

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Graziela Wolfart

Muniz Sodré acredita que está se gerando uma nova ecologia simbólica, com consequências para a vida social

Conhecido pela máxima de que “antes da midiatização da sociedade só Deus tinha o poder imediato, global e instantâneo”, o jornalista Muniz Sodré define o fenômeno da seguinte maneira: “Midiatização (...) é a articulação do funcionamento das instituições sociais com a mídia”. Para ele, trata-se de algo realmente novo, “fruto das transformações nos modos de urbanização e no advento das tecnologias da informação e da comunicação, vetorizadas pelo mercado capitalista”. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Sodré defende que a expressão “sociedade da informação” é “menos do que um conceito e mais um slogan dos arautos (empresas, deslumbrados etc.) da euforia tecnológica”. Ele considera que a principal consequência social da “telerrealização das relações humanas” é a “redefinição dos modos de constituição da comunidade humana”. E acrescenta que “a corporeidade tende a ser neutralizada pelos dispositivos tecnológicos”, o que, na sua opinião, não é nenhuma catástrofe, “tão só um novo modo de instalação do corpo humano na rede social, agora tecnologizada”.

Muniz Sodré de Araújo Cabral é jornalista, sociólogo e tradutor brasileiro, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Escola de Comunicação. Possui graduação em Direito, pela Universidade Federal da Bahia, mestrado em Sociologia da Informação e Comunicação, pela Université de Paris IV (Paris-Sorbonne), e doutorado em Letras (Ciência da Literatura), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde obteve também o título de Livre-Docente em Comunicação. Atualmente, é também presidente da Fundação Biblioteca Nacional, órgão vinculado ao Ministério da Cultura. Possui cerca de 30 livros publicados nas áreas de Comunicação e Cultura, dentre os quais citamos Sociedade, mídia e violência (Porto Alegre: Sulina, 2004) e As estratégias sensíveis - afeto, mídia e política (Petrópolis: Vozes, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor afirma que “antes da midiatização da sociedade só Deus tinha o poder imediato, global e instantâneo”. Acredita que a mídia tenha tanta força assim, com capacidade para mudar profundamente a vida das pessoas e o rumo da sociedade?

Muniz Sodré - Afirmar o efeito SIG (simultaneidade, instantaneidade e globalidade) da mídia não implica, em princípio, afirmar a sua capacidade de mudança profunda da vida das pessoas ou do rumo da sociedade. Implica, sim, sustentar que a aceleração temporal, por intervenção tecnológica nas coordenadas do espaço-tempo, altera modos de percepção e práticas correntes na mídia tradicional, logo, altera comportamentos e atitudes na esfera dos costumes, normalmente pautados pela mídia. Isto significa que está se gerando uma nova ecologia simbólica, com consequencias para a vida social.

IHU On-Line - O que caracteriza o ethos midiatizado? 

Muniz Sodré - O ethos é a atmosfera afetiva (emoções, sentimentos, atitudes) em que se movimenta uma determinada formação social. O ethos midiatizado caracteriza-se pela manifesta articulação dos meios de comunicação e informação com a vida social. Ou seja, os mecanismos de inculcação de conteúdos culturais e de formação das crenças são atravessados pelas tecnologias de interação ou contato. Passamos a acreditar naquilo que se mostra no espelho industrial.

IHU On-Line - Em que medida podemos entender a midiatização como fruto da sociedade da informação?

Muniz Sodré – “Sociedade da informação” é menos do que um conceito, é mais um slogan dos arautos (empresas, deslumbrados etc.) da euforia tecnológica. Toda e qualquer sociedade sempre teve os seus meios de informação e de estocagem de conhecimentos. O que acontece agora é a capacidade exponencial de processamento e velocidade de circulação de dados. Midiatização, por sua vez, é a articulação do funcionamento das instituições sociais com a mídia. Isto, sim, é novo. É fruto das transformações nos modos de urbanização e no advento das tecnologias da informação e da comunicação, vetorizadas pelo mercado capitalista.

IHU On-Line - O que podemos entender por “tecno-interação” e como ela ajuda a compor o fenômeno da midiatização?

Muniz Sodré - Em função das transformações urbanísticas (novos conceitos de cidade, novas formas de habitação etc.), os indivíduos tendem a se relacionar à distância, compondo o que já se chamou de “telerrealidade” social. A interação passa a depender dos dispositivos de mídia (internet, rádio, televisão etc.), portanto, é visceralmente atravessada pelo fenômeno da midiatização.

IHU On-Line - Quais as consequências sociais da “telerrealização das relações humanas”?

Muniz Sodré - A principal é a redefinição dos modos de constituição da comunidade humana. A corporeidade – logo, as tensões e os conflitos decorrentes da proximidade no corpo coletivo – tende a ser neutralizada pelos dispositivos tecnológicos. Não há aí nenhuma catástrofe, tão só um novo modo de instalação do corpo humano na rede social, agora tecnologizada.

IHU On-Line - Como a midiatização e a tecnocultura impactam no modelo de leitura usado nos últimos séculos? O senhor pensa que a leitura em papel está em extinção?

Muniz Sodré - A questão do livro e da leitura ultrapassa hoje tanto a lógica financeirizada da produção – responsável pela publicação em massa da perversão dos conteúdos livrescos – quanto as concepções de leitura ancoradas na centralidade simbólica do livro, que, no entanto, está dando lugar a formas múltiplas ou plurais de leitura. A leitura do futuro, que já é hoje, se define, para nós, como um processo de interação entre linguagens e culturas diversas, existentes não apenas nos livros, mas na casa e na rua, no trabalho e na política, possibilitando o exercício da palavra, dando voz às minorias, sem o que não há cidadania.
 
IHU On-Line - O senhor acredita que os avanços e as mudanças tecnológicas já chegaram a todas as partes do mundo, inclusive os países em desenvolvimento, onde muitos ainda vivem em situação de extrema pobreza e miséria? Há democracia e inclusão por igual nesse sentido?

Muniz Sodré - Não há democracia, nem inclusão digital por igual. No entanto, uma sociedade do conhecimento com viés instrutivo implica uma ligação visceral da cidadania com as novas formas públicas de cultura que, agora, deixam de centralizar-se no livro para irradiar-se por sons e palavras, graças às tecnologias da comunicação, a todo o espaço social. Quem está de fora dos novos modos de ler e escrever é tido como excluído do mundo do trabalho e da cultura. Daí, a exigência histórica de que a escola, cada vez mais necessária para os pobres (já que os ricos fazem a sua integração quase que “naturalmente”, graças ao ambiente familiar e social), se redefina a partir de um horizonte cultural mais interativo, incluindo jovens e adultos no exercício de interação social, constituído pelas tecnologias da informação e, consequentemente, pelas novas práticas de escrita e leitura.

IHU On-Line - Com o imediatismo da informação, o espaço de tempo para a reflexão sobre os fatos acabou. Quais as consequências disso para a formação da sociedade do futuro?

Muniz Sodré - A reflexão sobre os fatos demanda uma temporalidade menos acelerada, ou seja, o “tempo adiado”, a que se refere Paul Virilio  em vários de seus trabalhos. É o tempo necessário à distância entre sujeito e objeto, que permite a reflexão. E a reflexão é cada vez mais necessária à reinterpretação continuada da democracia. Vale, assim, reforçar a idéia de John Dewey,  para quem um estado democrático em crise não sugere, como pensa a grande maioria, doses maiores de democracia formal, e sim uma reflexão centrada na idéia de democracia. O que há de especial nesta ênfase é que a democracia deixa de ser vinculada unicamente à política, já que esta última passaria a ser apenas uma das formas democráticas. Para Dewey, a democracia se encontra muito mais no fato e na experiência sociais do que na dimensão política: na medida em que transcende o Estado, configura-se como um modo de vida ou uma ideia/força. Neste sentido, a ideia de democracia está sempre destinada a ser revisitada, reinventada e reinterpretada. Considerando-se essa ideia como vetor vigoroso, imediatamente surgem em questão lugares, ações e posturas a serem investigadas pelo prisma da efetiva partilha e igual compartilhamento. Dentre eles, evocam-se o lugar da informação e o acesso aos bens culturais. Este viés é particularmente relevante nos dias atuais, quando os sistemas produtores de informação estão cada vez mais regidos pelo concentracionismo e a grande maioria dos públicos relegada ao papel de consumidor de mensagens. 

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