Edição 288 | 06 Abril 2009

Polifonia atual: 130 anos de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski

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Márcia Junges

Angústias da humanidade continuam a ser expressas através de clássico russo, define o jornalista Chico Lopes. Desintegração familiar, parricídio, niilismo e morte de Deus são outros temas discutidos nesta entrevista.

Considerado por Freud um dos maiores romances já escritos, Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), completa 130 anos de lançamento em 2009. Para analisar a atualidade e importância desse clássico russo, entrevistamos por e-mail o jornalista Chico Lopes. Leitor de Dostoiévski há mais de três décadas, ele acentua que Os irmãos Karamázov continuam expressando as angústias da humanidade, e que sua polifonia “vai do celestial ao infernal, passando por matizes exclusivamente humanos, com um poder de persuasão e de fazer o leitor mergulhar em seus meandros que poucas obras têm”. Ele percebe a desintegração patológica do núcleo familiar da trama como um espelho para vários exemplos de nossa época. Além disso, completa, os questionamentos de Ivan Karamázov, sobretudo no discurso O grande inquisidor, permanecem válidos: “a religião que se organiza entre homens, temporal, terrena, já nada mais tem a ver com a exigência do Divino – caiu na baixeza utilitária. O Divino é Cristo olhando sem dizer nada. O Grande Silêncio, só ele pode ser religioso”. Sob outro aspecto, “o julgamento de Dimitri, com suas dimensões de show e seus erros e mal-entendidos absurdos, e o público ávido por sensacionalismo, é atualíssimo”. O parricídio e sua conexão com o niilismo, com a consequente morte de Deus e esboroamento de valores, também é alvo da análise de Chico Lopes nesta entrevista.

Chico Lopes é paulista radicado desde 1992 em Poços de Caldas, Minas Gerais. Em Novo Horizonte, onde nasceu, fundou os jornais A Cidade e O Jornal e começou a escrever crítica de cinema e literatura. Em Poços de Caldas, tornou-se programador e apresentador de filmes no Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles (Casa da Cultura), onde trabalha até hoje. Publicou dois livros de contos: Nó de sombras (2000) e Dobras da noite (2004) pelo próprio Instituto Moreira Salles. Teve contos seus publicados em revistas como Cult e Pesquisa de São Paulo e jornais como o Rascunho, de Curitiba. Um conto seu está na antologia Cenas da favela, organizada para a Ediouro/Geração Editorial por Nelson de Oliveira em 2007. Escreve sobre literatura e cinema nos sites Germina, Conexão Maringá, Meio Tom, Cronópios e Verdes Trigos e em jornais como o Vaia, de Porto Alegre. Em 2009, deverá publicar o seu terceiro livro de contos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Após 130 de seu lançamento, quais são os principais aspectos que tornam Os Irmãos Karamázov uma obra atual? Ela continua expressando as angústias e as diferentes vozes do ser humano?

Chico Lopes - Com clássicos desse porte, entra-se no terreno da atemporalidade. O livro foi sempre pertinente, teve sempre a dizer para os homens de sua época e continuará tendo a dizer para qualquer um que o leia, em qualquer época. Os clássicos “pairam”, por assim dizer, e se desdobram retro e prospectivamente de maneira certeira. Li-o pela primeira vez lá pelos vinte anos. A releitura que fiz recentemente, aos 56, me devolveu toda a febre que tive na primeira impressão.

O livro continua expressando as angústias do ser humano, sim, e é uma polifonia que vai do celestial ao infernal, passando por matizes exclusivamente humanos, com um poder de persuasão e de fazer o leitor mergulhar em seus meandros que poucas obras têm. Parece que por ele passam todas as vozes.

Creio que, para ficar em alguns temas atuais, penso que a família Karamazóv, com sua desintegração patológica, a começar por um pai rigorosamente lascivo e negligente, irresponsável, bufão, é espelho de muitas que seguem se desintegrando, se dissolvendo em desarmonias nunca a rigor pacificadas e reguladas. O sensualismo brutal preside essa desunião – há egoísmos demais nesses núcleos infernais, apetites que se chocam, e a figura que deveria representar a autoridade desmorona, corroída por seu próprio descrédito. Outro tema: o intelectual Ivan  lançou perguntas que os intelectuais continuam a se fazer (e sem respostas consoladoras, sem dúvida alguma). A parábola do Grande inquisidor continua a valer: a religião que se organiza entre homens, temporal, terrena, já nada mais tem a ver com a exigência do Divino – caiu na baixeza utilitária. O Divino é Cristo olhando sem dizer nada. O Grande Silêncio, só ele pode ser religioso. O julgamento de Dimitri,  com suas dimensões de show e seus erros e mal-entendidos absurdos, e o público ávido por sensacionalismo, é atualíssimo.

IHU On-Line - Freud  chegou mesmo a afirmar que esse era o maior romance já escrito. Em sua opinião, que aspectos corroboram essa ideia do psicanalista?

Chico Lopes - Penso que as hierarquizações desse tipo são arriscadas. Há muitos “maiores romances”, e outros poderão invocar, com a mesma razão, Em busca do tempo perdido, Dom Quixote, Madame Bovary, Memórias póstumas de Brás Cubas, Grande sertão: veredas. Creio que Freud viu no romance muitas de suas ideias em ação, em drama. E, claro, satisfez-se vaidosa e humanamente vendo corroboradas tantas de suas teorias num livro de qualidade artística tão inegável.

É evidente que Aliócha  é inibido por um complexo de Édipo, que Smérdiakov  tem tintas de psicose, que há muita neurose e desejos reprimidos, projetados, sublimados, ao longo do livro, alguns, à maneira russa, oferecidos de modo transparente (os personagens falam muito e, quanto mais falam, mais se revelam) para o leitor atual, que já tem toda a carga da informação freudiana para facilmente decifrá-los.
     
IHU On-Line - Como compreender a figura de Aliócha, meio homem, meio santo, nascido numa família degenerada? O que Dostoiévski quis dizer através desse personagem?

Chico Lopes - Aliócha representa ali uma espécie de centro, mas não é necessariamente um centro equilibrado. É através dele que a história vai se contando e ele é puro, por vezes parece até neutro e funcional, mas por vezes a sua pureza, como se trata de uma criação de Dostoiévski, nos parece ambígua. Acho que temos que nos deter principalmente na sua curiosa relação com Lise, que se ri dele, mas se ri com o ressentimento de uma inválida. E ele tem por ela sentimentos meio protetores, meio sádicos. Há daqueles desmaios misteriosos, que sugerem que a grande admiração que tinha pela mãe embutia mesmo um Édipo particularmente problemático. Aliócha só passará a ser verossímil, mais tocante e mais humano, quando o “santo” Zósima morrer e seu cadáver começar a feder. Ele, aliás, não me desperta a mesma admiração que Ivan, muito mais trágico e mais complexo, consegue, em releituras, despertar.

IHU On-Line - Vê alguma relação entre criador e criatura quando o escritor nomeia de Fiódor  o pai pândego e degenerado dos Karamázov? Ou apontaria alguma aproximação entre o pai de Dostoiévski e o pai Karamázov?

Chico Lopes - Não conheço a biografia de Dostoiévski o bastante para afirmar isso, mas sua afirmação de que todos nós já desejamos um dia matar nosso pai é, sem dúvida, reveladora. Não é coisa que se escreva inocentemente. Há mais aquele mote: “Por que vive um homem assim?”, e o romance trata de nos pintar Fiódor com uma tal multiplicidade de defeitos que acabamos por achar muito lógico que um filho queira matá-lo.

IHU On-Line - Poderia explicar as figuras do pai bufão (Fiódor), do pai afetivo (Grigori ) e do pai espiritual (Zósima) no enredo da trama?

Chico Lopes - Essa tríade me parece bem notória – há um pai que chega às raias da santidade, e, francamente, me parece uma certa concessão à pieguice mística só redimida mesmo quando o santo começa a feder no célebre trecho do velório, que deixa Aliócha tão desapontado; há um pai bufão, tão digno de todo descrédito e desprezo que suspeitamos que não mereça nada além de punição; e há o pai afetivo (Grigori), que toma conta dos filhos abandonados com um desprendimento admirável (tem-se a impressão de que o melhor pai está longe de ser o natural). Mas há um elo entre Fiódor e Grigori que me parece misterioso – Fiódor precisa da mansidão e da bondade de Grigori, e me parece revelador que Dimitri tenha espancado justamente Grigori na noite do crime. Ele leva a pancada que o outro teria que ter levado. É como se Fiódor e Grigori encarnassem um duplo. O que não é nada de espantar em Dostoiévski, sempre voltado para esse tema, para essa quebra, esse luz-e-sombra antagônico e complementar entre seres. Temos um quarto pai. No final, Snieguiriov, aquele pai do garoto doente, com a dedicação canina ao filho, imensamente emotivo, é uma figura belíssima.

IHU On-Line - Em que medida Smerdiákov é o executor do parricídio que os outros três filhos legítimos de Fiódor desejavam concretizar, mas não o fizeram?

Chico Lopes - Conhecendo-se ali a história de Smerdiákov, filho da anã simplória que Fiódor praticamente estuprou, nos parece lógico que ele teria que ser o elemento sorrateiro e vingador. Ele como que expressa todas as correntes subterrâneas de abjeção, negação e sombra que passam pela família – ele é uma espécie de quarto de despejo, e os despejos simbólicos são importantes: são deles que partem ordens decisivas para as camadas superiores, conscientes. Ele tem uma carga de ressentimento atávico tão forte, é tão desesperadora a verdade que carrega, que a epilepsia parece a sua “obra de arte” meio voluntária (há até um espasmo planejado). Ele é aterrador: à medida que vamos conhecendo-o, vemos que o autodesprezo que o consome se extravasa num desejo de, digamos, apagar o mundo, apagar a sua identidade abjeta, e ele fará esta obra de apagamento/expiação começando por apagar o monstro que, em gozo irresponsável, o gerou.

IHU On-Line - Tomando isso em consideração, podemos afirmar que Ivan é o mentor intelectual do assassinato, enquanto Smerdiákov seria o agente deste, configurando-se em duplos?

Chico Lopes - Ivan pensa, Smerdiákov age. Mas talvez não seja bem assim, tão esquemático. Nos vários diálogos que eles travam, o leitor deve lembrar-se que Ivan sente nojo e aversão profundos por Smerdiákov, mas que Smerdiákov é, pela força de seu carisma negativo, também inspirador das ideias que passam pela cabeça de Ivan. Ele é o demônio sempre evitado com quem Ivan não consegue deixar de conviver. De fato, o caso dos duplos aí tem uma solidez visceral. Smerdiákov confirma o que Ivan detesta ver em si mesmo.

IHU On-Line - Como a temática do ressentimento une Ivan e Smerdiákov?

Chico Lopes - Exatamente através dessa relação claramente simbiótica. Eles odeiam praticamente as mesmas coisas, mas cada qual à sua maneira. Ivan sabe distanciar-se de si, sabe o que é monstruoso, Smerdiákov encarna o monstruoso, que o ultrapassa. Ivan se assusta, é consciente, Smerdiákov parece nada ter a perder senão um desespero acumulado desde a infância.

IHU On-Line - Como o elemento do parricídio se relaciona com a dissolução dos costumes e valores a que Dostoiévski se refere em toda a sua obra?

Chico Lopes - O parricídio é estarrecedor, em suas implicações simbólicas. Implica na morte de um centro necessariamente ordenador, de um nexo cultural profundo – autoridade, honra, respeito, sangue, transmissão cultural, afeto, cetro masculino. Pode significar o fim de tudo, uma anarquia aterradora, um vasto abismo caótico do qual pode emergir toda espécie de novidade monstruosa. Acho que Dostoiévski sentia isso com muita força, mas também sabia ironizar o assunto. Perceba-se que, no julgamento de Dimitri, a condenação do parricídio em alguns personagens é feita com certo exagero retórico pomposo que remete a uma boa dose de hipocrisia teatral. Portanto, a visão de Dostoiévski, nisso, como acho que em todo o resto, comportava muita ambiguidade: ele se debruçava sobre o parricídio com uma boa dose de fascínio, realmente, e procurava se distanciar do horror que o fascinava.

O livro de Dostoiévski fez com que se derramasse uma quantidade espantosa de tinta sobre esse tema, que percorre a obra dos grandes artistas que se preocupam com a alma humana, também em outras artes – citarei só Hitchcock, que vivia abordando pais ausentes ou mortos em seus filmes (em Os pássaros, o pai é só um retrato, de trás do qual cai um pardal morto). Em Pacto sinistro, o vilão Bruno quer que um desconhecido lhe mate o pai. A impressão que se tem é que é preciso sempre instaurar drasticamente o reino do Filho. Mas o reino do Filho, sem o centro ordenador, é o reino da desordem, da destruição e da culpa, como fica claro no “Totem e Tabu” freudiano.

IHU On-Line - E de que forma o parricídio dos Karamázov se transmuta no deicídio defendido por Ivan, que sentencia a permissibilidade para a ação em face da inexistência de Deus? Assim, que relações podem ser estabelecidas entre parricídio e niilismo?

Chico Lopes - Parece óbvio que Fiódor encarna Deus de modo negativo: negligente, arbitrário, cruel, ele se confunde com aquele Deus que Ivan diz que deixa morrer na neve uma criancinha, omissão pela qual Ele nunca poderá ser perdoado. Óbvio que Ivan devia sentir-se a própria criancinha abandonada na neve, face ao pai Fiódor. Assim, será preciso eliminar esse Deus cego, de implacáveis indiferenças, para que se instaure uma humanidade livre, se bem que desamparada. Tudo é permitido a quem nada mais resta. É uma humanidade entregue às forças anárquicas, que desaguarão no niilismo, fora de dúvida.

IHU On-Line - Poderia dar mais detalhes sobre por que afirma que essa obra termina como um apelo à irmandade entre os homens?

Chico Lopes - O leitor deve lembrar-se que o filho doente de Snieguiriov vinha sendo assistido e consolado por Aliócha e seus colegas de escola. Sabedores de que ele teria pouco tempo de vida, procuravam levar-lhe alegria, ficar em torno de seu leito. É um dos momentos altos de solidariedade do romance, e não parece mais, a esta altura, haver aquela aura devota meio rósea demais que víamos em Aliócha em certos trechos. Quando o menino morre, resta a Aliócha ainda a alegria de ter feito amigos entre os colegiais. É o momento em que, tendo já acontecido a morte de Fiódor por Smerdiákov, com Dimitri partindo para longe e Ivan ficado entregue à sua solidão intelectual, ele encontrará irmãos num sentido mais amplo, já não da família, já não da carne e do sangue, mas da humanidade toda.

Leia mais sobre Dostoiévski...

- Fiódor Dostoiévski: pelos subterrâneos do ser humano. Edição nº 195 da IHU On-Line, de 11-09-2006.

- Dostoiévski chorou com Hegel. Entrevista com Lázló Földényi, publicada na IHU On-Line número 226, de 02-07-2007.

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